Monday, 23 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Meias verdades e interesses inteiros

Muito foi falado sobre a decisão de Hugo Chávez de não renovar a concessão da RCTV. De um lado, os jornais que omitiram que a decisão do presidente venezuelano era uma não renovação baseada na lei, na má conduta do canal. Muitos jornalistas e jornais, de fato, propositadamente omitiram parte das informações levando o público a uma compreensão equivocada. Do outro lado, estão os defensores do governo, que vêem a legalidade da não renovação e o envolvimento da RCTV no golpe contra o governo de Chávez como razões suficientes para validar a decisão do presidente. No meio, estão os que, como eu, compreendem que a decisão foi legal, que a mídia fez de tudo para distorcer as informações, mas ainda assim têm dúvidas sobre o que isso tudo realmente significa.

O fato é que de repente a questão da liberdade de expressão veio mais uma vez à tona. Liberdade total de expressão não existe e nunca existiu. Implicaria em não haver nenhuma conseqüência para o que fosse dito. Verdades, ou mentiras, xenofobia, racismo, homofobia etc. Essa liberdade não existe e, creio, nem seria bom existir. Por isso, criamos (e continuamos criando) um corpo de legislações que varia de acordo com as várias sociedades, para regular, delimitar até onde pode ir (e essas linhas nem sempre são muito nítidas) a nossa liberdade de expressão. Esse corpo varia de acordo com o zeitgeist moral.

Malabarismos e ‘sofismas’

O Estado poder dar as concessões de canais é arbitrário. Se fosse tudo privado também seria. O ponto é que quem tem voz é quem tem dinheiro (para ter um canal, produzir um programa etc.) ou poder político (ou os dois). Quem tem voz é quem tem poder. Vez ou outra dão espaço para um sem-voz, mas nunca um que cause muito barulho. É importante notar que qualquer um que questione, seja com mentiras ou verdades, os interesses de quem está no poder será severamente punido. Como diz Chomsky, em Estados fortes, controlam-se as ações, nas democracias, manufatura-se consentimento. É claro que os mecanismos de controle variam e se legitimam de maneiras diferentes.

O que me incomoda, no entanto, é que toda essa discussão na mídia sobre a não renovação do canal venezuelano nada tem a ver com liberdade de expressão, como se proclama. Assim como a invasão do Afeganistão e do Iraque nada tinham a ver com armas ou direitos humanos. Se a mídia internacional estivesse realmente preocupada com ataques à liberdade de expressão, deveria ter reportado o fechamento de três rádios na Somália esta semana. Igualmente, deveria ter se pronunciado por ocasião dos freqüentes planos e ataques à Al Jazira, com a mídia em Belgrado etc. Entretanto, nada (ou quase nada) foi dito, pois nesses casos os interesses coincidem. A quebra de direito de expressão foi feita pelos poderes internacionais (ou governos apoiados por eles) e a mídia não tem interesse em reportar. O problema realmente acontece quando os que quebram o direito de expressão (e todos quebram) entram em conflito com os interesses dos que regem a mídia mundial. Aí fica claro que o conflito é de interesse político-econômico, e não ideológico.

No fundo, nesse mundo de meias verdades e interesses inteiros, procura-se argumento, ideologia, razão para legitimar tudo que é tipo de posição. Chávez não renovou e há quem apóie porque foi legítimo, o governo Bush mandou fechar (ou pelo menos não interferiu) e há quem defenda as medidas contra essas mídias pois não as consideram ‘objetivas’, simplesmente ‘propaganda terrorista’. Isso tudo viola a expressão de alguns. A discussão, no entanto, tem muito pouco a ver com liberdade de expressão. Tem mais a ver com os malabarismos que fazemos para não entrar em conflito com nossas ideologias. Tem mais a ver com os ‘sofismas’ que criamos para conseguir legitimar e validar a posição daqueles que ‘propagam’ os nossos interesses.

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Formada em Antropologia pela Hofstra University, Nova York, colunista do site nocaso.org