Foi Francisco de Assis Barbosa quem me apresentou ao cartunista e compositor Nássara, seu velho companheiro de imprensa. Chico era meu chefe na Fundação Casa de Rui Barbosa e seu amigo desde o tempo da revista Diretrizes, de Samuel Wainer. Quando publiquei meu primeiro livro, Histórias de Presidentes (1989), incluí desenhos do Nássara e tive a alegria de vê-lo no lançamento.
A partir daí, ele, de vez em quando, passava para tomar um café comigo na Casa Rui. Totalmente surdo, respondia às perguntas que eu lhe fazia por escrito. Era um tempo em que eu andava sempre com um gravador, pois tinha a intenção de desenvolver um projeto de história oral com algumas figuras da geração de 1930. De modo que, com a autorização do Nássara, eu gravava as nossas conversas. Também costumava visitar a ele e a dona Iracema, sua mulher, no pequeno apartamento em que moravam, na rua Belisário Távora, em Laranjeiras, no Rio de Janeiro. Dessas conversas nasceu um livro chamado Nássara – O Perfeito Fazedor de Artes, que publiquei em 1999, três anos depois da morte de meu amigo.
Inteligente, engraçado, musical, cheio de reminiscências interessantes sobre seus contemporâneos e sobre si mesmo, Nássara tinha uma das conversas mais divertidas que já conheci. Compositor de alguns tantos sucessos da MPB como Formosa, Alá-lá-ô e Meu Consolo É Você, as melhores histórias de Nássara eram as que contava sobre o ambiente musical, pois sempre as fazia acompanhar cantando com sua bela voz e batucando a mesa.
Meio bobo, paradão, sem muita graça
O compositor a quem ele mais quis bem e admirou foi Orestes Barbosa, com quem muito se identificava, talvez por causa do espírito boêmio. Gostava de Ary Barroso e era próximo de Wilson Batista. Dos cantores, o seu preferido era Luís Barbosa, que morreu moço e sem gravar quase nada. Entre Francisco Alves e Mário Reis, preferia mil vezes a delicadeza do segundo. Uma amizade que conservou por toda a vida foi a de Ademar Casé. Foi para o programa de Casé, em 1932, nos primórdios da história do rádio brasileiro, que Nássara compôs nosso primeiro jingle, o da padaria Bragança.
A coisa mais engraçada da conversa com o Nássara era o espanto dele com o renome de algumas pessoas que, em seu tempo, não tinham tanto renome assim. A primeira era Noel Rosa, seu companheiro de juventude em Vila Isabel. Segundo Nássara, Noel não fazia em vida nem uma pequena fração do sucesso que fez depois de morto. Quem fazia sucesso mesmo era Lamartine Babo, cujas músicas estouraram em todos os carnavais. Nássara me disse: ‘Até eu fazia mais sucesso que o Noel.’
Outro sucesso que também o espantava era o de Nelson Rodrigues. Para Nássara, dos irmãos Rodrigues, bom mesmo era o Mário Filho. Nelson, o mais novo, lhe parecia meio bobo, paradão, sem muita graça. Nássara achava que o sucesso recente de Nelson Rodrigues se devia ao Ruy Castro, autor da biografia do dramaturgo, e dizia: ‘Aquele menino fez mais pelo Nelson do que Nelson por ele.’
A mensagem de Natal
Uma tríade de amigos merecia afeto tão especial que Nássara compôs para eles marchinhas divertidíssimas que nunca gravou: Chico Barbosa, Marques Rebelo e Di Cavalcanti. As do Chico e do Marques Rebelo foram feitas em homenagem à entrada de cada um deles na Academia Brasileira de Letras. A mais maliciosa era a do Di, em que havia uma versinho que dizia: ‘Das cem mil mulatas que pintou/ em nenhuma delas fracassou/ o pincel do velho Di’.
Foi um privilégio maravilhoso partilhar essas histórias com Nássara, ouvindo-as serem contadas por ele mesmo. Na parede de minha sala de trabalho, a lembrança dessa amizade é reavivada no quadrinho em que emoldurei a mensagem singela de Natal que um dia me enviou: ‘Se o mundo inteiro ainda insiste/ que existe Papai Noel,/ que leve o melhor que existe/ pra nossa amiga Isabel.’
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Pesquisadora, historiadora e doutora em Ciência Política