O sociólogo Gilberto Freyre, autor do clássico Casa-grande & senzala, nos deixou várias lições a respeito das ‘normas’ que regem o modus vivendi brasileiro. Muitos se lembram da sua famosa (e contestada) tese da democracia racial. Mas, analisando o conjunto da obra deste pensador, considero que há ensinamentos mais contundentes. Citaria, por exemplo, a importância que Freyre conferiu à publicidade, ao criar o termo ‘anunciologia’ para estudá-la. Segundo ele, o conteúdo expresso nos anúncios de jornais do século 19 demonstra as estratégias simbólicas de manutenção da ordem escravocrata, sustentada pelo direito de propriedade. Em suas investigações, Freyre elevou a publicidade à categoria de documento histórico, mostrando que ela não fica nada a dever, enquanto testemunha de uma época, às fontes tradicionais de pesquisa, como livros, manuscritos e registros cartoriais.
Essa perspectiva de Freyre deve ser levada em consideração também nos dias de hoje, considerando os altos investimentos realizados pelas organizações em publicidade. Tudo em nome da visibilidade e do lucro. Para alcançar esses dois objetivos, nada melhor do que uma técnica de venda em escala de massa, baseada em artifícios de persuasão e estratégias de convencimento, que visa a conquistar a atenção do consumidor e a sua ação de compra. O anunciante, por meio da publicidade, oferece uma isca apetitosa, cheia de atrativos. Essa ‘isca’ é a marca, o produto, o serviço que, ao prometer saciar a fome do público-alvo, busca fisgá-lo mais pela emoção do que pela razão. A arte dessa ‘pescaria simbólica’ consiste em seduzir o consumidor pelo encanto da melhor ‘isca’, ou seja, aquela que, dentre as várias concorrentes, promete a saída mais fácil para a resolução do problema do cliente. Tudo em nome do seu bem-estar e conforto. Felicidade é a palavra de ordem.
Prática e teoria
Mas há um sorriso amarelo por trás do ‘sorriso colgate’. E devemos escancará-lo para melhor diagnosticar o problema. Caminhando pelas ruas de Belo Horizonte, fui assaltado, em plena luz do dia, por um outdoor de instituição privada de ensino superior que estampava o seguinte slogan: ‘O mercado aprova os nossos alunos. Os alunos aprovam o nosso ensino’. Logo perguntei: e o professor (sequer ele é mencionado no anúncio)? Qual é o papel do educador nesse jogo?
A meu ver, o professor deve atuar no papel de ‘estraga-prazeres’ desse sistema, que transformou a educação em um produto, em um negócio, passando de direito universal garantido pelo Estado a prestação de serviço gerenciada pelos interesses particulares dos donos das capitanias educacionais. Sistema este que transformou os alunos em clientes, o professor em ‘unidade de custo ambulante’ e que faz do estudante uma extensão do mercado, e não o contrário. Sistema este que transformou os encontros pedagógicos em desencontros demagógicos e que inverteu um processo importante ao promover em demasia a carreira profissional em detrimento do papel fundamental do estudante: o de pensador. Sistema este que enaltece a prática e desmerece a teoria, sendo que a prática é a filha, ora obediente, ora rebelde, da teoria. A prática aponta para a realização. Mas para que exista a realização é preciso dar vazão à abstração que a gerou.
Cidadãos e consumidores
Nessas tenebrosas transações, o diploma deixou de ser a conseqüência de um processo singular de aprendizado. Passou a ser a causa de um investimento feito em busca de um retorno imediato, garantido e sem muito esforço, de preferência. De certificado de conhecimento, o diploma passou à categoria de comprovante de renda.
É muito perigoso e reducionista tratar o estudante como cliente. Reza a cartilha comercial que o cliente sempre tem razão. Acontece que na educação a conduta é outra: deve prevalecer o debate de idéias e de ações entre os agentes envolvidos no processo, não havendo, portanto, ‘o dono da verdade’.
Nesse curto-circuito da educação como negócio, as aulas vêm se transformando em espetáculo, no qual o professor deve se comportar como um showman, isto é, o ‘boa-praça’ que recebe seus alunos com piadas e tapinhas nas costas. Enquanto isso, a turma ri à beça, sem saber na verdade quem é o verdadeiro palhaço desse circo. Ou fingindo não saber. ‘Eu finjo que ensino, você finge que aprende’, eis o pacto da mediocridade roubando a cena. Nesse caso, o professor deixa de ser um provocador por excelência para atuar apenas como um ‘facilitador’. O estudante, por seu turno, torna-se um receptor passivo da aprendizagem, em vez de ser co-responsável pelo conhecimento produzido e discutido em sala de aula. Nesse reino desencantado, vale mesmo tudo pelo tão cobiçado canudo. É o que oferta a instituição privada de ensino superior, anunciante daquele desastrado outdoor. Marcado por uma faceta excessivamente operacional, que deixa a base humanista em segundo plano, esse estilo de fazer ensino superior forma uma tropa de elite de cidadãos imperfeitos e consumidores mais-que-perfeitos.
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Jornalista, mestre em Estudos Literários/Literatura Brasileira pela Faculdade de Letras da UFMG e professor do curso de Comunicação e Marketing da Faculdade Promove de Sete Lagoas, Belo Horizonte, MG