Michel Foucault inicia seu extraordinário livro Arqueologia do Saber (1969)questionando algumas identidades fixas que orientam as nossas vidas, na suposição de que elas sejam eternas e que sempre tenhamexistido. O que é o sujeito? O que é uma pessoa, com sua identidade de gênero, étnica, econômica? Existe alguém que seja ele mesmo, uma identidade fixa, definida?
Quem sou eu?
Este é, pois, o primeiro axioma: não existe sujeito integralmente ele mesmo.
Somos muitos, com algumas tendências que prevalecem através das quais me fazem pensar ser eu mesmo um comunista, um poeta, um professor, um homem, um brasileiro, mineiro, com uma biografia marcada pela pobreza e pela ação solidária e socialista de minha mãe, que tem 15 filhos e que isso e isso e isso. Percebo-me a partir desses viveres que vivi, embora não sejam de forma alguma isolados, apenas meus, mas também de muitas outras pessoas: milhares, milhões, bilhões.
E eis que chego ao segundo axioma: eu não sou eu mesmo, mas um arquivo de experiências de vidas, inclusive de vidas antípodas das que acredito ser eu mesmo. Eu sou também ditador, torturador, indiferente, cínico, assassino.
Crenças de fixidez identitária
E eis que alcanço o terceiro axioma: sou o mundo inteiro, todas as possibilidades de ser, no atual presente histórico, embora manifeste tudo isso tendo em vista as misturas que fui realizando no decorrer de minha vida, a partir das migalhas de ser – em função da pobreza –, que pude catar aqui e ali.
De alguma forma, portanto, tenho em mim mesmo tanto o primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, que quer porque quer começar uma nova guerra mundial através da invasão do Irã, porque acredita fielmente que a chusma plebeica está dominando o mundo, assim como sou um solidário e justo ativista pela paz. E é precisamente aí que as esquerdas, na prática, se equivocam e perdem espaço tático e estratégico em relação às direitas que dominam este mundo múltiplo e contraditório, pois elas tendem a acreditar em identidades fixas e, inclusive, cobram coerência integral das pessoas tendo em vista essas crenças: as de que nós devemos ser nós mesmos, embora esquerdista algum – e eu me incluo nesse campo –, seja ele mesmo integralmente.
E eis que chego ao quarto axioma: devemos ser honestos o suficiente para saber que não somos honestos o suficiente.
Concretamente, a compreensão desses quatro axiomas é indispensável para que não caiamos nas armadilhas das direitas egoístas, assassinas, hipócritas e mentirosas – destacando que nós também, em maior ou menor medida, somos tais direitas –, pois elas jogam o tempo todo com nossas crenças de fixidez identitária, através da manipulação sem cessar das fixas crenças de que somos heterossexuais, brancos, negros, gays, mulheres, crianças, pobres, ricos, brasileiros, torcedores do Flamengo, filiados a tal ou qual partido e não de tal ou qual outro não suficientemente tão bom como o meu.
Uma bandeira cínica e dominadora
E eis o quinto axioma: de tanto acreditar em nós mesmos: eis o mundo, tal como.
Mais concretamente, ainda, vejamos um exemplo da armadilha em que caímos muito recentemente: a da invasão da Líbia pelo imperialismo ocidental. Para o imperialismo, o problema de Kadafi não era o de ele ser ( ou não ser?) um ditador que fez concessões, da década de 90 para cá, a algumas multinacionais do petróleo e também às potências bélicas e econômicas do Ocidente, prejudicando seu próprio povo.
Para o imperialismo, Kadafi tinha que ser destruído porque ele o peitou na década de 60 (1969) e 70 e no atual presente histórico não estava suficientemente fechado com os interesses do domínio israelense/americano sobre o grande Oriente Médio (e a agregada elite europeia), pois estabelecia intercâmbio com a China e com a Venezuela, assim como propunha a criação de um autônomo Banco Africano (com os fundos soberanos da Líbia), além de ter sido o principal obstáculo para a instalação do Comando dos Estados Unidos para a África, Africom, verdadeira base militar e científica cujo objetivo principal é neocolonial, logo de submissão permanente de todo o continente africano às multinacionais, antes de tudo, dos Estados Unidos.
Estrategicamente, para derrotar o obstáculo Kadafi, o que fez o imperialismo? Simplesmente usou seu sistema midiático mundial, com filiais em todos os países do mundo – talvez com exceção de Coreia do Norte –, a fim de, ao mesmo tempo, destacar o lado ditador do líder líbio e justificar, por tabela, uma invasão que o tirasse do poder à força e à custa de matá-lo, como ocorreu, deixando finalmente o caminho aberto para a instauração do Comando dos Estados Unidos para África precisamente em território líbio, como uma bandeira ao mesmo tempo cínica, humilhante e dominadora.
Sob a orientação de um técnico “neutro”
E como reagiram algumas significativas alas das esquerdas do mundo?
Simplesmente se apoiaram num lado da personalidade de Kadafi, tratando-o como se o líder líbio fosse apenas o ditador e o traidor que as mídias corporativas saíram dizendo que ele era. Com isso, as fixamente radicais esquerdas do mundo – antes de tudo, as ocidentais – contribuíram com o imperialismo e assistiram à destruição de Líbia sentadas no sofá, vendo o noticiário e provavelmente torcendo com o seguinte desfecho autoprogramado: o bem – o imperialismo ocidental – venceu o mal, o ditador Kadafi, implantando a democracia, finalmente, na Líbia.
E eis, a propósito, o sexto axioma: se alguma coisa é identidade fixa no mundo, essa alguma coisa é a defesa intransigente que o imperialismo realiza, em armas, de suas multinacionais, a fim de garantir o domínio integral delas sobre os recursos econômicos humanos e não humanos de todo o planeta.
E assim, num piparote ao estilo de Machado de Assis, chego ao Jornal Nacional do último dia 17 de novembro e sua magnânima reportagem sobre o vazamento de petróleo no litoral de Campos, provocado pela multinacional americana Chevron. Como é possível uma reportagem que se queira minimamente séria sobre um grave vazamento de petróleo realizada a convite da empresa que o provocou, num avião e sob a orientação de um “neutro” técnico dessa mesma empresa?
Liberdade de expressão
Obviamente, não é uma reportagem, mas uma descarada propaganda em defesa da multinacional americana Chevron, prova cabal de que a TV Globo está a serviço, como parte do esquema, da única identidade fixa que massacra todo o planeta: a do lucro das multinacionais do imperialismo, embora, destaco, não ser apenas o lucro das multinacionais do imperialismo americano que constitui uma fundamentalista identidade fixa, mas a do lucro enquanto tal, pois este, independente da origem, é a única identidade fixa inquestionável, pois tudo o mais, mesmo que pareça extremamente sólido, desmancha-se no ar, sob o domínio fixo do capital.
E como um caso nunca está isolado de outro, sobretudo no plano das identidades fixas (de vez que estas se fixam instaurando-se despoticamente no cotidiano), tal surrealista reportagem do Jornal Nacional sobre o vazamento de petróleo provocado pela Chevron só foi possível porque é mais comum que parece e mesmo constitui a regra geral em todas as situações em que os fixos interesses do imperialismo americano estão em jogo, pelo mundo afora, razão por que, numa guerra imperialista, as mídias a seu serviço se encontram do lado de seus generais, não sendo igualmente circunstancial que uma reportagem sobre o suposto projeto de bomba atômica do Irã seja geralmente realizada, de forma “neutra”, em Nova York.
E aqui chego ao último e sétimo axioma: todas as identidades fixas se apresentam como neutras e universais.
E é através delas, sob o ponto de vista da fixa identidade do lucro das multinacionais do Ocidente, como parte sistêmica delas, que as mídias corporativas se instituem como fixas e despóticas identidades de liberdade de expressão do e para o lucro, sendo que tudo o mais é desacreditado por ser considerado parcial, autoritário, não existente, porque não universalmente fixado no marcapasso do coração do múltiplo e não fixável mundo.
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[Luís Eustáquio Soares é poeta, escritor, ensaísta e professor da Universidade Federal do Espírito Santo]