O automobilismo no Brasil não seria o mesmo sem a força que lhe deu o grupo Estado. Na década de 70 (época em que as telecomunicações eram difíceis e caras), a empresa franqueou seus telefones para que Emerson Fittipaldi ligasse gratuitamente para a redação dando notícias de suas corridas. Não ficou só nisso: o Jornal da Tarde conseguiu que José Carlos Pace renovasse seu patrocínio com o extinto Banco Português do Brasil estampando quatro fotos em página inteira do piloto na sua balaclava (capuz) com a marca da instituição. E garantiu cobertura do então Tergal Rodhia para dois pilotos cariocas, Ricardo Ascar e Luiz Pereira Bueno, ao anunciar no jornal que seus carros seriam uma espécie de outdoors ambulantes (idéia, hoje comum, do jornalista Luiz Carlos Secco).
São revelações de Castilho de Andrade, obtidas no seminário pioneiro de ‘Jornalismo automobilístico’, parte da conclusão do meu pós-doutorado na USP, Departamento de Jornalismo e Editoração, financiado pelo CNPq. Estiveram por lá Zeca Chaves e Bob Sharp, da Quatro Rodas, Livio Oricchio, da agência Estado, JT e Estadão, Fábio Seixas, da Folha, Josias Silveira, da revista Oficina Mecânica, Castilho de Andrade, assessor do GP Brasil de Fórmula 1, Flávio Gomes, da ESPN, e Cláudio Laranjeira, fotógrafo free lancer.
Poder de promoção
É relativamente óbvio que uma das responsabilidades sociais da imprensa seja a de apoiar os esportes. Mas algumas empresas – e jornalistas – vão mais além. Tribute-se por exemplo a Luciano do Valle (nas TVs Record e Bandeirantes) o grande impulso que o vôlei obteve como modalidade esportiva no Brasil na década de 80. Até então, o país do futebol estava alheio ao que hoje o transformou numa potência mundial. Atualmente, a Band empenha-se no futebol feminino e os canais fechados apostam no futsal.
No Espírito Santo, temos um caso emblemático: a campeã mundial de bodyboard fora praticamente ‘adotada’ pelo jornal A Gazeta. Pela coincidência feliz de ser seu pai dono do bar freqüentado por cardeais da redação do diário, não faltou incentivo midiático a seu indiscutível talento desde menininha e ela pôde colecionar títulos, enchendo os capixabas de orgulho cívico.
A mídia sabe dessa sua força de mobilização e ainda pode fazer mais pelos atletas. No seminário, Oricchio desiludiu um pouco a moçada ao pregar um darwinismo das coberturas: ‘Emerson correspondeu com vitórias. Hoje só damos espaço a quem vence’.
A questão é que a mídia tenta expandir esse seu poder de promoção para a política. Mesmo mentindo, devo argumentar que isso é coisa nova, isso é muito natural.
Imprensa européia é mais passional
Zeca Chaves revelou que os leitores de revistas de carro se comportam em relação às suas marcas preferidas como torcedores de times de futebol: passionalmente. E que é preciso ser cada vez mais criativo no texto para agradar esse leitor que, segundo ele, prefere a tatilidade do papel ao formato eletrônico da revista:
‘É preciso tratar o carro quase como se ele tivesse uma personalidade; o carro tem alma.’
Flávio Gomes atacou a complicada imparcialidade do jornalismo esportivo:
‘Eu não me sinto em condições de cobrir jogo da Portuguesa. Jamais vou poder trabalhar em jogo da Portuguesa porque se perder vai ser roubado, o gol estava impedido e tudo o mais. Então, é a mesma coisa com a corrida; quer dizer: eu vou para corrida para torcer para o Barrichello, para torcer para o Massa? Não dá. Ou eu faço uma coisa… Ou eu torço ou eu escrevo; eu cubro. Quem tem que torcer é o torcedor… A gente, jornalista, não pode ter o papel do cara que está nos vendo. Eu não posso me comportar como o cara na arquibancada; se eu for me comportar como o cara na arquibancada, eu vou para a arquibancada, boto uma peruca e fico lá pulando. Que é o que a TV Globo faz.’
Fábio Seixas analisou as diferenças entre a cobertura automobilística brasileira e estrangeira:
‘Eu acho que a brasileira tem milhares de defeitos. Mas a gente cobre de uma maneira muito menos passional do que a gente vê lá fora. Você pega uma revista inglesa, eles puxam a sardinha completamente para as equipes inglesas, para os pilotos ingleses. E, às vezes, distorcendo uma coisa que você viu ali acontecendo… Essa história do Hamilton e do Fernando Alonso. A imprensa espanhola morre abraçada, afogada com o Alonso, mas não vai reconhecer que o cara errou, ou fez uma trapaça e… pisou na bola, como aconteceu aí, na minha opinião, na Hungria. Tem, é claro, um outro que, às vezes, exagera… até porque confunde as coisas, fica amigo demais de piloto e tudo o mais. Então, eu acho que a imprensa européia que cobre Fórmula 1 é muito mais passional e muito mais comprometida do que a imprensa brasileira.’
Estímulo para outras categorias
Cláudio Laranjeira respondeu se acha que, no quesito fotografia, o carro é menos tratado como arte e mais como objeto: (ainda há busca por detalhes nos carros que os tornam mais belos?):
‘Eu tenho um olho para esse tipo de fotografia… Alguns carros, você percebe… Num tipo de objetiva, ele melhora aparência… Ele se torna mais agressivo; ele se torna mais esportivo… Eu procuro enxergar isso… Eu gosto muito de detalhes, de curvas, de reflexos nos carros. E sempre faço. Mas a grande maioria não é aproveitada. E, no fundo, o carro são as duas coisas: um objeto de arte; um objeto de uso, né? Um objeto de status. E você tem que enxergar o carro como isso, quando fotografa. Pouquíssima gente olha para esse lado.Eu, na Quatro Rodas, comecei a tirar as antenas… Na época em que a gente começou fotografar, nos anos 70, a antena saía de dentro… Eu comecei a abaixar as antenas… e foi um negócio maluco na diretoria: ‘Por que baixaram as antenas?’ E eu tive que explicar que esteticamente não acompanhava o desenho do carro e tudo. Então, é isso, o fotógrafo tem que enxergar isso. Você não pode fotografar um jipe num lugar asfaltado e um carro esportivo no meio da terra. Tem que ambientar e enxergar como que ele é normalmente.’
Foi o primeiro seminário do gênero (jornalismo automobilístico) no país e reuniu um número expressivo de participantes (78), surpreendendo os organizadores, por se tratar de um tema muito específico. Resgatou a história desse tipo de cobertura na imprensa nacional e serviu como estímulo para consolidação das demais categorias esportivas automotivas, que é o que a mídia também deve fazer e o faz com mais eficiência, já que abrange um grande número de espectadores, em várias outras modalidades esportivas carentes de divulgação e reflexão acadêmica.
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Jornalista, pesquisadora da Universidade Federal do Espírito Santo e integrante da Rede Nacional de Observatórios da Imprensa (Renoi)