Monday, 04 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

Montadoras erram, imprensa aplaude

Há cerca de dois anos escrevi artigo sobre a farra do recall das montadoras de automóveis, chamando a atenção para os erros cada vez mais freqüentes da indústria automobilística e o silêncio da imprensa sobre o assunto. Recentemente o tema foi abordado en passant por este Observatório na sua versão televisiva, mas – para surpresa minha – de modo positivo para a indústria.

Efetivamente não lembro quem fez o comentário, por isso não correrei o risco de citar aqui um nome indevido, mas o fato é que o breve manifesto foi no sentido de louvar a atitude das montadoras em tornar públicos seus erros, com a pronta convocação dos proprietários dos automóveis para fazerem – ‘sem ônus’ – os reparos necessários nos veículos.

Ora, a primeira coisa a ser dita sobre isso é que fabricar automóveis funcionais e seguros não é um plus: é obrigação das montadoras. E só faltava mesmo ainda cobrarem para corrigir um problema saído de dentro da linha de produção das fábricas! O ônus, num caso destes, já foi imposto ao proprietário/usuário do automóvel antecipadamente: pelo risco iminente de um acidente grave – com possibilidade de perdas humanas, inclusive.

Um dado pontual em relação aos defeitos de um automóvel é que muitos deles não são de ordem meramente ‘estética’, mas sim técnica, comprometendo a segurança não só dos ocupantes do veículo como de todas as pessoas que estiverem no epicentro do raio de ação do problema – como pedestres e ocupantes de outros automóveis.

O mundo pararia?

Também é necessário enfatizar que nem sempre essa convocação para reparos é ‘imediata’: muitas vezes o erro só é percebido muito tempo depois. Há casos em que a numeração dos chassis remonta a lotes de veículos que já estão rodando há vários anos. Ou seja, há um hiato imprevisível de anos em que um motorista pode estar arriscando sua vida e a dos passageiros dele – sem sequer imaginar. Isso numa indústria que é eminentemente robotizada, em que teoricamente precisão e controle teriam que ser máximos.

Seria então um problema de ordem humana? Não parece, exatamente. Só para se ter uma idéia, transportando-se a questão para a indústria aeronáutica, a Boeing Company não usa processos automatizados para a construção de uma aeronave 747 – que consome nada menos do que 6 milhões de peças e componentes (que têm que funcionar em comum acordo). A única intervenção ‘mecânica’ durante a construção de um avião é a dos guindastes que sustentam e transportam os vários – e enormes – compartimentos da aeronave durante a montagem. O resto é feito por pessoas mesmo.

Agora, comparem-se os índices de falha mecânica de aeronaves aos de automóveis… Tudo bem. Aviões, por exemplo, são produzidos numa escala muito menor do que carros: só um 747 leva quatro meses para ser entregue pela Boeing – já testado, configurado e pintado –, mas não estaria aí então um dos grandes problemas da indústria automobilística, o ritmo de produção? As montadoras não podem justificar que o ritmo é intenso porque visa atender à demanda; afinal, nenhuma linha de produção pode ultrapassar seus próprios limites técnicos em nome do faturamento incessante. Não é crível que o mundo fosse parar se a produção de automóveis caísse, muito pelo contrário: algumas cidades (São Paulo, por exemplo, que já tem frota superior a 5 milhões de veículos) funcionariam inequivocamente melhor.

Motores ultrapotentes

Ademais, é óbvio que, ao se enfileirar uma produção indiscriminada, a qualidade final só pode ficar comprometida mesmo. Depois simplesmente aparecem aqueles comunicados das montadoras dizendo que ‘visam resguardar a integridade de seus clientes’. Se as indústrias efetivamente se preocupassem com os clientes tomariam providências para diminuir os erros – que só têm aumentado – e não para publicar comunicados cheios de termos dissimulados que escondem a gravidade dos problemas.

Cada comunicado de montadora é um show de tecnocracias que deixariam terrivelmente constrangida a Madame Natascha, do Elio Gaspari. É um tal de ‘não conformidade no processo de proteção superficial de parafusos que pode torná-los frágeis’, outro tal de ‘contaminação acidental do fluído de freio que, ao longo do tempo, pode afetar a durabilidade de alguns componentes de borracha do sistema de freio, podendo ainda causar
diminuição da eficiência de frenagem do veículo’ etc. Em português bem claro e sem rodeios, significa que você pode se espatifar contra outro veículo, contra um muro ou contra qualquer coisa sólida que estiver pelo caminho em função de uma falha nativa do automóvel – chancelada pela montadora.

Curiosamente, isso deveria ser mais um motivo para que não fosse permitida a produção – para fins civis – de automóveis com motores ultrapotentes que superam a marca dos 160, 200, 240 quilômetros por hora. Até porque, segundo consta no Código Brasileiro de Trânsito, o limite de velocidade máxima nas estradas brasileiras é de 100km/h – isso em auto-estradas. Quando se vê um desses possantes bólidos cruzar em alta velocidade uma
estrada é inevitável concluir que, além de negligente por si só, o sujeito confia demais na ‘resposta’ dos sistemas que dão estabilidade e segurança a um automóvel, como suspensão, freios, barra de direção etc.

Volume de erros

Aqui no Brasil, um dos problemas da linha de montagem de um automóvel diz respeito à terceirização de partes e componentes nele empregados. Começa que ‘terceirização’ foi um sutil artifício legal inventado para a redução de tributos e, principalmente, de encargos sociais recolhidos pelas grandes indústrias. Na verdade, na indústria automobilística já existe até a ‘quarterização’, pois muitas das terceirizadas não dão conta do volume de pedidos das montadoras e repassam parte da produção a outras empresas.

Diante disso, há vários relatos de lotes de peças que saem das fábricas terceirizadas, ou de suas ‘subsidiárias’, fora das especificações técnicas ou sem o devido tratamento térmico (que pode evitar trincas e rachaduras). Isso não é prática de uma empresa específica: é um recurso extremamente comum, sobretudo quando a demanda é vultosa e as entregas estão atrasadas, pois a falta de certos componentes de um automóvel pára totalmente a linha
de produção daquele veículo nas montadoras. A pressão é muito grande.

É lamentável que a imprensa se comporte de maneira vegetativa em relação a isso – não vendo, não ouvindo e, principalmente, não falando. Talvez porque grandes acidentes dêem audiência e vendam jornal? Ou seria porque a indústria automobilística responde hoje pela fatia mais generosa de publicidade em todas as formas existentes de mídia? Dúvidas, dúvidas…

Muitas dúvidas e uma única certeza: não são apenas os motoristas negligentes e alcoolizados que provocam acidentes. No site do Ministério da Justiça é possível consultar genericamente todos os comunicados de recall desde o ano de 2000 e ter noção do volume de erros que passam pelos propalados controles de qualidade das empresas. Nos websites das próprias montadoras é possível ainda verificar a prosaica descrição ‘técnica’ de tais convocações.

Que não matem as pessoas

Existe uma intenção muito clara nesses comunicados: primeiro, minimizar o erro; segundo, mascarar a culpa; e, por último, alertar – subjetivamente – os clientes sobre os problemas. Um trabalho ‘eficiente’ e de evidente origem nas assessorias de comunicação, campeãs absolutas dos meio-termos, das entrelinhas, das verdades incompletas – uma espécie de blindagem contra processos judiciais por acidentes causados por falhas mecânicas. A surpresa maior aqui é que melindre a própria imprensa, tão calejada com releases.

Ao aplaudir uma iniciativa de marketing institucional, oculto por essa imprescindível preocupação com o cliente, a imprensa não só ignora a gravidade das falhas da indústria automobilística, como ainda acaba prestando serviço essencial a suas assessorias de comunicação, pois só quem tem o poder de repercutir e questionar os fatos é a própria
imprensa. Se a imprensa não o faz, toda a sociedade é lesada.

Não há que se ver nada de muito especial no ato de publicar recall. Louvável mesmo é construir automóveis que não dêem problemas e que não matem as pessoas.

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Diagramador e arte-finalista, Porto Alegre