Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Mulheres, essas despudoradas

As mulheres já têm o que celebrar. Elas conquistaram o direito de freqüentar botecos sem companhia masculina. É o que revela O Estado de S.Paulo em matéria de página inteira (domingo, 15/5).


Talvez, mais interessante do que a matéria seja o preconceito sutilmente revelado ao mostrar o comportamento das mulheres:




‘Mas de que tanto falam…? Não é sobre a atual crise do Corinthians, pauta de uma mesa bem próxima à delas, no fundo do bar. Nem sobre os desígnios da economia brasileira depois da queda do sigilo fiscal do presidente do Banco Central (assunto logo abandonado pelos vizinhos da chopeira, no outro canto). Na mesa delas a noite é dividida em várias etapas. Começa com as novidades (15 minutos), passa por política e economia (5 minutos), trabalho (20 minutos), amor e romance (30 minutos), maldades (30 minutos) e culmina no que elas chamam despudoradamente de ‘aquilo lá’ – sexo tratado de maneira tão casual que a conversa poderia soar um tanto ousada para os delicados ouvidos de torcedores na arquibancada de um estádio de futebol’.


No tempo em que as mulheres já freqüentavam botecos, mas isso não servia de pauta para grandes jornais, as revistas femininas bem que tentaram, sem sucesso, fazer matérias mostrando o tipo de conversa que os homens mantêm em mesa de bar. A maior dificuldade? Conseguir que os homens revelassem o tão bem guardado segredo do fascínio do bar. A pergunta que me ocorre é: qual a razão da matéria? Se homens em bar não são assunto, por que mulheres são?


Será porque permite mostrar um comportamento inadequado, como falar de um tema que os homens discutem com a maior tranqüilidade, mas que, quando falado por mulheres, merece adjetivos tão antigos como ‘despudorado’? O despuradorado, no caso, leva à conclusão de que mulheres, mesmo tendo conquistado o direito de se movimentar livremente, com dinheiro para pagar a conta, ainda devem manter o ‘pudor’.


Talvez a falta de pudor seja o fato de falarem muito, e falarem alto:




‘Quase sempre elas se entusiasmam tanto com as histórias que quem está nas mesas do lado acabam ouvindo tudo’.


Se elas falassem das notícias da semana certamente a matéria perderia a graça. Poderiam ter falado, por exemplo, da proibição de distribuir a pílula do dia seguinte numa cidade do interior de São Paulo, ou então do andamento do processo contra os universitários acusados de estuprar uma colega em Campinas. Nem de novela essas ‘meninas’ – termo usado na matéria para identificar as mulheres – falaram. Foram falar logo do tema predileto dos homens. Em alto e bom som.


Faltou o contraponto


O que a matéria perdeu foi a chance de mostrar o outro lado da moeda: o comportamento dos homens, a quem tudo é permitido no bar. Até mesmo falar mal das mulheres, sem qualquer preocupação com o politicamente correto, como mostra a irônica, bem-humorada crônica de João Ubaldo Ribeiro ‘O eterno feminino num boteco do Leblon’ (O Globo e O Estado de S.Paulo, 15/5).


Ao colocar em confronto um homem feminista e um machista, João Ubaldo denuncia a essência do pensamento machista em frases como ‘mulher, meu amigo, deixou desencostar a barriga do tanque, tá lascado’. E aproveita para alfinetar o presidente Lula, quando o machista diz: ‘Duvido que ele não pense igual a mim, ele fala o que o povo pensa, essa é que é a verdade’.


A verdade revelada na matéria sobre botecos é que o povo ainda acha que as mulheres estão, como disse o presidente Lula, ‘ficando muito desaforadas’. E que a imprensa, embora tenha uma grande maioria de mulheres entre seus repórteres, não consegue se livrar do preconceito, mesmo quando acredita estar falando a favor das mulheres.


Em vez de gastar tanto espaço com um assunto de tão pouca relevância, como conversas de bar – de mulheres ou de homens –, o jornal poderia ter aprofundado o tema da pílula do dia seguinte, perdido numa notinha no meio da semana. Esse sim, um assunto que diz respeito a todos, homens e mulheres.


Ou então, aproveitando a matéria sobre mulheres no bar e a crônica de João Ubaldo, poderiam entrevistar homens para saber o que eles realmente pensam dos direitos femininos. Seria uma forma de usar o espaço de forma mais democrática e prestar um bom serviço às leitoras. Se os homens têm o direito de saber o que as mulheres ficam fazendo no bar, o mesmo direito deveria ser dado às mulheres. Ou será que toda a criatividade da pauta está voltada para uma coisa tão sem graça como conversa de botequim?

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Jornalista