Carolina Ferraz estreou entre panelas no GNT, e vai ficar de avental na TV até o Natal. É só mudar o horário para ver a filha de Gilberto Gil que queria ser cantora, Bela Gil, fazendo o mesmo. E sintonizar Master Chef,na Band, onde Ana Paula Padrão, sem pôr a mão na massa, dá uma de chef, e define ali o caminho que a jornalista pretende depois de deixar de sê-lo. Como diz o título do seu livro, O Amor Chegou Tarde em Minha Vida(Paralela). Com exceção de Rita Lobo, profissional do ramo, ou da chef Ana Luiza Trajano (restaurante Brasil a Gosto), que também fazem o mesmo na GNT, e sem falar nas salsichas de Fátima Bernardes, fica no ar um cheiro de queimado: por que elas voltaram para a cozinha?
Não são as únicas. O próprio GNT exibe programas de culinária das estrangeiras Nigella Lawson e Annabel e não dispensa a moda até refrescante de colocar a cozinha nas mãos dos homens, chefs britânicos ou franceses como Jamie Olivier e Claude Troigros.
Zapeando as futilidades dos canais dirigidos às mulheres, foi o cartunista Laerte Coutinho, numa entrevista no GNT Fashion,quem melhor falou sobre os dilemas femininos. Assim mesmo, pediu desculpas: “Sou mulher há apenas três anos, erro muito”.
Classe feliz
Onde estão as mulheres deste país? As celebridades posam nas colunas, as modelos e atrizes famosas vendem produtos de beleza ou cápsulas-fonte-de-juventude como Gisele Bünchen, Maitê Proença, a própria Carolina Ferraz. Tudo se esclarece quando descobrimos o tipo de relação que elas pretendem manter, resumida numa frase de Somerset Maugham (só muda o país): “As mulheres americanas esperam encontrar em seus maridos uma perfeição que as mulheres inglesas só encontram em seus copeiros”. Tudo girando em torno da comida, como os suplementos dos jornais que suprimiram artes, literatura, espetáculos e cadernos de ideias para servir na estufa, quentinhos, cadernos de “Comida”.
Desde 1996 as revistas francesas como a Lire perguntam sobre “o que restou do feminismo”cinquenta anos depois que Simone de Beauvoir lançou O Segundo Sexo?
Onde está o vírus feminista que certamente não se encontra na lingerie da Victoria’s Secret com vendas alavancadas por Bünchen? Pode estar até no vídeo do YouTube “La Loca de Mierda”,onde a popular atriz argentina Malena Pichot, de 32 anos, dilacera e execra uma emocionalidade“complexa, hormonal, histriônica e intensa que nos converte em ‘unas locas de mierda’”. Uma paródia de tudo o que ela detesta nela mesma e nas mulheres em geral. E afirma que a sociedade ainda não sabe entender o feminismo. “O feminismo é simples. É estar consciente de que há uma diferença nos direitos culturais e injustos entre homens e mulheres. Quem estiver bem consciente disso é feminista.”
Cinquenta e um anos depois que Betty Friedan lançou A Mística Feminina, a americana Sheryl Sanderberg, executiva do Facebook, lançou o manifesto pós-feminista Faça Acontecer(Companhia das Letras), onde mostra, perplexa, a ainda enorme defasagem dos avanços sociais, pessoais e profissionais entre homens e mulheres. E expõe suas próprias fragilidades, definindo-se feminista por acreditar na igualdade entre sexos – falar em “gêneros” continua a ser mais explosivo do que falar sobre sexo.
O manifesto assusta pelo gap salarial que persiste meio século depois. Como Jane Fonda fez com o corpo, Sheryl estimula as mulheres a fazer um “work out” no cérebro, “exercite-se”, a deglutir mais “food for thought”, comida para a cuca e não para engordar – as mulheres já estão assustadoramente redondas. Conselhos de Sheryl: pise no acelerador, não se envergonhe do seu próprio sucesso, assuma mais responsabilidades.
A expert no assunto Camille Paglia (autora de Personas Sexuais,Companhia das Letras), numa entrevista nas páginas amarelas da Veja (5/3/2014), analisou o assunto e revelou que a culpa é das mulheres: “Nós sufocamos os homens”.
São poucas as mulheres no poder porque elas ainda precisam saber “compor, comandar, decidir, controlar os nervos – combinar qualidades femininas e masculinas… Essa história de ser carinhosa e ter compaixão já está resolvida – vamos parar de falar nisso”.
Também nunca se falou tanto em empreendedorismo – o que, segundo Camille, colocou a mulher num estressante isolamento psicológico reforçado pela fragmentação da família tradicional. “As mulheres sentem que têm de ser essas pessoas bem sucedidas, tudo na vida delas tem de estar relacionado com o poder. O feminismo cometeu o engano de tentar reduzir a vida feminina às conquistas profissionais.”
Quando Camille diz que a geração dela deu com a cara na parede dá para entender a decepcionante volta das mulheres para o fogão nas emissoras de TV e a das que fazem sua audiência no fogão de casa. Na entrevista, que deixaria a Betty Friedan e a geração dos anos 1960 de cabelo em pé, Camille admite: “Quando as mulheres chegarem aos 70, 80 anos, acredito que a felicidade não estará com as ricas e poderosas, mas com as mulheres de classe média que conseguiram produzir grandes famílias”.
Gastronomia requintada
Sem dúvida um retrocesso, uma derrota e não necessariamente uma verdade. Mas explica por que as mulheres, cansadas de bater numa porta que insiste em não abrir – a do sucesso nas carreiras ainda comandadas pelo outro sexo –, voltam para o conforto do fogão e do lar. O descompasso é total, os papéis ficam trocados ou indefinidos, um não entende o outro. “As mulheres pedem aos homens que eles sejam o que não são e, quando eles se tornam o que não são, elas não os querem mais”, diz Camille.
O filme atualmente em cartaz “Garota Exemplar”(de David Fincher) revela o jogo vivido hoje como acontecia no tempo das nossas avós. As mulheres ainda fingem. O personagem Nick (Ben Affleck), marido e principal suspeito do desaparecimento da sua mulher, descreve o que vive na tela: “No começo do namoro, tanto o homem quanto a mulher usam máscaras para mostrar ao parceiro o que ele quer. Quando casam, tiram as mascaras”. Ele exemplifica: talvez para “fisgar” o seu homem ela diga que adora futebol, mas depois de casada o marido descobre que ela não gosta nem um pouco. Ou assume a postura intelectual quando o que ela quer mesmo é chinelo e fogão ou vice-versa. Diz “ok” só para encerrar a discussão e não ser forçada a se bater pelas próprias razões. Mesmo quando não concorda com o parceiro. Um “tanto faz” ou “tudo bem” evita o confronto, mas ela sabe que no fundo vai tudo mal.
Que mulher é essa? As próprias feministas históricas admitiram que fizeram esse papel para ter um companheiro, par não ficarem sozinhas. Será que andamos tanto e voltamos para aquela tirinha do Globo dos anos 1970, quando a Dona Marocas batia com rolo de pastel na cabeça do Pafúncio? (No original americano publicado em 1913, Pafúncio era Jiggs e sobreviveu até 2000, muito depois do feminismo brandir seu grito de guerra no mundo.)
As mulheres rasgaram o sutiã, decidiram decidir sobre seu próprio corpo, determinar quando e de quem queriam ou não ter seus filhos, abandonaram seu posto na cozinha e lançaram o grito feminista nos anos 1960. Ouviram de Simone de Beauvoir: “Que nada nos limite. Que nada nos defina. Que nada nos sujeite. Que a liberdade seja a nossa própria substância”.
Onde estão as mulheres que admiramos, que não ocupam espaço semelhante aos das mulheres entre panelas no GNT?
Gastronomia fina é um requinte a ser aprendido e degustado, mas com esse excesso dá para desconfiar.
Por que, empurradas para o empreendedorismo, as mulheres se voltam para o fogão?
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Norma Couri é jornalista