Há alguns dias resolvi assinar novamente a Folha de S.Paulo em função de uma interessante promoção de 20 dias gratuitos. Após este período e muito em função do caderno ‘Brasil’, resolvi não continuar com o jornalão paulista. Do episódio, pude ao menos ter mais claro o papel da FSP no jogo da sucessão presidencial e conhecer um novo colunista, tema da matéria que segue.
O foco da editoria de Brasil é a Presidência da República. E as matérias negativas são incomparavelmente superiores em número e virulência às elogiosas. Logo nos primeiros dias, deparei com um analista do qual nunca havia ouvido falar, mas de nome quatrocentão: Fernando Barros e Silva. Bem, esse faz da página A2 do jornal um campo de batalha anti-Lula. Em 18 colunas lidas no período, 10 tratavam do presidente (que é nominado 28 vezes…). E nestas 10 colunas não há nada de bom que o presidente possa, de longe, ter feito, pensado, falado. Tudo é negativo. Tudo, absolutamente, está errado na administração federal, e nesse caos Lula joga um papel decisivo – ele e seu PT, o ‘lulismo’, os ‘lulistas’ e a ministra Dilma Rousseff, outras das obsessões de Barros. Os exemplos são vastos, alguns engraçadíssimos, mas tentando poupar o leitor, pincei alguns textos ‘exemplares’.
No dia 6 de novembro, uma coluna, no mínimo, estranha. Trata do artigo publicado pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso nos jornais O Estado de S. Paulo e O Globo no dia 1º daquele mês. Estranho, por exemplo, que numa coluna com esse tema as referências a Lula e ao PT seja tantas. Entre ‘Lula’, ‘lulismo’ e ‘PT’ são 12 menções, em seis parágrafos. Mas não foi esse o ponto que chamou atenção. Foi a tentativa do colunista de não apenas amplificar a palavra do tucano, mas de traduzir o que ele havia escrito. Lembra uma história recém-contada pelo jornalista Márcio Fortes, passada no interior do nordeste em meio à campanha presidencial de 1994. Nela, falando para uma população muito pobre em um galpão improvisado, o então candidato disse que em função da ditadura havia perdido a ‘cátedra’ na USP. A ‘cátedra’. Neste dia, faltou-lhe um Barros amigo em seu socorro. Alguém capaz de resumir o pensamento do tucano que, por pruridos acadêmicos, não consegue dizer exatamente o que pensa sobre Lula. Barros consegue e com base no que falou o ex-presidente qualifica Lula de ‘Perón de São Bernardo’, para horror dos cientistas políticos e historiadores da nação.
Um filme ‘horroroso’ para um povinho ignóbil
Até a ex-prefeita Luisa Erundina (coluna de 17/11/09) serve de escada para que se desça a lenha no Partido dos Trabalhadores. Segundo Barros, o partido teria infernizado sua vida ao longo do mandato em São Paulo (1989-1993), o que demonstra sua incapacidade de lidar com as diferenças, seu sectarismo e bla-bla-blá… Aí complica, pois a história aconteceu há menos de vinte anos: qualquer um medianamente informado sabe que as críticas do Partido dos Trabalhadores a Luisa Erundina surgiram ao longo do governo Itamar Franco, quando a ex-prefeita decidiu, à revelia do partido, ingressar na administração do mineiro. Foi suspensa pelo partido e acabou deixando o cargo vociferando contra o ex-presidente, numa enviesada forma de dar razão ao partido que a punira: ‘Este governo tem hoje a cara de Itamar Franco, que é uma cara de direita.’ Na época, o PT foi amplamente criticado pela ‘injustiça’ contra a ministra. Ou seja, Barros deliberadamente confundiu uma história com a outra. Mas não deu certo; afinal, se é verdade que a gente esquece o passado, não o faz tão rápido assim.
No dia seguinte, 18/11, Barros se aproxima de um outro colega de Folha, este bem mais conhecido, Clovis Rossi. A semelhança vem do cenário desolador feito sobre o país. Amigos leitores: não há pedra sobre pedra neste país. Lula teria esvaziado os partidos (antes eram ‘cheios’, Barros?), os movimentos sociais, os sindicatos autônomos. Não há saída alguma porque, além de tudo isso, o presidente também acabou com ‘o que restava de vida intelectual independente no país’. A bizarrice do colunista é tanta ao apresentar um cenário pós-apocalíptico que seria de perguntar: mas e esse espaço, Barros, que você ocupa, não é uma trincheira da tal vida intelectual independente? Não deve ser, não é mesmo, afinal, quase tudo que se lê ali é Lula, lulismo e PT. Ou seja, Barros foi cooptado também – pelo avesso, mas foi. No final da coluna (que bateu o recorde, trazendo sete vezes ‘Lula’ em seus cinco parágrafos) lembra das supostas tentativas do presidente para calar a imprensa, a mesma que lhe daria ‘azia’. E não era para dar, Barros?
E a história continuou crescendo. No dia 20 de novembro, Barros publica uma ‘crítica’ ao filme Lula, o filho do Brasil. Ali, meio que numa apoteose ao seu sobrenome quatrocentão, exala preconceito social para destruir a obra, supostamente uma mistificação do ex-líder operário. Diz que é um filme ‘Classe C’, o que faz com seja ‘provável que a Classe C emergente, (…), se reconheça e se emocione diante da tela’. Ou seja, filme ‘horroroso’ assim só esse povinho ignóbil poderá gostar. E o ‘emergente’ ali tem um significado especial, na medida em que isola da massa de pobres aqueles ‘beneficiados’ pelas políticas do presidente. Seriam a ‘turma de Lula’, bem entendido. Na mesma coluna, Barros faz uma confusão com o fato de que, em 1982, Lula teria se apresentado ao governo de São Paulo como o ‘candidato igual a você’, e que, anos depois, teria dito que ‘ninguém queria ser um brasileiro igual a mim’.
A pior e última história de um jornal
Em primeiro lugar, seria de se perguntar se Lula venceu aquela eleição… A vida de Lula foi cheia de privações, trabalho e pobreza. Quem quer ser assim? Ao mesmo tempo, é completamente diferente apresentar-se, numa disputa política, desta forma. O que é ‘igual’ não quer dizer que seja ‘o desejável’. A posição da campanha era no sentido de criar empatia entre candidato e eleitorado, para que este último, majoritariamente pobre (como Lula), enxergasse no petista alguém capaz de ajudá-lo a superar tal condição. Barros confunde grotescamente uma constatação com um elogio. Lula era pobre, como a maioria dos eleitores, não fazia a apologia da pobreza. Pelo contrário, sua vida foi uma longa batalha para fugir das restrições impostas pela falta de dinheiro.
Ao longo do episódio da pane no sistema elétrico pude perceber o detalhe mais engraçado de todas estas leituras (coluna de 13/11/09 – tinha que ser uma sexta-feira, 13…). Barros critica o ministro Edison Lobão por ser um afilhado do presidente do Senado, José Sarney.
Eu e a torcida do Flamengo concordamos com isso. Mas eis que, logo ali, acima e ao lado de Barros, sob o título ‘Identidade Nacional’ está a coluna de… José Sarney. E nestes 20 e poucos dias Barros, este paladino da boa política, falou sequer uma vírgula sobre ter que dividir a página com sujeito tão marcado por escândalos. Depois de pensar isso, a gente pode até deixar de lado a leitura do artigo do senador maranhense, uma vez que a verdadeira ‘identidade nacional’ salta aos olhos por estas escolhas, silêncios e conformismos.
E tem muito mais, caros leitores, mas a lista ficaria enfadonha: a Forbes exibe um ranking das pessoas mais influentes do planeta, e nele incluiu Lula? Pois a escolha não passa de uma ‘tolice’ e, talvez por destacar o petista, ‘é infamante’. Os jornais estrangeiros liberais, como o Financial Times ou The Economist, elogiam o Brasil? Pois daí, Barros apenas percebe o ‘deslumbramento’ petista com o apoio da mídia conservadora. Há uma série de blogs que dão uma versão dos fatos mais favorável ao governo federal? Não passam de ‘funcionários voluntários’ do ‘lulismo’. O presidente tem sólida base no Congresso e é imensamente popular? Pois isso se reflete em um ‘ambiente imperial’. E o movimento estudantil, um dos últimos refúgios de crítica do país? O governo Lula o ‘cooptou’ com ‘dinheiro e cargos’. Barros não deve ter lido nada sobre a última eleição do DCE da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em que filiados ao Partido Progressista foram os vencedores. Enfim, para o já cansado leitor que chegou até aqui, uma luz, pois há que se concordar, ao menos, com uma frase de Fernando Barros e Silva: ‘A profissionalização da imprensa no país, que vinha ocorrendo, aos trancos, nos anos 70/80, vive hoje um retrocesso.’ Com toda a certeza, caro colunista.
E depois destes 20 dias (na verdade, um pouco mais) não continuei com a Folha. Não pela postura anti-Lula, ao menos até então, mas pela publicação de um horroroso texto de um tal Cesar Benjamin, nebulosíssimo militante do glorioso PSOL, ‘lembrando’ fatos da prisão do presidente no início dos anos 1980. Fatos que só ele lembrava, aliás, como foram todos descobrir depois, inclusive a Folha. Esta foi a pior, e também a última história que eu quis saber por meio da Folha de S.Paulo. PT, Saudações.
******
Servidor público federal, Porto Alegre, RS