George Orwell escreveu em 1948 seu famoso 1984, ainda no clima das ideias e ações dos ‘ismos’ dos ditadores da década entre 1930 e 1940, Stalin, Hitler e Mussolini. A ficção de Orwell narra um mundo administrado por meio de câmeras, que escondidas, olham as ruas e as casas, verificam minuciosamente o que acontece nas camas e nas mesas e alimentam de informações um Estado feroz, que invade a intimidade e a comensalidade de seus habitantes. As lentes governamentais procuram detectar os cidadãos que não se enquadram nos padrões estabelecidos para fazer de todos servidores do Estado.
Em 2009 chegamos ao 1984. Mas o toque de recolher não se realizou com o clarim, mas por um vírus com nome de senha, ‘Influenza A (H1N1)’ e codinome de bicho. As recomendações inquestionáveis vêm de especialistas de jaleco branco, legitimadas por vastos currículos. As ordens secas, goela abaixo, explicitam as boas intenções, a responsabilidade social de quem quer salvar as crianças, os velhos, os obesos, os desavisados.
A comunicação, com tom de manual e linguagem didática, orienta a lavar as mãos muito bem várias vezes ao dia, ficar longe do outro, evitar os apertos de mãos e os beijos. As cidades se transformaram em grandes enfermarias e procura-se remediar a falência da estrutura e da política de saúde pública: hospitais sucateados e gestão sofrível, médicos e paramédicos mal-pagos, quase sempre humilhados e desqualificados na atividade de servidores públicos.
Em nosso ‘2090’ como Orwell, a data invertida em razão da pressão de seus editores, a sociedade elege como inimigos a comida, o sexo, o afeto e a festa.
Mais higiene
Em São Paulo, a recente proibição da circulação de ônibus fretados, que transportam diariamente milhares de passageiros, tem a mesma cara da chamada ‘Lei Cidade Limpa’ que, em 2007, proibiu a propaganda ‘fora das regras’, nos outdoors, cartazes e placas na cidade. Medida higienizante.
A ordem municipal vem no embalo da promessa de avenidas e ruas mais fluidas e limpas para os carros particulares, que levam, na maioria dos casos, apenas um passageiro cada. E quer esconder a paralisia do Estado nas questões do transporte público e da mobilidade nas grandes cidades, em particular em São Paulo, onde sempre se privilegia o transporte individual, aquele que vende, aos milhões, carros e motocicletas, na política do ‘salve-se quem puder’.
No mesmo tsunami de medidas sob medida para uma sociedade que adora medidas espetaculares e celebridades, o estado paulista caminha para transformar em criminoso o fumante, que fica proibido de fumar em todos os lugares, menos na rua e dentro de sua própria casa, por enquanto.
Em uma sociedade de excessos, desequilíbrios e profundas contradições, velhas e novas doenças se alastram, os não-viciados se incomodam, as grandes manobras geram pequenas e localizadas riquezas e o autoritarismo comanda esse espetáculo.
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Jornalista, professor da ECA-USP e diretor-geral da Associação Brasileira de Comunicação Empresarial (Aberje)