Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Não basta noticiar

Para a necessária argumentação destinada ao tema proposto, torna-se indispensável, primeiramente a reprodução integral de uma notícia, publicada na coluna Painel da Folha de S. Paulo, edição de 29/04. Assim se apresenta a notícia, dividida em dois blocos:

Presidente…

Com a posse de Ellen Gracie na presidência do STF, o Senado deve apressar a votação de projeto de lei de Seris Slhessarenko (PT-MT) que adota os princípios da ‘linguagem inclusiva’ para designar funções públicas.

…ou presidenta?

Se aprovado, o texto, que já recebeu parecer favorável do relator, Marco Maciel (PFL-PE), estabelecerá a flexão do gênero de acordo com o sexo do – ou da – ocupante da função’.

Trata-se de um típico fato jornalístico que, a um só tempo, agrega riqueza em razão do que a notícia contém de revelador e pobreza em face da absoluta falta de comentário crítico, aspecto que, na imprensa brasileira, em nome das proclamadas ‘neutralidade’ e ‘objetividade’ – como se fossem possíveis – predomina. Dizem que, assim procedendo, o leitor tem plena liberdade de juízo. Considerando que pesquisam se sucedem, indicando, na educação brasileira, crescente deficiência seja quanto à compreensão de textos, seja no tocante a operações abstratas, exigidas pelo raciocínio matemático, é bom que a imprensa brasileira repense até que ponto notícias absolutamente destituídas de análise não colabora para a propagação dos sintomas mencionados.

Inegavelmente o fato noticiado tem todos os ingredientes exigidos pelo critério jornalístico. Ele é tão emblemático como notícia que até deveria ter merecido maior destaque, dadas as inimagináveis singularidades presentes no fato.

Noticiar é preciso; criticar também é necessário

Houvesse na imprensa brasileira maior empenho em propiciar ao leitor atitudes reflexivas, o caso relatado estaria repleto de condições para tanto. O que a matéria não comunicou é o que tentaremos aqui ilustrar.

De início, cabe registrar o espanto de se viver num país com tamanhas vicissitudes, inundado de carências à espera de uma classe política que as assuma e as enfrente. Igualmente, há centenas de princípios constantes na Constituição de 1989 que ainda não mereceram regulamentação, o que significa que está na Constituição sem vigência por falta de uma lei. Enquanto isso, porém, uma senadora da República está preocupada com o pífio fato ‘lingüístico-cultural’. Seria risível se não fosse horripilante. Afinal, em que país do mundo um político tem o direito de intervir no código lingüístico, sendo este reconhecidamente patrimônio de um povo? Pretende, por acaso, a nobre senadora, já com o referendo do relator (também membro da Academia Brasileira de Letras), em nome do que propõe, libertar as mulheres oprimidas pela gramática?

Bem, se assim é, deverá a ciosa senadora incluir outras reformas. Será que um ‘dentista’, ‘artista’, ou ‘pianista’, em sendo homem, vive algum constrangimento, em razão de as palavras terminarem em ‘a’. Pela lógica da senadora, então, haveria de ser ‘dentisto’, ‘artisto’, ‘pianisto’ e assim por diante. Também ‘estudante’, suponho, deverá merecer semelhante correção, ou seja, em sendo mulher, passará à forma ‘estudanta’. Em suma, o fato ultrapassa a fronteira da ingenuidade e ocupa o palco do ridículo.

O que mais assusta é saber que o projeto de lei não foi formulado por um simples vereador de um município acanhado em algum ponto perdido deste Brasil. Ao contrário, é uma decisão da Casa mais elevada do país. Será que tal projeto foi bandeira eleitoral quando a senadora disputou a eleição? Tenho a certeza de que não. Afinal de contas, mesmo os eleitores menos ilustrados, bem sabem reconhecer onde e como o ridículo se manifesta.

Qual é o problema em se continuar utilizando, ‘em funções públicas’, as consagradas formas de ‘o presidente’ / ‘a presidente’, a exemplo de ‘o estudante’ / ‘a estudante’, ‘o votante’ / ‘a votante’, ‘o concertista’ / ‘a concertista’? Seguindo a lógica da senadora, óbvio está que, além do substantivo, os adjetivos deveriam submeter-se ao novo preceito de gênero. Deste modo, imaginem a ‘beleza’ de uma frase assim iniciada: ‘A presidenta do…, na condição de palestranta e representanta do poder…, abordará…’.

Motivações ridículas

São situações dessa natureza que tornam a Língua Portuguesa, segundo comentários gerais, de difícil assimilação, razão por que muitos justificam os erros praticados. Todavia, é bom lembrar que a língua se organiza como sistema. Nessa condição, ela é gerida por um princípio de logicidade. As exceções surgem quando exatamente fatos como o relatado rompem a lógica interna da qual se constitui a língua. É, pois, o desconhecimento das normas que deforma o código, ao lado de acontecimentos cujas motivações são, no mínimo, estranhas ou ridículas.

Desculpe o Senado da República, mas só rindo… Lá, pelos idos dos anos 1970, já no século passado, quando queríamos, por deboche, demonstrar a inutilidade de algo, era costume usar a expressão ‘isso é da maior importância’. A egrégia instituição da República, segundo a nota, ‘deve apressar a votação’… Outro ponto a ser destacado diz respeito ao fato de que um político não desonra seu mandato apenas ao envolver-se em atos de corrupção. Também macula sua representação quando, em lugar de ocupar-se com questões efetivamente decisivas para o país, destina seu precioso tempo para proposições cuja importância é nenhuma e cuja repercussão para a vida societária nada significa.

Em tempo, ainda espero, embora um tanto incrédulo, que a sensatez da maioria dos senadores não faça eco a proposições bizarras. Aguardemos… De resto, óbvio está que não se cobra que a imprensa promova comentários alongados a respeito de matérias publicadas. Por outro lado, também não é concebível o absoluto silêncio apenas quebrado pelo mero registro do fato. É essa atitude jornalística centrada na crueza da objetividade que, em certo grau, colabora para disseminar o estado de indiferença perante acontecimentos geradores de indignação. É aconselhável que a imprensa repense criticamente seu desempenho.

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Ensaísta, doutor em Teoria Literária pela UFRJ, professor titular do curso de Comunicação das Faculdades Integradas Hélio Alonso (FACHA – Rio de Janeiro).