Os que acompanham ainda que superficialmente a política brasileira sabem que a presidente Dilma reelegeu-se com uma plataforma bem diversa da ora praticada em seu segundo mandato. O aprofundamento das mudanças não veio e o que se vê é um governo que capitulou em quase todas as frentes no intuito de manter a governabilidade. Nesse ínterim, os espaços foram ocupados pela reação e o Planalto acaba por ter o comando, mas não o poder.
Acuada pela hostilidade enorme do mercado, Dilma entregou a mais importante pasta de um governo, a Fazenda, ao ferrenho monetarista Joaquim Levy com a incumbência de realizar o ajuste fiscal. Pois bem, aí está ele no contingenciamento de quase R$ 70 bilhões, nas restrições a direitos trabalhistas e de seguridade social, e no endurecimento das regras de financiamento dos bancos públicos.
Ocorre que, diferentemente das contas domésticas, uma economia nacional funciona em outra dinâmica. Quando se cortam gastos que iriam para a base da pirâmide social – de pessoas que gastam tudo que recebem por serem pobres e não terem espaço para poupar – o efeito é a queda da demanda global efetiva, ou seja, o consumo e comércio popular deprimem, levando consigo a arrecadação dos impostos que bancaria o próprio ajuste. O resultado é algo como o cachorro correndo atrás do rabo. Corte de gastos que diminuem a demanda e arrecadação, que redundam em mais cortes para cumprimento da meta fiscal, aprofundando ainda mais a recessão. Esse é o cenário de países como Espanha e Grécia.
No caso brasileiro há uma particularidade que aumenta a contradição. Concomitante à austeridade fiscal, o Bacen aumenta consideravelmente a taxa básica de juros da economia, Selic. De dezembro do ano passado até agora, os juros básicos saltaram 2,5%, alcançando incríveis 13,75% na última reunião do Copom. Essa subida eleva consideravelmente os gastos com o serviço da dívida, o que anula todo o esforço de contingenciamento e cortes. É o que constata o economista e ex-diretor do Bacen, Carlos Thadeu de Freitas. Em artigo publicado ontem (11/6) no Brasil Econômico, lemos que:
“(…) os juros incidentes sobre a dívida aumentaram expressivamente, alcançando R$ 146 bilhões no quadrimestre de janeiro a abril — quase a metade do serviço da dívida do ano anterior (R$ 311 bilhões) e um aumento nominal de 82% em relação ao primeiro quadrimestre de 2014.”
Patrocinando a própria ruína
Enquanto isso, na União Europeia, o mesmo mercado esperneia, mas por motivo inverso. No velho mundo os dealers fazem birra e chantageiam por afrouxamento quantitativo, que é basicamente a criação de dinheiro público pelos Estados nacionais e transferência para o setor financeiro privado, os bancos. Por lá, os países estão bem mais endividados que o Brasil, e curiosamente não há histeria em torno da deterioração fiscal e crescimento da dívida pública.
Numa perspectiva global, o que se apresenta é a transferência bruta, pura e simples, dos recursos que anteriormente iriam para a população, ao sistema financeiro internacional. Quando o Banco Central do Brasil aumenta os juros e o governo corta gastos, ou quando o Banco Central Europeu reforça o afrouxamento quantitativo e as nações europeias cortam gastos, o que acontece é a transferência direta de dinheiro público para os gordos cofres do cartel financeiro.
Temos então, nas palavras da ex-auditora da Receita Federal e coordenadora do movimento Auditoria Cidadã da Dívida Maria Lúcia Fatorelli, “um mega esquema de corrupção institucionalizado”, o sistema da dívida pública. Em entrevista a CartaCapital, explana ela que:
“Depois de várias investigações, no Brasil, tanto em âmbito federal, como estadual e municipal, em vários países latino-americanos e agora em países europeus, nós determinamos que existe um sistema da dívida. O que é isso? É a utilização desse instrumento, que deveria ser para complementar os recursos em benefício de todos, como o veículo para desviar recursos públicos em direção ao sistema financeiro. Esse é o esquema que identificamos onde quer que a gente investigue.”
O sistema da dívida é sintoma e prova cabal de que o capitalismo financeiro desregulado se vê as voltas com a dura realidade de que é incapaz de produzir riqueza e prosperidade, tendo por isso passado a usar de sua influência corruptora para simplesmente parasitar os Estados Nacionais e seus povos.
As políticas de desregulação e liberalização dos mercados, em seu tempo, promoveram e promovem concentração absurda de riquezas. Não é por acaso que a Oxfam, ONG britânica especializada em desigualdade, diz que em 2016 o 1% mais rico da população mundial deterá mais de 50% de toda a riqueza existente.
A desigualdade crescente e o crescimento da pobreza ameaçam a democracia liberal e o capitalismo, pois os extremamente ricos terão que, cada dia mais, recorrer à força e violência para conter a maioria desprovida de recursos, o que nos arrastará a um regime autocrata e oligárquico, sujeito a desestabilização e derrubada por crescentes revoltas populares. Será que a elite global continuará patrocinando a própria ruína?
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Rennan Martins é jornalista