Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Nem todo jornalista é cretino

Chamada na 1ª página da Folha, 24.jan.2002

 

 

O filme Cássia Eller é um tributo reverente e bonito à excepcional cantora que o Brasil perdeu em 29 de dezembro de 2001.

Esteticamente, sua maior limitação é contar em clima de calmaria uma vida que navegou em meio a borrascas. No gogó e no comportamento, Cássia ousou, arriscou e incomodou. O documentário, em cartaz em várias cidades, é convencional: não ousa, não arrisca e não incomoda.

Seria como executar em andamento larghetto uma sinfonia inspirada em vida vivida em vivace.

Ou narrar em ritmo vagaroso a trajetória de personagem que se distinguiu pela ação.

Mas estas linhas não se propõem a fazer uma crítica artística do bom filme do diretor Paulo Henrique Fontenelle.

E, sim, apontar uma enorme infelicidade na reconstituição histórica do noticiário sobre a morte da grande artista.

O cineasta, que responde por direção, roteiro e edição, dá a entender que o conjunto do jornalismo veiculou a versão de que Cássia Eller teria morrido devido a overdose ou por consequência de ingestão de alguma droga nos minutos, horas e dias que antecederam seu falecimento numa clínica pertinho do Largo do Machado, aqui no Rio.

O filme mostra uma revista semanal com a capa “Drogas: mais uma vítima” e exibe cena de um programa dominical de TV especulando sobre marcas de agulhas no corpo do melhor intérprete de “Por Enquanto”.

Emenda com um empresário da cantora avacalhando o jornalismo em bloco e enfatizando que o Instituto Médico Legal atestou que a causa da morte não foi o efeito imediato de droga.

Jornalismo e jornalismo

Ignoro se Fontenelle ou eventual entrevistador a seu serviço perguntou ao empresário como ele tomou conhecimento da descoberta dos peritos.

Muito provavelmente, pelo mesmo meio pelo qual os brasileiros souberam que Cássia não perdeu a vida em virtude de overdose: o trabalho suado, rigoroso e escrupuloso de jornalistas.

Para mim e, tenho convicção, muita gente, Cássia não seria maior ou menor por ter ou não se drogado antes da despedida. Mas tinha relevância pública, portanto jornalística, a informação sobre por que ela morreu.

Muitos jornalistas, de repórteres a editores, recusaram-se a tirar conclusões levianas, sem amparo científico. Noutras palavras, rejeitaram o sensacionalismo e a irresponsabilidade.

Não é fácil. Para quem não é jornalista, conto como funciona: um repórter enfurnado em um episódio momentoso como aquele é constantemente cobrado. “O portal tal”, “o jornal tal”, a “revista tal”, a “emissora tal” publicaram determinada notícia. “Nós temos a informação?”, ouvem os repórteres. “Por que não?”, indaga-se, em caso negativo. É preciso serenidade para suportar a avalanche de rumores, cascatas e diz-que-diz sem lastro em fatos checáveis e comprováveis. Uma tremenda pressão, no ambiente competitivo do mercado de notícias.

A morte de Cássia Eller teve dois desdobramentos jornalísticos marcantes, além da evocação de sua obra e sua vida: qual teria sido a causa da morte; e a aparição do pai da cantora reivindicando na Justiça a guarda do neto (o cidadão foi mal sucedido na jogada oportunista).

Furo

Enquanto o jornalismo que se contentava com chutes e apelações esqueceu da investigação científica e legal, o jornalismo digno do nome corria atrás do laudo pericial. A edição de 24 de janeiro de 2002 da Folha de S. Paulo', quase um mês depois da morte, trouxe na primeira página um furo bombástico intitulado “Droga não aparece no exame de Cássia Eller”.

Assim abria a reportagem “Exames não encontram drogas em Cássia”, de autoria da repórter Fernanda da Escóssia:

“Os primeiros resultados dos exames toxicológicos realizados pelo Instituto Médico Legal do Rio não encontraram drogas entorpecentes nem álcool no sangue, nas vísceras ou na urina da cantora Cássia Eller. A única substância encontrada foi xilocaína, um tipo de anestésico dado a Cássia na clínica Santa Maria, em Laranjeiras, durante as manobras médicas feitas nas tentativas de ressuscitação da cantora”.

Na virada de janeiro para fevereiro, o laudo final reiterou os “primeiros resultados”.

Entre os jornais pesquisados em Cássia Eller', informam os créditos ao fim do filme, não estava a Folha. A produção ignorou o diário de maior circulação nacional. Acontece.

Mas será que em meses ou anos de pesquisas jamais ouviu falar de como as pessoas, mesmo as mais próximas de Cássia, souberam da verdade sobre a morte?

Se o roteirista, diretor e editor tinha a informação e não a usou, para condenar o jornalismo no atacado, seria eticamente gravíssimo. Certamente não foi isso o que ocorreu.

Caso não tenha apurado a informação, houve falha incrível de pesquisa.

Razão de viver

Resolvi escrever este post porque creio ter passado do limite razoável a demonização do jornalismo e dos jornalistas, como se fôssemos todos iguais: seres detestáveis, cretinos sem compromisso social e prontos para maltratar covardemente quem aparecer pela frente.

Ou, por outro lado, dispostos a se dobrar a exigências indecentes.

Crítico contumaz que sou do jornalismo em vigor, penso ter certa autoridade para falar: nós não somos assim, praticantes de atos “moralmente indefensáveis”, na acepção da ensaísta norte-americana Janet Malcolm.

Ao menos, não somos todos assim.

Acreditar nessa ladainha seria como afirmar que todo documentário sofre de pesquisa indigente.

Há filmes e filmes, bem como jornalistas e jornalistas.

Não somos poucos os que nos dedicamos de modo insano ao jornalismo e o abraçamos como nossa razão de viver, em sua concepção mais generosa e democrática: mesmo quando exercido por companhias privadas, o jornalismo é o serviço público que tem como essência colher, processar e difundir informações.

Em 2013, é evidente que houve manipulação em muitas coberturas das jornadas de junho. Mas a imensa maioria dos repórteres que foram às ruas prestaram um inestimável serviço público ao informar. Além de intimidar policiais militares mais trogloditas e impedir massacres de manifestantes.

Contar o noticiário da morte de Cássia Eller como se todo o jornalismo tivesse sido leviano ou criminoso insulta os fatos e despreza a memória.

Desrespeita quem, mesmo remando contra a maré, negou-se a linchar uma pessoa, inesquecível pessoa, que não podia mais se defender.

(Transparência: a autora do furo sobre a causa da morte de Cássia Eller, jornalista Fernanda da Escóssia, tem a sorte ou o azar de ser casada com este blogueiro há quase duas décadas. Quem quiser achar que escrevi este texto por motivos pessoais, e não jornalísticos e históricos, que ache, mas estará errado. Fã de Cássia, Fernanda se emocionou e chorou muito ao assistir ao filme de Paulo Henrique Fontenelle.)

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Mário Magalhães é jornalista