‘Mais uma vez o governo Lula levou para o campo pessoal uma crítica – desta vez realmente desairosa e irresponsável, mesmo que em alguns locais já se tivesse ouvido menção a um suposto excesso alcoólico.
O PT vem demonstrando um gosto exacerbado pelo arbítrio e, totalmente incapaz de digerir ou aceitar qualquer crítica mais robusta, expulsando aquele que ousar nadar contra a corrente imposta. A expulsão dos petistas chamados de rebeldes é uma prova cabal disso.
Em 1970, a ditadura militar expulsou o jornalista francês François Pellou, diretor da agência France Press no Brasil, por ele ter ousado (sic) divulgar a lista dos presos que iriam ser trocados pelo embaixador suíço, então seqüestrado, o que havia sido terminantemente proibido pelos militares. O mecanismo utilizado foi o mesmo, a cassação do visto, e a explicação para o arbítrio quase a mesma: agir contra a nação e seus interesses.
A reportagem do americano Larry Rohter, do jornal The New York Times, prima pela má-fé, uma vez que os supostos excessos não estão nas discussões ou nas preocupações nacionais.
Na sua coluna que sai como matéria paga em diversos órgãos da mídia impressa, o engenheiro Leonel Brizola confirma que foi uma das fontes de Rohter e vai além, afirmando que, desde 1998, se preocupa com Lula, no que tange a bebidas destiladas. Diz que, na época, ao conviver mais com o presidente, teria se impressionado. Mas nunca disse nada, deixando para pegar uma carona em momento difícil, como de hábito.
O ato de cassar o visto de trabalho do jornalista é extremo e transformou um fato apenas desagradável, que poderia ter sido enfrentado de diversas outras maneiras e ficar circunscrito a uma crise com o NYT e o profissional, em assunto internacional. Tirou Lula da posição de, vamos dizer, vítima, e colocou-o na de algoz.
O núcleo governista tem falado em amordaçar os órgãos de imprensa e seus profissionais, a qualquer notícia ou opinião desagradável que tenha repercussão e ponha o governo a nu diante de alguma situação provocada por ele mesmo.
José Dirceu e Luis Gushiken (este, segundo se diz, favorável à expulsão de Rohter) são os que mais acenam com essa possibilidade, esquecendo-se de que, se a imprensa não tivesse forçado o caminho e enfrentado a censura, eles próprios não seriam hoje figuras nacionais e, muito menos, estariam no governo federal e na Presidência da República.
A expulsão de Larry Rohter foi decidida sob impacto emocional e pode ser vista até como ‘um momento de privação de sentidos’. Como tal, pode e deve ser revogada. É parecida com a forma com que os bingos foram proibidos, dias depois do próprio governo haver anunciado projeto de lei para a sua regulamentação.
Lula sentiu a nação ultrajada com a reportagem do jornal americano, mas 54% de 10 mil entrevistados pelo jornal O Estado de S. Paulo não se sentiram ofendidos pela matéria em questão; outros, se sentiram ofendidos, mas envergonhados com a atitude do governo brasileiro.
Como envergonhado deve estar o país e, em especial, devemos estar todos nós, jornalistas. Também podemos, ou devemos, começar a pensar em que a qualquer momento pode-se pedir a cabeça de qualquer um de nós por uma reportagem ou artigo que desagrade aos czares da vez.
De qualquer forma é estranho que a reportagem de Larry Rohter, que nunca conseguiu uma entrevista exclusiva com Lula, tenha saído no exato momento em que uma outra reportagem com o presidente estava para ser publicada pelo mesmo jornal, o que não deve mais ocorrer.
O governo fez tudo errado: primeiro caiu na defensiva, com explicações desnecessárias. Depois, extrapolou, retirando o visto de trabalho do jornalista. Agiu por impulso e também, mais uma vez, se confundiu com o país. Newton Rodrigues escreve nesta página às sextas-feiras’
Dora Kramer
‘Nada com isso’, copyright Jornal do Brasil, 14/05/04
‘Há quem considere, e não é pouca gente, que os protestos contra a cassação do visto de permanência do jornalista Larry Rohter no Brasil são produto de reação corporativista da imprensa que estaria, com isso, defendendo seu direito de caluniar impunemente.
Nada que um jornalista diga a respeito seria capaz de alterar essa certeza. Tentemos, então, através das palavras do escritor, poeta e dramaturgo Bertold Brecht no poema Intertexto.
‘Primeiro levaram os negros
Mas não me importei com isso
Eu não era negro
Em seguida levaram alguns operários
Mas não me importei com isso
Eu também não era operário
Depois prenderam os miseráveis
Mas não me importei com isso
Porque eu não sou miserável
Depois agarraram uns desempregados
Também não me importei
Agora estão me levando
Mas já é tarde
Como eu não me importei com ninguém
Ninguém se importa comigo.’
Brecht também é autor de O analfabeto político.’
Reinaldo Azevedo
‘Amicus Singer, sed magis amica veritas’, copyright Primeira Leitura (www.primeiraleitura.com.br), 14/05/04
‘Adaptei a versão latina de uma frase atribuída a Aristóteles – que a teria dito em grego, é claro! – para o jornalista e professor de ciência política André Singer. Só para ilustrar: a tradução do que vai no título é a seguinte: ‘Sou amigo de Platão, mas a verdade é mais amiga’, ou, numa versão melhor aos nossos ouvidos: ‘Sou amigo de Platão, mas mais amigo da verdade’. Com ela, Aristóteles queria deixar claro que seguia de Platão o que considerasse correto, o que não se chocasse com o que lhe parecia verdadeiro. Serve de emblema à divergência civilizada. E assim hei de fazer com o porta-voz da Presidência: ‘Sou amigo de Singer, mas mais amigo da verdade’.
Começo por relatar uma hesitação minha, aqui dos bastidores de Primeira Leitura, aqueles que não chegam aos leitores. No começo da tarde de quarta-feira, a editora Vera Magalhães, talvez hoje a mais competente repórter de política do país – porque consegue somar rigor e formação intelectual com precisão técnica e desassombro diante da notícia (não faz compadrio com fontes) -, relatou-me que Singer havia sido um dos defensores da cassação de visto do jornalista Larry Rohter. Há mais de três anos no site e na revista Primeira Leitura, Vera jamais nos levou a ter de retificar uma informação. E aqui confesso meu deslize: ‘Não é possível, Vera, André não faria isso. Acho que está havendo alguma confusão aí. Ele é porta-voz. Na sua função, não tem voz própria, mas porta a voz do presidente. Há um cheiro de ruído aí’.
Vera havia cruzado a informação com várias fontes, como deve ser. Sua dúvida era nenhuma. Paciente, seguiu a minha orientação e procedeu ainda outra vez à verificação. Porque altiva, porque séria, porque investida de todas as qualidades que faz a excelência jornalística, chegou a vez de ela me questionar, como deve ser, depois de confirmado o que, já à partida, nem pedia confirmação: ‘Reinaldo, por que você não pôs em dúvida a adesão dos outros nomes à punição e só duvidou que o André a tivesse apoiado?’. Restou-me pedir-lhe desculpas.
A resposta que não consegui lhe dar com exatidão na tarde de quarta segue agora. Não posso me dizer propriamente ‘amigo’ de André, como pode levar a supor o título deste texto, mas, vá lá, um bom conviva de algumas conversas sempre muito proveitosas, pessoalmente ou por telefone. Depois que assumiu o cargo, é verdade, só nos falamos uma única vez, numa festa de seu aniversário. Mas guardo boas lembranças de quando decidi tê-lo como colunista da revista. Sabia estar abrigando o texto de um profissional sério, correto, bom pensador e bom formulador.
As nossas divergências nunca precisaram ser omitidas para que a conversa ganhasse a boa fluência. A única ‘orientação’, se assim posso classificar, que recebeu foi a seguinte: ‘Faça o melhor’. Bastava para quem sabe tanto e é tão capaz. André manteve sua coluna até novembro de 2002, um mês depois, portanto, da vitória de Lula. Por mim, teria continuado se quisesse. Ele preferiu suspender a coluna. Nesse tempo, convivi com um democrata e um bom pensador. Lamento flagrá-lo agora no que considero um erro grave. Comentarei, nesta edição, o texto que o porta-voz da Presidência da República publica na página A-3 da Folha de S.Paulo nesta quinta-feira. Ali, Singer faz a defesa da medida adotada pelo governo. O texto de Singer segue em itálico, interrompido por comentários meus.
O governo brasileiro não poderia ficar inerte diante das ofensas à honra e à autoridade do presidente da República. Mas a decisão de cancelar o visto temporário de um correspondente do New York Times no Brasil não constitui nenhuma tentativa de cerceamento à liberdade de imprensa. Tanto é assim, que o jornal norte-americano está autorizado a enviar ao país, tão logo queira, o jornalista que bem entender para substituir o correspondente que teve seu visto cancelado.
Confesso que não entendi direito duas coisas no trecho acima: no primeiro período, o autor diz que o governo não poderia ficar inerte. E abre o segundo período com uma conjunção adversativa: ‘mas’. E isso faz supor que vá, então, apor ao primeiro um segundo período que expressa uma idéia adversa, na contramão do que enunciara antes. E qual seria essa adversativa? A negação de que esteja em curso uma ‘tentativa de cerceamento à liberdade de imprensa’. Assim, o não-cerceamento só pode se ligar à decisão de não ficar inerte por meio de um liame opositivo. ‘Não cercear’, escreve o autor, está em oposição a ‘não ficar inerte’, e isso nos faz supor, invertendo o sinal da proposição, que à inércia haveria de corresponder o cerceamento, o que não faz nenhum sentido. Não que Singer, usualmente, não seja dono de um texto excelente. É. O problema é que há uma incompatibilidade, no universo dos fatos, entre a decisão apoiada pelo porta-voz e a preservação da liberdade de imprensa. A linguagem não oferece um caminho que possa conciliá-las. E Singer deve saber disso.
Meu segundo estranhamento tem a ver com aquela que, para o autor do texto, é a evidência que não se quer cercear ninguém: ‘o jornal norte-americano está autorizado a enviar ao país, tão logo queira, o jornalista que bem entender para substituir o correspondente que teve seu visto cancelado’. Ora, o que vai entre aspas só demonstra que a Constituição ainda não foi revogada no país. Mas sabe Singer, como todos sabemos, que o texto legal a que recorreu o Ministério da Justiça para decidir a expulsão de Rohter é a lei 6.815, de 19 de agosto de 1980. Uma lei da ditadura. De todo modo, dada a argumentação de Singer, o jornal americano pode mandar quem quiser desde que o enviado se abstenha de escrever o que o governo não quer.
Esse eventual substituto, junto com o outro correspondente do New York Times, que permanece no Brasil, encontrará aqui, garantida pela Constituição Federal, a mais irrestrita liberdade de trabalho e de expressão, equivalente àquela que é assegurada aos jornalistas brasileiros.
Ora, mas é justamente essa ‘mais irrestrita liberdade de trabalho e de expressão’ que se está tentando tolher com a expulsão. Ademais, jornalistas brasileiros já falaram sobre a predileção do presidente por bebidas alcoólicas. Se não podem ser banidos, como Rohter, devemos, então, esperar uma escalada de punições também aos nativos? O pior, meu caro Singer, de flertar com o autoritarismo é lançar uma sombra de suspeição sobre a boa vontade presumida das autoridades.
Como se sabe, o Brasil é hoje um dos países mais livres do mundo no que diz respeito à liberdade de imprensa, e este governo tem um compromisso inarredável com essa conquista da humanidade, que é o direito de expressar o pensamento. As críticas mais duras, as revelações mais chocantes ou as brincadeiras apimentadas não sofrem nem sofrerão censura de nenhum tipo no Brasil.
Mais do que isso, as forças políticas que elegeram o governo Lula têm orgulho de haver participado ativamente das lutas dos anos 1970 e 1980, que nos permitiram chegar ao elevado grau de liberdade de imprensa existente no país. O credo democrático, que implica o respeito absoluto à liberdade de expressão, está na biografia do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, bem como na sua presente ação governamental.
Chega a ser penoso ter de reiterar a Singer que a decisão de expulsar um jornalista é a contestação prática de tudo o que ele arrola acima na forma de princípio e memória histórica. Um regime de liberdades só existe como tal se se mostra na prática. Numa crítica que fiz à Fenaj (Federação Nacional dos Jornalistas), lembrei os padres da Inquisição que encomendavam a alma dos condenados à fogueira, rezando ao lado das vítimas. Talvez houvesse entre eles cínicos e aproveitadores, mas certamente havia também os que acreditavam que aquele sacrifício era, na verdade, benéfico ao punido, que poderia então expiar seus pecados e chegar purificado à presença de Deus.
Só assim, só pelo caminho da punição que purifica, só envergando as vestes do sacerdote inquisitorial, esses dois parágrafos escritos por Singer podem constituir o corpo argumentativo de uma tese essencialmente autoritária. Ademais, meu caro André, chega a ser cinismo, certamente involuntário, evocar as forças que construíram a moderna democracia brasileira recorrendo a uma lei da ditadura militar, aquela mesma com a qual todos queríamos acabar. Você tem razão, André: o estoque democrático não oferece instrumentos para justificar a decisão, por isso, vocês foram buscar no arquivo morto da ditadura o instrumento para conciliar a ‘não-inércia’ com a ‘liberdade de imprensa’.
O que está em jogo aqui não é a liberdade de imprensa, e sim a responsabilidade necessária na utilização de um instrumento poderoso como é a divulgação de informações em um veículo de repercussão mundial.
Poderia esperar um pouco mais para interromper, mas faço-o já, porque há algo de aparentemente irrelevante nas linhas acima, mas que contamina de forma importante o resto da argumentação. Parece que Singer considera que o fato de ser o NYT um ‘veículo de repercussão mundial’ agrava o problema. Ora, fosse um tablóide de Arapiraca, mudaria o princípio? As decisões do governo brasileiro estão agora subordinadas ao sucesso ou insucesso dos veículos de comunicação? Lembra-se da imagem universalmente difundida da Justiça, André? Ela tem os olhos vendados. Não descrimina o punido, mas busca adequar o tamanho da punição ao tamanho da culpa.
Do mesmo modo que a liberdade de exercer a medicina não pode impedir que se proíba de clinicar a um médico que deliberadamente mata seus pacientes, a liberdade de imprensa não pode servir de pretexto para ser leniente com quem difama, injuria e calunia. É por isso que os jornalistas, de acordo com a legislação brasileira, têm que responder na Justiça quando acusados de cometer um desses três tipos de crime.
Não faça isso, André! Não você! Há uma praga (ops!) nesse governo, todo ele contaminado por metáforas médicas. Trai, talvez, uma vocação inconsciente a opor ‘doutores sanitaristas’ – o governo – aos ‘doentes’, todos nós. É uma vertente higienizante do velho e conhecido paternalismo. E eu ousaria dizer que é especialmente perigosa porque, vê-se, estimula cordões de isolamento e tentativas de quarentenas purificadoras.
Ademais, para que a metáfora do porta-voz fizesse sentido, forçoso seria que Larry Rohter tivesse tentado a deposição de Lula, o equivalente, vá lá, do ‘médico que mata deliberadamente seus pacientes’. Rohter, no máximo, André, cometeu um ‘erro médico’. Não lhe parece excessiva a punição? A pena segundo o delito. Lembra-se do Estado de Direito? Se o correspondente do Times ‘injuriou, difamou e caluniou’ – ou seja, se ele atribui ao presidente uma prática criminosa (o que não me parece) -, eis aí matéria que deveria, ao menos, ser submetida ao crivo das leis do Estado de Direito. E então fica claro mais uma vez: como a democracia não oferece o instrumento para a execução sumária, o Planalto não hesitou em recorrer ao bolor ditatorial. E com o seu apoio e estímulo.
A decisão do governo foi tomada de forma refletida e ponderada.
Não foi, não! Um governo que pondera, no mínimo, ouve o seu ministro da Justiça. Nem a esse trabalho vocês se deram.
Ao ter conhecimento da notícia, no sábado, 8 de maio, o governo aguardou quase 24 horas para ter noção exata do conteúdo do texto e da forma da publicação. Tratava-se de uma longa reportagem, que ocupava toda a metade superior de uma página dominical do New York Times, acompanhada por foto do presidente na Oktoberfest.
O conteúdo era, em resumo, o seguinte: haveria um problema de governabilidade no Brasil, em decorrência do abuso de álcool pelo presidente da República. Em apoio a essa tese, eram apresentadas frases e piadas pinçadas aqui e ali, emitidas por fontes sem nenhuma confiabilidade para o caso. Além desses excertos, havia referências a improvisos do presidente, a suas relações familiares e a ‘histórias’ supostamente ‘contadas’ em Brasília. Enfim, um misto de invencionice, leviandade e má-fé apropriado a um obscuro tablóide sensacionalista, não ao New York Times. Convém assinalar que nenhum veículo da grande imprensa brasileira acolheria texto daquele teor.
O porta-voz argumenta contra si mesmo. O tempo de espera que ele evoca, pelo visto, não foi o suficiente para que se fizesse a coisa certa. Ou o governo e o próprio porta-voz estão satisfeitos com a dimensão que o caso tomou? Saiu ganhando a imagem pública de Lula? Está hoje o país em melhor sítio do que estava antes da decisão de expulsar o jornalista do Times? A lembrança de que os jornais brasileiros não publicariam matéria como aquela não deve servir de justificativa para a decisão tão autoritária quanto atabalhoada. Não vejo como, a exemplo do que sugere seu texto, a lembrança dos ‘improvisos do presidente’ possa ser listada entre as evidências de má-fé. Ainda que tudo o mais no texto de Rohter fosse mentira, esse dado surgiria como verdade evidente, muitas vezes noticiado pela mídia nativa.
Singer tem o direito de duvidar das ‘fontes sem nenhuma credibilidade’ de Rohter. Só não pode usar tal argumento como esbirro a sustentar a sua expulsão. Até que a Secom não crie o Comissariado para as Fontes Confiáveis e obrigue os jornalistas a recorrer a elas, caberá aos leitores do Times ou de quaisquer outros veículos julgar a credibilidade das fontes ouvidas pelos profissionais de imprensa. Não custa lembrar que Donald Rumsfeld, o secretário de Defesa dos EUA, costuma reclamar das ‘fontes’ da imprensa americana, especialmente aquelas ouvidas pelo NYT… Quanto às ‘piadas’, André: pode ou não pode publicar ‘brincadeiras apimentadas’?
Mesmo quando constatado que a reportagem, publicada em um jornal de vasta repercussão e credibilidade internacional, trazia graves danos à imagem do Brasil e do presidente da República, com óbvios prejuízos para a política externa do país e para as nossas instituições, o governo decidiu aguardar antes de tomar uma medida.
Vale interromper aqui. Eis a distorção de fundo, publicada com todas as letras: o texto de Rohter, com efeito, não ajuda a imagem de Lula, mas é pura mistificação e megalomania afirmar que traz ‘graves danos à imagem do Brasil’. Ou as críticas feitas, mundo afora, a George W. Bush, o presidente americano, também causam ‘graves danos à imagem’ dos Estados Unidos? Ao contrário, meu caro André: elas só podem fortalecer aquele país, distinguindo a nação de seu mandatário de turno. Talvez todos consideremos justas e legítimas as críticas a Bush e talvez ainda todos consideremos injustas e ilegítimas as críticas ao presidente Lula. Mas não é nosso juízo pessoal, mormente quando investidos da função pública, que nos confere uma moralidade especial para punir.
De resto, prejuízo mesmo ao país foi esse provocado pela decisão do presidente, que contou com o seu apoio, aquele no qual não acreditei – porque vindo de um jornalista com sólida carreira na imprensa brasileira, porque vindo de um cientista político que fez da crítica à formação autoritária do Estado brasileiro um caminho sempre luminoso, muitas vezes trilhado por seus alunos na Universidade de São Paulo. Por isso cheguei a duvidar, injustamente, da apuração de uma jornalista. Esperava que você fosse o Diógenes da hora, ainda que todos à volta advogassem a escuridão. Agora sei que você ajudou a apagar a luz.
Determinou-se ao embaixador do Brasil em Washington que procurasse a direção do New York Times, com vistas a alertar o jornal para a gravidade do erro de ter editado um texto incompatível com qualquer publicação séria. Esperava-se assim que, uma vez percebido o erro cometido, o jornal publicasse uma retratação que reparasse o dano infligido. Essa retratação poderia nos proteger de futuros ataques irresponsáveis à honra do presidente e do país.
Espanta-me que você use o desfrute a que se entregou o embaixador como argumento em favor de sua tese. Embaixadores devem falar com representantes oficiais de governos. Mobilizá-los para bater boca com jornalistas evidencia despreparo e desvio de função. Se alguém deveria ter-se mobilizado para contestar o NYT, esse alguém deveria ser Gushiken, uma pessoa qualquer da Secom ou até mesmo você, que porta a voz do ofendido.
Se o texto era ou não compatível com a seriedade do NYT, admita, é um juízo que você pode, sim, fazer, mas que está completamente descolado da decisão de expulsar Rohter. Não é porque a seriedade do jornal americano foi manchada que vocês optaram pela expulsão, não é mesmo? E também acho notável que você escreva que o governo esperava a retratação do ‘erro’ do jornal. Então foi apenas um ‘erro’, não um complô, certo? A democracia brasileira pune erros de jornalistas com a expulsão sumária? Lembro de novo: não é por acaso que vocês tiveram de abrir o arquivo morto da ditadura para encontrar uma lei que fosse do agrado.
E também fico bastante comovido ao verificar que, nas dimensões evidentemente diminutas que tem o episódio, o grupo pró-punição, integrado por você (para a surpresa minha e a de muitos), resolveu criar a versão local do ‘ataque preventivo’, aquele da doutrina Bush: vamos cobrar a retratação para ‘proteger de futuros ataques irresponsáveis à honra do presidente e do país.’
Apenas quando ficou clara a indiferença do jornal norte-americano pelos danos produzidos ao Brasil, decidiu-se, 72 horas depois de a notícia ter começado a circular, pelo cancelamento do visto temporário do autor da referida reportagem. Se o jornal tivesse reparado o erro cometido, o governo teria aceitado as desculpas, ainda que elas dificilmente anulassem os prejuízos já causados. Diante da simples reiteração das calúnias publicadas, já que a porta-voz do New York Times considerou a reportagem ‘correta’, tornou-se necessário tomar as medidas cabíveis.
Eis o ponto. As medidas são descabidas, a começar já do esbirro legal que a sustenta: uma lei da ditadura, um entulho autoritário que restou. Prejuízo, de verdade, causaram vocês, os que defenderam – e saíram vitoriosos – a punição. Ninguém, André, sabe você muito bem, nem aqui nem em qualquer lugar do mundo, tem especial interesse em prejudicar o presidente Lula ou o Brasil. A menos que o exercício de teorias conspiratórias seja a última porta encontrada pelo governo Lula para se justificar. O que vocês conseguiram foi exatamente o contrário do eventualmente pretendido: o presidente do Brasil, que recebera a solidariedade praticamente unânime no país e fora dele, passou a ser tratado pela mídia mundial e pela parcela da mídia brasileira não-encabrestada como alguém especialmente apto a recorrer ao estoque autoritário se a democracia não lhe fornece a saída pretendida.
Lamento dizer, André, mas vocês foram uns trapalhões, o que corrobora a minha tese, escrita ainda na segunda-feira, pré-expulsão. Mesmo sóbrio, o governo Lula se deixa embebedar por uma droga muito mais pesada do que o álcool: o poder. O que vocês conseguiram foi colocar o presidente do Brasil ao lado de democratas da estatura de um Mugabe. O que vocês conseguiram foi levar o caso para o Jornal Nacional, que o havia ignorado solenemente na segunda e na terça-feira. O que vocês conseguiram foi estimular a imaginação popular a formular uma enorme lista de ‘piadas apimentadas’, todas elas relacionando Lula ao álcool. O que vocês conseguiram foi tornar o episódio um emblema da tentação autoritária. O que vocês conseguiram foi solapar a imagem de um presidente afetivo, doce, amigo do povo, tão duramente construída – e não sem certa mistificação, é bom que se diga. Pior, meu caro André: vocês não conseguiram proteger Lula e o país de ‘de futuros ataques’, responsáveis ou irresponsáveis. Diria até que mesmo os ‘irresponsáveis’, agora, terão como alvo aquele presidente latino-americano que costuma cassar vistos de estrangeiros quando o que lê não é de seu agrado.
Você sabe, André, que tenho enormes restrições ao governo que você integra – o que não foi jamais óbice para que você escrevesse na revista que dirijo. Convivo bem com quem pensa diferente de mim, embora me entregue a chatices como esta. Se eu, que acho o governo Lula ruim de doer, tivesse sido ouvido, juro que teria aconselhado os mais exaltados a não tomar essa decisão. E tudo já teria se acabado na segunda-feira. Ah, André, é chegada a hora de vocês se protegerem de si mesmos! Um inimigo – não eu, hein? – infiltrado na cúpula do Planalto não poderia lhes ter dado pior conselho. E a prova é que vocês nem se deram ao trabalho de ouvir um amigo: o ministro Márcio Thomaz Bastos.
A referida reportagem foi produzida por um estrangeiro e publicada fora do Brasil, longe, portanto, da competência da Justiça brasileira. Sendo assim, a alternativa compatível com a gravidade do caso foi a de suspender o visto do correspondente para restaurar um ambiente de responsabilidade e respeito no trato dos assuntos públicos brasileiros.
Então tá. Não tenho o que dizer. Se você acha que argumentou bem até aqui para chegar a essa conclusão, só me resta convidá-lo a admirar a obra que você ajudou a esculpir. Você gosta do que vê, ouve e lê?
A liberdade de imprensa é um valor inquestionável para o governo Lula.
Não é, não! A tentativa de expulsar Larry Rohter a questiona.
Ao lado dela, também é dever do governo garantir o respeito ao Brasil e a suas instituições.
É, sim! Demonstre, o que não está demonstrado em seu texto, que o Brasil e as instituições foram desrespeitados por Larry Rohter. De resto, meu camarada, agora, como antes, as páginas (as de papel e as eletrônicas) de Primeira Leitura lhe estão abertas. Sincero nesta hora, como sempre fomos nas nossas conversas de antes, duvido um pouco que você queira ocupá-las. Um abraço sincero, amigo e fraterno! Torço, de coração, para que vocês saibam consertar o estrago feito. Torço para que vocês aproveitem a janela de oportunidades aberta pelo STJ para declinar do cálice do autoritarismo que lhes parece tão atraente – embora tenha cá as minhas dúvidas, dado que o governo elegeu também a Justiça como sua adversária. A ser assim, ouçam, então os adversários. Os amigos já produziram todos os desastres que era possível produzir.
Do amigo possível, Reinaldo’