Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Ninguém investiga mais nada (ou imprensa burro de carga)

Faz dois anos que parei de fumar, à força, porque há poucas coisas na vida mais prazerosas do que um trago. Tive que tomar esta atitude porque cada cigarro carrega veneno suficiente para derrubar um dinossauro – veja o filme O informante (Michael Mann, EUA, 1999), que expõe as vísceras das multinacionais do tabaco e o que elas fazem com as nossas vísceras por nos manter viciados feitos ratos de laboratório. Essa paranóia com o cigarro, porém, é coisa recente, que tem pouco a ver com o charme da fumaça liberada no cinzeiro ao lado da máquina de escrever de um tipo de jornalista incansável que também não existe mais há pelo menos duas décadas.

Acabou charme, acabou investigação. Ou melhor, foram trucidados. Nas redações, o que se faz são duas ou três pautas por dia. Esta é a média pelo menos no mercado de Cuiabá, Mato Grosso. Entre as factuais, sai mais uma matéria para o fim de semana – dita especial. A fórceps. Quem dita a vida de jornalistas hoje em dia não é a indignação, é o tempo.

Em nome do capital

Entendendo que a cada assunto abordado é infinito o leque de possibilidades de abordagens, limita-se apenas a um enfoque. E pronto. Senão fica impossível cumprir a missão do dia. Então, em vez de ouvir mais do que as medíocres duas partes envolvidas diretamente em qualquer imbróglio, a restrição a esta mordaça dos dois lados é o que resta aos repórteres avolumados de afazeres. E cobrados a todo momento.

Sendo assim, pensar é algo impensável. A ordem é o fazer: cumpra-se. Discutir, somente durante 10 minutos, nas pragmáticas reuniões de pauta, em que basta uma porta se abrir mais um pouco que isso para fluir a angústia coletiva das equipes, que, embora formadas por indivíduos, vai tomando corpo único, de pensar único, univitelíneo, monocrático. Aparentemente. No âmago, somos distintos e é esta diversidade que se perde na pressa.

Jornalista, hoje em dia, não tem tempo para discutir. Abafe indignações que distraem do oficial e saia para rua – é a lei. Pego a pensar sobre o porquê então de tanto avanço tecnológico, se o que isso faz é – inclusive – nos dar mais agilidade. Sobraria então tempo ao essencial. Porém, a mais valia segue todas as tendências e se aproveita de todas elas. Se há como ser mais rápido, então que sejamos em nome do capital.

Atestado de doido

Empresas de jornalismo estão entre as mais capitalistas, junto com as de educação – como a Universidade de Cuiabá (Unic), este império na cidade – e saúde – vide a Unimed – que domina isolada o mercado de enfermos na capital mato-grossense. E isso é muito nauseante porque triscam no que há de mais sagrado na vida: o direito à liberdade de expressão, o direito de estudar, o direito de tratar doenças.

Então, o que é preciso pontuar – salvo raras exceções – é que jornalista hoje é braçal, cujo suor resulta em matérias limitadas, cuja indignação está amarrada ao termômetro da opinião pública e não de transformá-la, e o que oferecemos, ao fim de um dia cansativo, são notícias pouco conferidas, rasas, que não dão o tom emocional dos fatos quase nunca, impessoais portanto, apegadas à coisa do ultrapassado lead americano, ainda, ainda, meu Deus, a serviço das manchetes. Propor discussões nas redações é levar um tapinha nas costas, como que a tocar um burro de cargas no tom do de novo “vá para a rua, seu chato”.

Dizer da necessidade de considerarmos emoções enquanto estamos a apurar os fatos é atestado de doido, como se sentir fosse atributo de tresloucados a perder a noção das coisas. Questionar é conduta que atrai olhares, quase todos do tipo “onde você quer chegar com isso, sabendo que não se vai muito longe sendo assim”. Chore, amigo, chore. Mas não mude de profissão, reinvente a imprensa. Esta é necessária sim.

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Repórter em Cuiabá, Mato Grosso