Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

No sol de quase dezembro: uma crônica para Caê

Por dever do ofício que escolhi, recebo todos os dias de manhã alguns jornais integrantes da chamada ‘grande imprensa’. Mas como pode ser chamada de grande uma imprensa que, mais uma vez, ignora uma premiação internacional recebida pelo presidente da República?

O prêmio ‘Chatham House’ de estadista do ano, recebido ontem [6/11] por Lula em Londres por sua atuação como ‘um motor-chave da estabilidade e da integração na América Latina’, é um prêmio jovem, porém a instituição que o concede anualmente desde 2005 goza de prestígio mundial. Não é, portanto, um premiozinho qualquer que mereça ser ignorado a ponto de não ganhar nem mesmo uma notinha de pé de página.

Sim, em pelo menos dois deles, não há sequer uma notinha, por menor que seja, em nenhuma editoria. Por contrários que muitos profissionais de imprensa sejam ao governo Lula e/ou à figura dele, abster-se de dar, ao menos, uma nota de rodapé sobre vitórias internacionais que não são de Lula – como ele mesmo fez questão de frisar –, mas sim, do povo brasileiro, me parece, no mínimo, a negação do direito à informação e, conseqüentemente, a negação do jornalismo.

Em 1994, nos meses em que se deu a implantação do Plano Real, o Brasil ‘contou’ com o jurista e diplomata Rubens Ricupero, como ministro da Fazenda. Flagrado em uma conversa secreta com o jornalista Carlos Monforte, atualmente na Globo News, Ricupero declarou: ‘Eu não tenho escrúpulos: o que é bom a gente fatura, o que é ruim a gente esconde.’ Quinze anos depois, a atuação da grande imprensa brasileira inverte a máxima: com o ruim se fatura, o bom precisa ser escondido. Bizarro gosto pela tragédia.

A ‘música’ que vem das redações

Lula, em discurso realizado dia 29 de outubro em São Paulo, feito de improviso para uma platéia repleta de catadores de lixo que, como ele bem lembrou, são tão cidadãos como qualquer outra pessoa, aconselhou os jornalistas presentes que ‘esquecessem a pauta dos donos de jornal e se misturassem àquela gente que ali estava’. Sábias palavras. O problema é que a matéria produzida sofreria muito para ganhar uma única notinha de pé de página.

Recentemente, Lula disse que ‘o papel da imprensa é informar, não é investigar’. Discordo: não há informação confiável sem investigação. No entanto, para publicar ao menos uma frase sobre a premiação que ele recebeu ontem, a ‘nobre e grande’ imprensa não precisaria sequer praticar este cansativo trabalho chamado investigação. No ambiente democrático da internet, a notícia se espalhou como pólvora, com direito a fotos de Lula segurando o diploma referente ao prêmio. Mais um para a vasta série: ‘todos os diplomas do presidente’.

À revelia disso, O Globo de hoje [7/11], além de ignorar o prêmio, tratou de ir mais longe, dando chamada de capa e página interior inteira a Caetano Veloso que, em entrevista ao Estadão, ‘no sol de quase Dezembro’, resolveu destilar preconceito ao chamar Lula de ‘analfabeto’. Haja lenço para tanta amargura!

Ontem [6/11] em Londres, Lula, contrariando sua praxe de improvisos (nos quais ele demonstra sempre uma oratória arrasadora, diga-se), terminou um de seus discursos, o qual leu (a propósito, analfabeto lê?), citando Drummond: ‘Temos apenas duas mãos, mas o sentimento do mundo’. Drummond é de um tempo em que ‘da sala de linotipos vinha a doce música mecânica’, como ele deixou registrado em seu ‘Poema do Jornal’. Hoje, os linotipos não existem mais e a ‘música’ que vem das grandes redações brasileiras é de uma dureza que faria inveja ao mais pesado heavy metal.

Matemática contestável

A distorção que existe entre a cobertura do governo Lula dedicada pela mídia internacional e a dedicada pela mídia nativa é algo que torna flagrante a partidarização de uma imprensa de mão única, que está entregue a um punhado de clãs retrógrados. Vem aí a I Conferência Nacional de Comunicação. Antes que ‘o som que vem das redações’ se torne de tal maneira ensurdecedor que jogue de vez por terra a credibilidade de uma profissão que já foi doce, se fazem urgentes medidas que possam reverter este quadro.

Já ouvi dizerem: ‘Ah, os jornalistas do exterior nem sabem onde fica o Brasil.’ Engano: acabou este tempo. O Brasil tem causado tanto interesse no mundo que, cada vez mais, correspondentes internacionais vêm fazer a vida aqui. Quem lê a maior parte das matérias que estes correspondentes enviam para seus países e quem lê os dados de uma pesquisa feita este mês pela empresa ‘Imagem Corporativa’, é levado a crer que, para jornais que vão do Washington Post ao Clarín, do Le Monde ao China Daily, nós vivemos num país que reflete com fidelidade as palavras de Lula em um de seus discursos de ontem: ‘O Brasil cansou de ser o país do futuro.’ Um país que nossas capas de jornal não conhecem e pelas páginas internas ele passa correndo.

Voltando às declarações de Caetano ao Estadão, repercutidas euforicamente pelo jornal O Globo de hoje [7/11], ele declarou ainda acreditar que ‘Marina é Lula mais Obama’. Marina, por sua vez, aproveitou a contestável matemática do baiano, e disse: ‘Isso (o que Caetano falou) mais do que agrega, congrega. Vai criando uma força de pensamento e de debate político que vai além de quaisquer candidaturas ou de acordos da política tradicional e coloca em cena a sensibilidade das pessoas.’ Será que, depois de toda a sua história política, ela realmente acha que alguém que chama publicamente Lula de analfabeto tem a intenção de fazer algo parecido com ‘congregar’ e de ‘colocar em cena a sensibilidade das pessoas’? Não posso crer.

Jornalismo ou ‘jornaleirismo’?

E Marina ainda fez questão de frisar que se sentia muito honrada, pois Lula e Obama são dois grandes estadistas. Apesar de a eleição de Obama ter representado um avanço inegável, o frisson que se tem feito em torno dele é bem maior do que o que de fato lhe cabe. E Marina também não está com essa bola toda, mas, ao que parece, é o que ela acha. Respeito muito a trajetória dela, mas é lamentável que ela esteja tão nitidamente fazendo o jogo da imprensa golpista e que, com o claro intuito de se promover, tenha se pronunciado de maneira tão oportunista.

Mas quem disse que a fatídica Folha de S.Paulo não noticiou o tal prêmio? Noticiou ontem mesmo, no próprio dia, um verdadeiro furo de reportagem. Tão falso quanto a ficha da Dilma e o câncer do Fidel. ‘Estatais patrocinam prêmio concedido a Lula em Londres’, era o título. E a matéria dizia: ‘A lista de empresas que patrocinaram ou apoiaram o prêmio que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva recebe hoje em Londres inclui três estatais (Petrobras, BB e BNDES), três empresas privadas brasileiras (Bradesco, Itaú e TAM) e várias companhias estrangeiras com interesses comerciais no país.’ Mentira deslavada de um jornal invejoso com o claro intuito de desmoralizar o prêmio e diminuir sua importância. A Petrobras ainda se deu ao trabalho de apresentar em seu blog ‘Fatos e Dados’ provas de que não patrocina o prêmio. Não sei se as outras empresas se pronunciaram de alguma forma, mas nem seria preciso: basta fazer uma pesquisa na extensa lista de membros e parceiros da ‘Chatham House’, disponível no site da instituição, para se constatar o tipo de prática da Folha.

Eu pergunto: isto é jornalismo? Ou ‘jornaleirismo’?

Síndico do Empire State

A Serra S.A. (patrocinada por Globo, Folha, Estadão e Veja, entre outros) não engole, de jeito nenhum, que um presidente com a origem humilde de Lula ostente 81% de avaliação positiva, tenha conseguido trazer as Olimpíadas de 2016 para o Rio de Janeiro e, agora, ainda ganhe mais um entre tantos prêmios. Quando Lula ganhou, em julho, o Prêmio da Paz da Unesco, a notícia até foi dada, com muito esforço, em páginas internas da grande imprensa. Isso porque era da Unesco. Sabe como é, são muitos prêmios num mesmo ano, isso incomoda. É grande a dor-de-cotovelo de determinados setores que não se conformam com o fim da ditadura. Imaginem o tamanho do baque que levarão se, confirmando-se a expectativa de muitos, a grande imprensa for obrigada a noticiar que Lula ganhou o Nobel da Paz?

Sinceramente, nem quero imaginar o que farão (ou deixarão de fazer). Mas uma coisa eu sei, por dever do ofício que escolhi: talvez chegue o dia em que, estando numa redação de jornal, já irritada com o calor de dezembro, eu ainda tenha que ouvir: ‘Pessoal, o FHC foi eleito síndico do Empire State! Vamos dar primeira página.’

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Jornalista