A polícia do governador do estado do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, declarando que usaram bombas de gás lacrimogêneo para ‘acalmar’ a população indefesa, sem transporte, alguns até arriscando a perder seus empregos para não falar nas suas integridades física e moral; o governo do presidente Lula fazendo uma dispendiosa propaganda na mídia, ao invés de simplesmente entregar aos familiares os cadáveres insepultos escondidos pela ditadura até hoje, em um regime supostamente democrático; o ministro da Fazenda declarando com toda clareza que o governo está retendo a devolução do Imposto de Renda cobrado a mais e que isto é um empréstimo, no fundo compulsório e ao arrepio da lei, para fazer frente às gastanças públicas.
Poderíamos nos alongar. Mas o comum nestes fatos é o tratamento burocrático, quase chapa-branca dado pela mídia. Que tal lembrarmos alguns esquecidos que se indignariam com estes acontecimentos? Para tal, nada como velhas histórias, grandes exemplos:
Era uma manhã cinzenta, não só pela meteorologia, mas pelo clima de desânimo que imperava naqueles dias após o golpe de 1964. Eu tinha ido ao centro do Rio comprar um livro e atravessava a Avenida Presidente Antônio Carlos acompanhado por meu pai. No meio da rua, em sentido contrário, vinha uma pessoa que, ao notar ter sido reconhecida, crispou o rosto e balbuciou nervosamente entre os dentes:
‘Não pare, posso estar sendo seguido!’
O meu pai disse apenas:
‘Não tem violência que impeça um abraço entre velhos colegas e amigos!’
As palavras e a cultura
O misterioso cavalheiro sorriu, misto de preocupação e satisfação, e desapareceu na multidão como por encanto. Era Orlando da Silva Rosa Bonfim Júnior, formado na Faculdade de Direito da Universidade de Minas Gerais, em 1937, e colega de turma do meu pai.
Orlando Bonfim foi advogado, jornalista e político, tendo dirigido o jornalNovos Rumos até 1964, quando foi cassado e entrou na clandestinidade. Em 1975 foi preso e assassinado com uma injeção para matar cavalos.
Enquanto pôde, andou pelas ruas armado apenas com as forças de suas ideias, tão temidas pela ditadura que até hoje não revelou o destino do seu corpo insepulto – devemos lembrar que a guarda deste segredo, hoje cabe ao governo federal e, em particular, aos ministros da Casa Civil e da Defesa.
A força bruta sempre temeu as palavras e a cultura, seja em forma de poesia, como os franquistas que fuzilaram o poeta Garcia Lorca, ou de música, como os partidários de Pinochet, no Chile, ao quebrar os dedos do compositor Victor Jara para depois obrigá-lo a tocar violão. Estes representantes do atraso montados na violência temem mesmo a delicadeza e a solidariedade humana de uma pequena-grande pessoa como a freira Dorothy Stang, executada no Pará.
Tempos de desvalorização
Mas a força da palavra contra o atraso obscurantista e a violência felizmente ainda não morreu. Hoje, quando tantos se calam vergonhosamente diante de injustiças e do retrocesso histórico brasileiro, com a volta à cena nacional das mais atrasadas aristocracias, encho-me de alegria quando da caatinga piauiense uma voz grita bem alto como se dissesse:Noli tangere circulos meos [no ano de 212 a.C., após um cerco de dois anos à cidade de Siracusa, na Magna Grécia, atual Sicília, esta foi capturada pelas legiões romanas. Quando a casa de Arquimedes – que com seus engenhos ópticos e mecânicos retardou ao máximo a queda da cidade – foi invadida pelos romanos, ele estava no quintal desenhando na areia suas figuras e estudos geométricos, quando um dos soldados pisou sobre os mesmos.Noli tangere circulos meos (não toque em meus desenhos), exclamou Arquimedes em seu precário latim, sendo imediatamente morto por uma lança, que destruiu fisicamente este velho filósofo e matemático. Mas não conseguiu eliminar o seu acervo intelectual, que, atravessando os séculos, chegou até nós].
Da juventude de seus 76 anos, em São Raimundo Nonato, contamos com a luta heróica da pesquisadora Niède Guidon na defesa dos Parques Nacionais da Serra das Confusões e da Capivara, onde estão os registros mais antigos da presença do Homem na América do Sul. Niède denuncia os políticos corruptos que somem com as verbas públicas, denuncia os fazendeiros criminosos ambientais que separaram os dois parques fisicamente e o populismo governamental que assentou um grupo de supostos agricultores entre os parques, no que seria um corredor ecológico, impedindo a migração de animais e destruindo o meio ambiente com suas atividades de desmatamento e caça ilegais.
Que a voz de Niède Guidon se junte à de muitos outros, mantendo vivas a Ciência e a Cultura, nestes tempos de desvalorização ética e cultural.
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Físico e escritor, Rio de Janeiro, RJ