Era uma vez três cavaleiros notáveis. Norman, o mais velho dos três, morreu no sábado (10/11), aos 84 anos, de insuficiência renal. A essa altura ele já deve ter-se encontrado no céu (ou no inferno) com o cavaleiro do meio, o Truman, que era apenas um ano mais jovem e chegado numas overdoses. Truman desmaiou pela última vez em 1984. O mais moço, Tom, aquele das gravatas excêntricas e dos trocadilhos pirotécnicos, ficou entre nós.
Norman, Truman e Tom têm muito em comum. Norman era politizado, combativo e egocêntrico; Truman, cativante, afetado e narcisista; Tom, inventivo, perspicaz e autocentrado. Os três estrearam na ficção quando jovens e rapidamente se tornaram vistosos no mundo das letras. No tempo em que surgiram (os anos 1950), ser escritor era uma fulguração.
Imperialistas no bom sentido (isso é possível?), Norman, Truman e Tom foram conquistando pouco a pouco a América e o mundo; e nutrindo concretamente o ideal da eternidade – entrar para o panteão dos romancistas inesquecíveis de todas as eras. Se Norman, Truman e Tom não atingiram suas metas olimpianas, é outra história. (Nada de mau agouro, Tom. Apenas uma provocação.)
A idéia de escrever o Grande Romance Americano (estou falando de ficção, claro) turbinou ou foi turbinada pelos egos imensuráveis de Norman, Truman e Tom? Tudo pode ser. O fato é que atiraram no que viram e revolucionaram o que não viram. Em meados dos incríveis anos 1960, o departamento das artes que mais precisava da energia desses três cavaleiros era o jornalismo.
Os três atenderam brilhantemente a essa demanda. Editores e subeditores deram-lhes carta branca. São especialmente antológicas as reportagens deles para revistas como Esquire, The New Yorker e New York (a revista de domingo do Herald Tribune). Tantas incursões certeiras pelo realismo do real causaram frisson no meio jornalístico-literário.
Sem amarras nem moralismos
De ‘promissores competentes romancistas’ passaram a ser vistos como ‘prodigiosos novos-jornalistas’, em referência à expressão Novo Jornalismo (new journalism). Na cobertura noticiosa sobre a morte de Norman Mailer, no sábado (10), repórteres de todas as idades trataram Novo Jornalismo como sinônimo de Jornalismo Literário, no que cabe um parêntese.
Sendo bem óbvio, é o seguinte: Jornalismo Literário é narrativa de não-ficção produzida e revelada com recursos da literatura. Os métodos são os da grande reportagem; as técnicas (somente as técnicas) são da literatura. E o tal Novo Jornalismo? É apenas o nome dado a um momento (uma fase) de grande excitação experimental e visibilidade do Jornalismo Literário norte-americano – os anos 1960 e 1970. Norman Mailer, Truman Capote e Tom Wolfe emprestaram seus talentos para esse modo, digamos, especial de exercer o jornalismo.
Como todo texto tem sua parcela parcial, ninguém precisa se preocupar com imparcialidades. Tampouco eu. Vovô Norman nos ensinou que o que se espera de um autor(a) é que ele(a) veja o mundo com seus próprios olhos e suas próprias palavras. Que o veja pelo viés ou ponto de vista de seu caráter.
Isso até nos ajuda a entender o que é estilo; também nos ajuda a entender o contexto em que Norman se projetou. Em 1968, o ambicioso romancista se voltou mais firmemente para a não-ficção, ampliando o território aberto pelo cavaleiro do meio Truman Capote com o seu A Sangue Frio (1966).
Norman escreveu as memórias de uma expressiva manifestação antiguerra do Vietnã da qual ele próprio participou – Os Degraus do Pentágono – que ocupou um número inteiro da Harper’s Magazine e saiu poucos meses depois em livro sob o título de Os Exércitos da Noite. Comparativamente, esse livro não teve o mesmo sucesso de A Sangue Frio, mas renovou a reputação de Norman entre os intelectuais à esquerda.
Na época, a imagem do ficcionista Norman andava meio arranhada por causa de dois romances excessivamente pretensiosos e talvez por isso meio distantes da realidade real – Um Sonho Americano e Why Are We In Vietnam?. Nesse ponto, Os Exércitos da Noite foi um upgrade providencial na carreira de Norman, que aproveitou o ambiente contracultural da época para investir no seu tema obsedante: o poder e a ambição na cultura americana.
Agora, além de reportagens extraordinárias para a Esquire, ele tinha um livro de não-ficção que tocava nesses temas. Assim, incluiu-se indelevelmente (para seu posterior desgosto) no ‘movimento’ do New Journalism, jogando direitinho o carteado das reportagens especiais de autor, em que se evitavam regras sacerdotais, moralismos cartesianos e as vozes monótonas, arrastadas e pretensamente imparciais dos burocratas-sentinelas a serviço de noticiários solenes.
Petulância narrativa
No quesito voz autoral, aliás, o egocentrismo de Norman contribuiu bastante para a elevação ao cubo daquelas máximas que dizem que ‘o que escrevo só pode ser eu’ ou ‘o narrador é um ser feito de palavras, não de carne e osso, como os autores’. Uma das marcas do estilo de Norman era exatamente substituir o ‘eu’ por ‘Norman’ ou por ‘o repórter’.
‘Sua primeira tarde em Miami Beach o repórter passou no salão de convenções. Subiu à tribuna dos oradores para ver como era a sensação de estar ali, intrometeu-se no aposento improvisado com tabiques atrás da tribuna para servir de sala de espera para os oradores, ao qual a imprensa não haveria de ter acesso depois que começasse a convenção.’ (Trecho de ‘Miami e o cerco de Chicago’, incluído em O Super-Homem Vai ao Supermercado, coletânea de reportagens sobre convenções presidenciais nos EUA)
Na não-ficção de Norman, discurso e metadiscurso andam de mãos dadas. Norman levou às últimas conseqüências a sua certeza de que todo jornalista em campo (em campo mesmo) é, em qualquer hipótese, coadjuvante da história que conta. Por isso recusou-se terminantemente a ser ‘uma mosca na parede’, expressão que, no cinema documentário, se refere a algo como ‘manter-se minimamente invasivo’.
Fosse a campo como um observador silencioso ou como um intrometido declarado, Norman não suportava minimizar-se. Em seu estupendo livro A Luta (1975), sobre o confronto entre Muhammad Ali e George Foreman no Zaire, Norman especula sobre o personagem Norman, misturando as motivações de outros com observações sobre si próprio, como se autor e narrador jamais pudessem ser a mesma pessoa, pois estão um a serviço do outro:
‘De volta a Kinshasa, decidiu afinal tomar uns drinques e comer uma boa refeição; durante o jantar, foi alvo de gozações ante a idéia de que acompanharia Ali na estrada. ‘Você vai ter de ir’, disse John Vinocur, da AP. ‘Sei disso’, respondeu Mailer em plena depressão. ‘Ali não acha que vai aparecer, mas se eu não for ele não perdoará.’ ‘É verdade, é verdade’, disse Vinocur, ‘uma vez eu me propus a correr com Foreman, não fui e ele nunca me deixa esquecer disso. Toda vez que o vejo ele me lembra do assunto.’ ‘Plimpton, você tem de vir comigo’, disse Mailer.’
Essa petulância narrativa é jornalisticamente louvável, e tão biográfica quanto seus prêmios Pulitzer, o alcoolismo, o machismo gentil, a intemperança, o profundo conhecimento de boxe, a co-fundação do The Village Voice, a facilidade com que se metia em encrencas, a disponibilidade para casar-se (seis vezes) e para ter filhos (nove). O biógrafo J.Michael Lennon ainda terá de enfrentar dois traços marcantes da personalidade de Norman: o desespero e a desesperança que assombrava a sua faceta de enfant terrible.
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Jornalista, escritor, co-fundador da ABJL, editor de TextoVivo e autor de Perfis (Summus)