Monday, 25 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Notas sobre o dramalhão jornalístico

A realidade é complexa. Para escrever sobre ela, é preciso ter a humildade de aceitar isso. No entanto, todos os dias os ditos ‘grandes jornais’ e seus jornalistas deixam claro que não entendem a realidade dessa forma. A falta de iniciativa para relatar o fato como um acontecimento rico em sentidos e em vetores – como geralmente todo fato é – está tornando a leitura de jornais uma tarefa desagradável. Não tanto com relação à forma, já que, procurando bem, se encontram alguns belos textos. A questão está mais nos conteúdos, em geral formados por lugares-comuns e estereotipias conceituais. Podemos mesmo apostar que é possível que o exercício da forma tenha fagocitado todo e qualquer conteúdo possível, tornando-se puro estilo jornalístico, completamente desvinculado da base que o faz existir, a comunicação. Maior do que ela, maior do que o fato, mais real do que o real que retrata. Como diria o mestre Jean Baudrillard, hiper-real.


Ler jornais, hoje, é entrar em contato com um exercício delirante, no qual somos convidados a participar de uma espécie de mundo de ‘faz-de-conta’. O maior pecado da imprensa, porém, não é inventar esse mundo e tentar fazer com que os leitores acreditem, mas acreditar, ela mesma, na fantasia que criou (‘A mídia norte-americana ainda faz xixi no pé e diz que está chovendo’, interpreta Greg Palast). Se ela apenas o tivesse inventado, estaríamos safos de maiores problemas. Se simplesmente pudéssemos acusá-la de desonestidade, poderíamos estar mais tranqüilos. No entanto, o que é grave é perceber que a imprensa – aqueles que nela trabalham – acredita no mundo que criou porque não consegue enxergar outra perspectiva.


Cabe refletir sobre se não estamos lidando, como sugeriu durante uma aula o mestre Muniz Sodré, com uma forma parasitária (aquilo que podemos chamar de ‘cultura da mídia’, que prioriza as midiatizações e desarticula, assim, as mediações) que, como tal, precisa se apegar a algo vivo para sobreviver e tirar dele sua força – no caso, a viva dinâmica da realidade em todos os seus níveis. Assim, percebemos, desolados, que a prática da imprensa na contemporaneidade se assemelha à do helminto. E, como já sugerido, o problema maior é que uma coisa é uma lombriga aceitar sua condição. Outra, é se olhar no espelho e se enxergar com a imponência e o poder de uma naja.


Modelos não são conceitos


Temos em mãos uma matéria que pretende abordar o tema da evasão escolar. Foi publicada no jornal Gazeta do Povo, de Curitiba (PR), no dia 11 de março de 2007, na editoria ‘Paraná’, páginas 4 e 5. Não vamos citar o autor por um simples motivo: não importa personalizar a autoria, pois se trata de um clássico texto jornalístico que poderia ter sido escrito por qualquer jornalista daquilo que chamamos ‘grande imprensa’.


É preciso ressaltar que o texto não é ruim, pelo contrário. O jornalista é habilidoso com as palavras e sabe extrair delas articulações impressionantes. Conduz bem a narrativa e insere gags espirituosos aqui e ali. O problema, como posto por essa matéria, é que possivelmente se daria melhor como escritor de romances populares. Não apenas ele, mas a maioria dos jornalistas das grandes organizações de informação. O autor da matéria parece seguir um modelo e, como dizia o mestre Baudrillard, modelos não são conceitos, não têm qualquer relação com o acesso a um sistema de representação. O modelo é pré-moldado. Na verdade, a matéria não foi escrita por ninguém, foi criada dentro de um modelo, e, por conseguinte, todos os que seguem esse modelo a poderiam ter escrito. Logo, todos merecem a crítica, porém ninguém vai dar qualquer atenção.


Elenco de panacéias


O título é bombástico e comovente: ‘Viagem à tragédia da Educação’. Bela matéria no espaço (duas páginas), na diagramação, na variedade de informações. No entanto, o título já nos prenuncia realmente uma tragédia maior do que a evasão escolar: a insistência do jornalista em transformar esse tema, que exige uma leitura complexa – que já vem sendo feita em diversos níveis, logo há muitas fontes a pesquisar –, em um texto folhetinesco, no qual o trágico e o dramático pululam e praticamente não dão lugar ao relato jornalístico. Quer dizer, descobrimos que o enredo da tragédia disposta na matéria é uma trágica tentativa de reduzir o mundo a algo próximo a um romance policial de bolso (o pulp estadunidense) ou a uma fotonovela.


Como tem sido costume na grande imprensa, a tendência para o dramalhão toma praticamente todo o texto. De fato, essa é, na verdade (e isso não é culpa do jornalista), a melhor fórmula para captar a atenção do público leitor – porém, é certo, não é a mais honesta, sob o ponto de vista intelectual. Bolívar Costa, que estudou com afinco a classe média uns 40 anos atrás, já dizia que o indivíduo mediano, o ‘homem medíocre’ (como o chamou José Ingenieros), tem a tendência a enxergar o mundo como um enredo melodramático. Diz Costa: ‘Insulados no individualismo extremado e quase exclusivamente empenhados na realização do bem-estar pessoal e familiar, tendem, naturalmente, para o sentimentalismo exagerado, o masoquismo, o escapismo.’ É que, segundo o autor,




‘Os sacrifícios mediante os quais os setores médios contam alcançar a maximização do seu poder sócio-econômico e do prestígio, ao mesmo tempo em que contribuem para consolidar a ética ascencional, produzem toda uma gama de traços de natureza depressiva. Ao aparente otimismo frente às possibilidades futuras, contrapõe-se um pessimismo oculto diante das realizações presentes. A fim de tornar suportável semelhante carga depressiva, lançam mão de um diversificado elenco de panacéias, tais como a pseudociência (‘cure suas neuroses’, ‘como evitar preocupações’); a pseudoarte (sub-ficção científica, romances policiais de baixo nível, literatura ultra-romântica, historietas, cinema sob medida); e o entretenimento vulgar, como o clubismo, a boate, o inferninho, o estrelismo artístico, esportivo e sentimental, o mundanismo em todas as suas formas, o bate-papo vazio. Esses recursos são mobilizados para ajudar a ‘matar o tempo’ ou a proporcionar ‘sensações fortes’, saídas que não deixam de revelar certo grau de indigência emocional.’


‘Vida sem vida’


Dessa forma, reportagens sobre o bárbaro assassinato de uma criança – como o recente caso de um menino cruelmente arrastado pelas ruas em um carro roubado no Rio de Janeiro – suscitam justa revolta no público pequeno-burguês, enquanto qualquer estudo que demonstre que várias crianças morrem anualmente vítimas da violência nas comunidades pobres, de desnutrição ou de outras doenças causadas por tenebrosas condições de vida, não desperta lá muita comoção. Para o indivíduo-padrão da classe média, o herói se equivale ao mártir e os sofrimentos de vários jamais suplantam o sofrimento do indivíduo. Aparentemente, o jornalista sabe disso e produziu um texto pleno de vítimas individualizadas, sem qualquer contextualização a não ser a do sacrifício.


É assim que a ‘grande imprensa’ procede. A respeito desta, H.L. Mencken – que também tinha uma impressão bastante crítica do cidadão de classe média – tinha a pior conceituação. Para ele, se há alguma diferença entre a imprensa ‘mais respeitável’ e a marrom, é que esta mente sobre coisas sem importância, enquanto a outra… Para ele,




‘O problema dos jornais do primeiro escalão é que quase todos estão hoje nas mãos de homens que vêem o jornalismo como uma espécie de linha auxiliar para empreitadas maiores e mais lucrativas – como um meio conveniente de enrolar e anestesiar um público que, de outra forma, se voltaria contra eles.’


A estratégia parece ser, então, a encenação da tragédia pequeno-burguesa em forma de notícias. No caso em estudo, a evasão escolar deixa de ser um tema rico e importante para pensar não apenas a origem e o destino de milhares de jovens, as articulações objetivas e subjetivas dessa faixa populacional em relação à Educação e outros tantos temas possíveis. Torna-se, em vez disso, enredo de uma tragédia que, de tanta dramaticidade, acaba se tornando burlesco.


Como mostram Bolívar Costa, Mencken e também Baudrillard – quando define o fun-system –, o cidadão-médio parece gostar disso. Enquanto lhe inventam tragédias e horrores, ele esquece sua própria trágica passividade, sua ‘vida sem vida’. É um dos poucos seres vivos, talvez o único, que se movimenta para ficar sempre no mesmo lugar.


Credibilidade numérica


Uma das obsessões de todo jornal parece ser o uso de números. Eles parecem explicar tudo e se há quem diga que uma imagem vale por mil palavras, mais apropriadamente se pode dizer que, na imprensa, um bom infográfico estatístico vale por todo um texto. Se não há números, não há credibilidade.


O exemplo mais esdrúxulo que já vi foi o de um suplemento pago por uma entidade empresarial, há alguns anos, que anunciava um número estrambótico como resultado dos prejuízos com a pirataria de produtos. Como se fosse possível quantificar precisamente isso. Números, assim como imagens, não falam, não dizem nada por si. Precisam que alguém os signifique. No entanto, dão a ilusão mágica da precisão, funcionam como veículos do que ‘É’, da Verdade, instituem-se como argumentos irrefutáveis. A entidade supostamente antipirataria usou números assustadores para falar dos prejuízos que a pirataria causa à economia. Tentou, assim, tornar pungente a queixa empresarial sem dizer, é claro, que há quem considere o moderno empresário como o sucessor autêntico dos antigos corsários.


No caso do texto sobre a evasão, os números estão presentes, é claro. E, ao que tudo indica, não são tão desaforáveis assim, segundo o próprio texto. Porém, o tom dramático do texto não dá margem a boas notícias: ‘Taxas de abandono são pequenas à primeira vista, mas a longo prazo têm resultado traiçoeiro’, afirma o jornalista. E mais:




‘Ano passado, o Paraná foi a única federação que não perdeu alunos. E o melhor – teve um acréscimo de 12 mil vagas. Mesmo assim… (…)’


Não adianta. O objetivo é dramatizar e a redução drástica da evasão apontada pelo governo do estado e pela prefeitura de Curitiba são tratados como detalhes traiçoeiros. Na matéria, as estatísticas são sempre desfavoráveis ao poder público, que é acusado de ‘falta de rigor’ no trato da questão. É que o jornalista aposta meio cegamente na fórmula que dita que o Estado deve controlar tudo, saber de tudo, estar em todos os lugares. Em suma, o Estado deve ser uma espécie de Deus.


Gilles Deleuze formulou a hipótese de que nos encontramos em uma ‘Sociedade de Controle’ na qual todos somos números e, aparentemente, fazemos tudo o que ‘o mestre manda’, julgando estar fazendo exatamente o que queremos. Aparentemente, para os jornalistas, esse mundo não apenas é desejável, como devemos lutar com unhas e dentes para que se acirre e se torne mais vigilante e persecutório. Basta, para essa mentalidade, que o Estado apresente diversos números, quanto mais complexos melhor, para que mereça elogios por estar ‘cuidando’ (leia-se, controlando) do cidadão.


Tragédia por detrás da tragédia


Esse enaltecimento do controle lembra o que Slavoj Zizek diz da sociedade ocidental: um lugar da vida sem riscos, da certeza total da segurança, do controle total – e ilusório – do real, da vida sem vida. Um lugar do controle mágico, no qual o número estatístico fascina por si só, independendo da realidade. A sociedade em que uma fala sem estatísticas tem menos credibilidade do que outra, recheada de quantificações, ainda que estas sejam tão sólidas que desmancham no ar. Mas, como um dia disse Baudrillard, ‘a credibilidade não passa de um efeito especial’.


Aliás, o Estado, no texto folhetinesco da matéria, parece a sociedade ou a família injusta e cruel contra a qual geralmente os heróis folhetinescos lutam, como a empregada que se apaixona pelo filho do patrão e tem que lutar contra o preconceito da família para realizar seu sonho amoroso, ou como o menino pobre que deseja uma vida melhor mas tem que lidar com o descaso da sociedade que o condena por ser pobre etc.


A diferença é que as vítimas da matéria lutam para estudar. Não há, na matéria, qualquer análise histórica ou conjuntural para entender o problema, qualquer interpretação que leve em conta a complexidade da situação. Logo, é inútil ler a matéria na busca de entender melhor a questão. No máximo, pode-se lê-la para entender como funciona a interação entre o jornalismo medíocre e o público que o consome.


Recorrendo novamente a Baudrillard, podemos afirmar que ‘nem a massa tem opinião, nem a informação os informa; uma e outra continuam a alimentar-se monstruosamente’ nessa busca perversa de apreensão da verdade, na qual esta é ‘um lugar vazio que é preciso saber jamais ocupar’. Ocupá-lo, para Baudrillard, é um ato ‘obsceno e imundo e, cedo ou tarde, acaba por se desmoronar no sangue ou no ridículo’. Em outras palavras, a matéria que analisamos mostra que a farsa da busca da verdade oculta, ela sim, uma digna tragédia.


O objetivo é assustar, aterrorizar, mostrar como o cidadão está indefeso e, conseqüentemente, dar a impressão de que a brava imprensa está vigilante para socorrê-lo. É a fórmula denunciada por Mencken para ‘conquistar o interesse do homem inferior’:




‘Primeiro amedronte-o – e depois tranqüilize-o. Faça-o assustar-se com um bicho-tutu [mais conhecido como tutu-marambá] e corra para salvá-lo, usando um cassetete de jornal para matar o monstro. Ou seja, primeiro engane-o – e depois engane-o de novo.’


Ineficiência do Deus-Estado


Ou, como lembra Barry Glassner, ‘perigo algum é pequeno o suficiente para que não possa ser transformado em um pesadelo nacional’. O resultado é o que Rollo May interpreta quando observa os encontros sociais da classe média, como as colônias de veraneio ou as ‘baladas’ nos bares: ‘É como se aquela agitação fosse uma cerimônia tribal primitiva, uma dança de feiticeiros destinada a aplacar uma divindade: é o espectro da solidão que vagueia lá fora, como a neblina vinda do mar.’ Num mundo terrível como esse, ninguém quer ficar sozinho.


Note-se que o tema da evasão escolar tem sido objeto de vários estudos e interpretações. O jornalista ignorou toda e qualquer pesquisa para aprofundar o tema. A Folha de S. Paulo, por exemplo, publicou pelo menos duas matérias – uma no final de 2006 e outra logo no início de 2007 – nas quais levanta a questão e dá margem a uma reflexão sobre o tema, chamando a atenção para o desinteresse do aluno pela escola como o principal fator que o leva à evasão. Desse modo, dá para começar a fazer uma profícua reflexão sobre o modelo de ensino e a refletir sobre o porquê da escola ser desinteressante. Mas, tudo isso é ignorado pelo jornalista, que prefere apontar a ineficiência do Deus-Estado e listar a relação martirológica dos estudantes que deixaram as aulas.


Lógica liberal


Há, na internet, alguns sites que contêm textos que discutem o tema, problematizando-o e, assim, fugindo às soluções fáceis do dramalhão jornalístico. O jornalista nem quis saber disso. Colheu parcas informações e dados estatísticos e os dispôs como quis. Falar, por exemplo, que no Paraná 80 mil alunos deixam, anualmente, a escola é um ‘chute’ irresponsável, principalmente pela ilusão de cumulatividade ‘digna de pânico’, segundo o texto.


Como o jornalista deixa entrever em sua própria matéria, os ‘evadidos’ são difíceis de captar e de quantificar e deixam a escola por inúmeros motivos, geralmente interligados. No máximo, pode-se saber que um certo número de alunos está ausente das salas de aula num ano, não se podendo afirmar que são os mesmos ou outros no ano seguinte. Outra barriga é falar de uma ‘aluna vítima’, que está há três anos fora da escola, e relatar que a Secretaria de Educação do Paraná tem registros que mostram que ela estudou em 2005 e esteve fora apenas em 2006. Basta uma conta simples para ver que há algo errado aí.


Seria preciso um controle muito maior do que já há em nossa ‘Sociedade de Controle’ para conseguir a precisão estatística desejada pelo jornalista e, provavelmente, por seus leitores. E, ademais, não se sabe se ajudaria tanto assim. A situação abrange muitos elementos e vetores e envolve uma estrutura social bem maior do que a da escola. Também de nada adianta ‘descobrir’ que a ‘violência’, as drogas ou a gravidez precoce são determinantes no abandono da escola. Isso é lugar-comum, frase feita, penúria intelectual. Importa mais entender o porquê desses fatores serem hoje tão presentes na sociedade e como desarticulam os projetos de adolescentes e professores. Tudo isso é bastante complexo, temos que admitir. No entanto, a complexidade não rende bons folhetins e o autor da matéria folhetinesca optou pela simplificação emotiva e o uso quixotesco de números.


Há interpretações possíveis e sensatas, como a professadas pelos opositores da ordem mundializante ditada pela quadrilha chamada ordinária e pomposamente de ‘mercado’. Para eles, o aluno deixa a escola porque não vê motivos para fazer o esforço de continuar nela. Não há como negar que é preciso considerável esforço para estudar; todo mundo que estuda e que já passou pela escola sabe disso. Não há incentivo porque não há uma projeção de um futuro que seduza o estudante.


Uma sociedade refém daquilo que chamamos de ‘mercado’ não consegue inculcar no jovem, principalmente no jovem pobre, a importância de estudar. Ela dita que se dá bem neste mundo aquele que tem dinheiro e aquele que é mais esperto. Na escola não se ganha dinheiro, não se aprende a ganhar dinheiro, nem se fica mais esperto. Tudo isso é plausível. É, no mínimo, um vértice diferente para a abordagem da questão. Mas o jornalista optou pelo vértice único, pela versão única que Francis Fukuyama chamou de ‘fim da história’, ou seja, a supremacia da estreita lógica liberal para interpretar a realidade.


Baudrillard pode nos ajudar a entender o que ocorre: ‘O que é grave não são as distorções da verdade no interior da máquina, mas a distorção de todo o real pela fiabilidade objetiva dessa máquina’. Esta, sim, é uma digna e terrível tragédia, cuja complexidade desafia mais do que a da evasão escolar.

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Psicólogo e jornalista, mestre em Comunicação e Cultura