A jornalista [esta não é uma história de ficção. Uma amiga, jornalista, passou por isso em Natal, RN, há alguns anos. Os nomes da jornalista e da emissora foram omitidos a fim de preservar a fonte jornalística] levantou cedo, como sempre fazia. Ainda na universidade, trabalhava como estagiária numa TV local. Saiu no seu carro a caminho da redação para mais um dia de trabalho. Numa das vias de acesso, um acidente grave com dois automóveis. Curiosa, foi conferir se estava tudo bem. Conversou com o bombeiro responsável e com uma das vítimas. Tudo bem, todos vivos. O acidente fora causado por falta de sinalização num cruzamento. Pegou seu celular e ligou para a redação comunicando o ocorrido. Uma mocinha atende e chama o chefe de redação.
‘Bom dia chefe, tudo bem?’ diz a jornalista.
‘Bom dia, diz aí…’, responde secamente o tarimbado jornalista.
‘É que no caminho da redação parei em um grave acidente envolvendo dois carros. Podemos noticiar esse acidente’ – argumenta a jovem jornalista.
Imediatamente, o chefe de redação se empolga e pergunta: ‘Morreu alguém?’ A jovem, sentindo a empolgação do patrão, diz um não sem graça e escuta um berro do outro lado da linha: ‘Então venha já para a redação!’ Tentando argumentar sobre a deficiência de sinalização no local, a jovem jornalista tenta: ‘Mas…’ Bruscamente interrompida, ouve: ‘Volte para a redação, tem pauta mais interessante. Notícia `boa´, é notícia ruim.’
‘Se espremer sai sangue’
Nos últimos dois meses, o número de mortes com arma de fogo na capital potiguar é de tirar a tranqüilidade da população. Segundo as páginas policiais, morrem todos os dias, no mínimo, três pessoas, na maioria homens alvejados por tiros. No último sábado, o segurança de um fast-food foi executado na av. Salgado Filho. Em Ponta Negra, um acerto de contas. Na Redinha, dívida e envolvimento com drogas. Na maioria dos casos os entorpecentes são as principais causas, assim como um acerto de conta, que de tão caro, custa a vida de outrem.
Parece que por aqui, até pouco tempo uma cidade tranqüila em termos de assassinatos, descobriram a arma de fogo e se encantaram. Assaltos à mão armada colocam em risco a vida de trabalhadores, estudantes, pais e mães de família. A segurança pública, assim como a educação e a saúde, estão defasadas e o governo se preocupa apenas em sediar uma Copa daqui a cinco anos.
Embarcando nos assassinatos da capital e interior do estado, a mídia entra na onda do `se espremer sai sangue´, revivendo os velhos tempos da impressa marrom. Alguns vão dizer que o jornal só divulga o que interessa ao público. Sabemos que não é bem assim, pois só vão para as páginas dos jornais notícias que interessam aos proprietários e seu grupo político.
Afirmações sem averiguação
Para se ter uma idéia, no jornal Tribuna do Norte, só no caderno ‘Natal’, salvo as reportagens de violência, saíram três reportagens de assassinatos. Todas descrevem os crimes como aconteceram. Um jovem de 15 anos estava em casa quando um outro rapaz o alvejou no peito. O jovem ainda foi levado para o hospital, mas faleceu. No fim da matéria: ‘O caso fica por conta da 8ª Delegacia de Polícia’.
Em outro ponto da cidade, um jovem é assassinado, ‘supostamente envolvido com drogas’. Leia o texto: ‘Os homicídios em série que vêm sendo cometidos na zona norte de Natal contra pessoas que têm envolvimento com drogas teve um novo capítulo trágico na noite desta terça-feira (18/3), desta vez na Favela da África, no bairro da Redinha. A vítima da vez foi o jovem João Paulo Batista da Silva, 20 anos, executado com quatro tiros em frente de casa.’ O repórter escreve ‘a vítima da vez’. Que sensibilidade! Uma espécie de amanhã continuamos com a série mate e apareça no jornal. A morte mais espetacular será transmitida na TV.
A cada dia que passa, a mídia se especializa em tentar adivinhar os fatos. No meio do texto, são descritos onde os tiros acertaram, parecendo um ranking – quanto mais perto da cabeça, mais pontos. Mas o que chama a atenção é o entendimento do repórter que declara: ‘provavelmente disparados por um revólver calibre 38’. No parágrafo anterior, o repórter já diz no título ‘supostamente envolvido com drogas’. A mania de adivinhar fatos tira a exatidão da matéria e compromete sua veracidade. Esse pecado não é cometido somente por aqui, mas em todo o Brasil e no mundo. A Tribuna do Norte fez aquilo que José Arbex Jr. denuncia no seu livro O Jornalismo Canalha, no capítulo ‘Jornalismo de Verificação X Jornalismo de Afirmação’. Afirmar fatos sem averiguar a sua procedência é um pecado gravíssimo.
O que importa é vender
Para não perder o costume, a matéria é encerrada com a frase: ‘O caso fica inicialmente com a 13ª Delegacia de Polícia da Redinha’.
O campeão da rodada foi Rosemberg da Silva Alves, morto na Zona Norte, informação que vem destacada no texto, como se nas outras regiões de Natal não houvesse crimes piores. Com total desrespeito à família da vítima, e sem averiguar, mais uma vez, o jornal diz que o crime ‘leva a crer que a motivação para a morte dele tenha sido um acerto de contas relativo à dívida por drogas’, segundo a polícia. Por fim, a descrição da morte do homem de 27 anos é quase um filme. Em resumo, dois homens vinham numa moto Twister, pela Rua dos Caetés, no bairro de Santarém. Encontraram Rosemberg caminhando ‘tranqüilamente’. Começaram a atirar e Rosemberg correu, mas de nada adiantou. A vítima levou um tiro na mão, um nas costas e dois na cabeça; não resistiu e morreu no local. ‘O caso será investigado pelo 12º Distrito Policial, em Santarém.’ Em todas as reportagens ninguém foi preso e a polícia não tem pistas dos assassinos. Além disso, todas as reportagens terminaram com a frase ‘o caso será investigado’, mantendo um padrão tal qual uma receita de bolo, mudando só a quantidade dos ingredientes.
Por fim, muitos não vêem problema algum em publicar notícias e reportagens com esse teor. Mas uma coisa que não podemos esquecer é que a imprensa cumpre seu papel social quando fiscaliza os demais poderes. Não é isso que acontece por aqui. A Tribuna do Norte, o Diário de Natal, o Correio da Tarde, o Jornal de Hoje, com suas duas edições, e o site Nominuto.com enchem os cidadãos de notícias sobre mortes para venderem suas páginas. Quando a matéria fica velha, de um dia para o outro surgem novos casos. Esses são relatados com primor pela imprensa, apenas. Não há uma única matéria que denuncie o descaso com a segurança pública, além de não haver acompanhamento sobre as investigações. Quando o assunto cai na esfera do esquecimento, a polícia arquiva o caso e os assassinos ficam impunes para cometer novos atos de violência. Enquanto isso, a grande imprensa se esbalda nessas histórias e vende a desgraça alheia aos demais cidadãos sem responsabilidade alguma, pois para eles, ‘notícia `boa´, é notícia ruim’ e o que realmente importa é vender.
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Jornalista, Natal, RN