Conta-se que, durante a Guerra da Secessão americana (1861-5), o general William Sherman (1820-1891), comandante das forças do Norte, foi informado de que os rebeldes sulistas haviam executado três jornalistas. Sua reação: ‘Ótimo. De agora em diante, vamos ter notícias do inferno antes do café da manhã’.
É ambíguo o sentido da história. Primeiro insinua que, morrendo, o jornalista vai para o inferno. Ao mesmo tempo, porém, deixa implícito um diagnóstico sobre a profissão: jornalista é aquele sujeito que relata preferencialmente os fatos negativos do mundo. Inferno é pura negatividade frente aos valores cristãos.
Isto vem a propósito da cobertura diária da catástrofe em Nova Orleans. Frente aos textos e imagens, a consciência reflexiva do leitor termina aproximando-se da idéia de inferno. Não, entretanto, como metáfora da atividade jornalística, e sim como evocação de uma realidade presente na pátria que o general Sherman ajudou a construir. Um exemplo: ‘Com capacidade para 70 mil pessoas, o estádio de futebol americano (Superdome Arena) era, supostamente, o abrigo mais seguro contra o furacão Katrina. Tornou-se um retrato do inferno’ (Época, 5/9/2005).
A matéria comentava o relato de uma brasileira que conseguiu sobreviver aos estupros e ao horror das brigas, em que ‘as pessoas se matam por água, por comida, por um banco um pouco mais limpo, longe dos cadáveres e das fezes que tomam conta do estádio’.
São de fato brutais os acontecimentos. À fúria destrutiva do furacão sucedeu-se a extrema barbárie humana sob forma de invasões de residências, pilhagens, agressões e assassinatos impiedosos. Matava-se por uma garrafa de água, crianças de cinco anos eram estupradas e degoladas, e as hordas ferozes nem sempre recuavam ante o fogo militar. Vale como resumo a frase de um soldado da Guarda Nacional, recém-chegado de Bagdá: ‘É inimaginável o que se passa aqui. É pior do que a guerra no Iraque’ (O Globo, 8/9/2005).
Sede própria
Os americanos estão de certo modo habituados, em termos de real e de imaginário, à experiência da abolição da sociabilidade logo após uma catástrofe. Imaginária foi a invasão dos marcianos, em 1938, irradiada por Orson Welles; reais foram o pânico e as mortes nas multidões em fuga. Real foi o apagão em Nova York no fim dos anos 1970, reais foram os estupros e as pilhagens, imaginárias foram algumas das causas apontadas, dentre as quais a suposta ação de alienígenas. Fictícias são as variadas situações catastróficas com que o cinema americano costuma entreter o seu público. Assustadoramente reais foram a destruição das torres do World Trade Center e as suas conseqüências político-institucionais.
Mas algo a que o imaginário da superpotência não está acostumado é a constatação de sua impotência frente à realidade da catástrofe dentro de seu próprio território. E um primeiro julgamento nos leva à convicção de que a matéria-prima da barbárie é tão constante nos centros capitalistas avançados quanto nas regiões ditas ‘atrasadas’ do mundo.
O horripilante massacre em Ruanda está no mesmo plano de desumanidade que o das matanças na Bósnia, no Iraque ou nos assassinatos em Nova Orleans. Após o furacão, no vazio da eletricidade (logo, da geladeira, da televisão, da iluminação controladora), aparecem os monstros, como num filme de terror de Romero. É como se o progresso e a técnica, entregues apenas a si mesmos, possam perder a qualquer instante a sua fina crosta civilizada, a exemplo da pele que a serpente, periodicamente, abandona.
O segundo julgamento é de natureza política. Não é possível dissociar o tamanho da catástrofe da indiferença da ordem neoliberal para com o destino das populações mais pobres. Fica patente no noticiário que o governo Bush, com seu abandono da perspectiva de bem-estar social, obsessivamente voltado para as finanças e a guerra, é tão catastrófico quanto o furacão Katrina.
O terceiro tem a ver com a produção de notícias. De um modo geral, a cobertura jornalística, sem qualquer viés ideológico, por meio do simples relato dos fatos, conseguiu mostrar algo de que talvez não suspeitasse o general Sherman: o inferno não tem sede própria, nem é preciso que um jornalista morra para dele se ter notícias. Inferno é o que se produz no vazio da grande política, da consciência ética e da qualidade humana.
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Jornalista, escritor, professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro