Os meios de comunicação brasileiros, acostumados e escravizados que estão ao pensamento mecanicista, vêem, com relativa perplexidade, a relação entre o público e o privado em todas as nuances da vida cotidiana capitalista, na formulação e execução dos fatos políticos, econômicos, sociais e culturais. Esquecem que fazem parte dessa relação e tomam parte nela, não sendo, portanto, neutros. Tentam fazer valer um moralismo fracassado. Não perceberam ainda o que disse Marx: que o Estado, sob o capitalismo, produz capital, é capital.
Se, como destaca o autor de O Capital, o capital é poder sobre coisas e pessoas, sendo o Estado o próprio capital, a interrelação-interatividade entre ambos não obedece a parâmetros meramente mecanicistas, mas, essencialmente, dialéticos. A mídia conservadora pira diante do movimento dessa realidade essencialmente dual, na qual comparece, psicológica e ideologicamente, como parte e não como todo, como objeto e não como sujeito, no contexto da economia nacional cronicamente dependente da poupança externa.
Essa é a questão central da problemática nacional, que a ministra da Casa Civil, Dilma Rouseff, destacou em entrevista aos repórteres Cláudia Safatle e Cristiano Romero, no Valor Econômico, 26.08. Para ela, chegou o tempo de uma relação mais íntima entre o capital e o Estado, entre o público e o privado. Íntima, acrescentou, no bom sentido. Nem Vargas, nem FHC, mas Vargas mais FHC dividido por dois, que seria igual a Lula?
Acumulação capitalista
A ministra tenta antecipar uma síntese da Era Lula, diferente da Era FHC e também da Era Vargas. O nacionalismo estatal keynesiano esgotou-se com a incapacidade de a dinâmica estatizante sustentar-se eternamente na expansão da dívida pública interna. O neoliberalismo, seu oposto, mostrou-se, também, com fôlego precário, desde que ressuscitou, na década de 1980, depois de ter sido historicamente descartado no final do século 19 pelos países capitalistas desenvolvidos.
Qual a solução? Neoliberalismo mais nacionalismo dividido por dois? Essa parece ser a essência da instigante entrevista de Dilma Rouseff, cada vez mais alvo das especulações político-eleitorais, por ser a xerife do cofre lulista e voz decisiva na aprovação dos projetos governamentais. Rouseff deixou o cenário aberto a várias interpretações, sem contudo poder negar que tal experiência que propõe é corriqueira nos países capitalistas desenvolvidos, enquanto no Brasil recebe reação negativa, principalmente por parte da grande imprensa, que prega o que não acredita, ou seja, na eficácia dos remédios adotados na era dezenovecentista.
O Keidaren japonês é a união do Estado e o capital em busca do progresso do Japão. A União Européia, que produziu o euro, que desestabiliza o dólar, é união do capital com o Estado cuja gênese moderna é produto da necessidade de o capital expandir suas fronteiras nacionais até à globalização completa, mediante a representação do próprio Estado nacional. O Estado industrial-militar norte-americano, assim conceituado, em 1960, por Eisenhower, idem, é fruto da moeda estatal inconversível, inflacionária, que precisa ser lavada-reciclada na dívida pública. A China, idem, segue o mesmo padrão. Capital e Estado são frutos de uma mesma necessidade histórica da acumulação capitalista, como explica Moniz Bandeira no imperdível Formação do Império Americano (Civilização Brasileira).
Pretexto para vôos lucrativos
Assim, a disposição manifestada pela ministra Dilma teria que entrar na pauta das interpretações jornalísticas de agora em diante porque, pelo que se vê, Lula tende a seguir se diferenciando das etapas históricas simplesmente porque ele não é uma repetição, mas uma sintetização da capacidade de o capital converter para a sua causa as próprias lideranças trabalhistas que chegam ao poder. A missão histórica de Lula, pelo que se depreende das palavras de Rouseff, seria, então, a de misturar as experiências do capital com as do Estado para, juntos, coordenarem seus respectivos antagonismos em forma de resultados comuns favoráveis ao desenvolvimento. Será possível? Se deu certo no Japão, na Europa, nos Estados Unidos e na China, por que não seria possível aqui?
A grande mídia ficaria imune à proposta de Rouseff – ela, que faz parte do universo econômico que ganha a conformação oligopólica, expressa em si mesma como organização econômica que visa à conquista e expansão dos mercados? Murdoch é isso aí.
Ou , como negócio, que dispõe de interesses espalhados em diversos setores da economia sob a lei das sociedades anônimas, agiria a mídia como indisfarçável empresa capitalista em que as notícias se transformam em meros pretextos para vôos lucrativos bem mais altos em escala nacional e global?
Mecanismos de multiplicação
É clara a realidade da mídia nacional durante a Nova República, na qual afundou econômica e financeiramente nas débacles dos modelos econômicos neoliberais-washingtonianos que apoiou acriticamente, sendo salva graças ao abraço estatal do BNDES e outros bancos estatais. As vendas dos anúncios e da publicidade, no vaivém das incertezas econômicas, não são mais suficientes para remunerar o capital investido. Trata-se do mesmo fenômeno capitalista geral.
Antônio Ermírio de Moraes não vive apenas das vendas de cimento, de forma oligopolizada. Teve que abrir seu banco. As aplicações financeiras, ao longo dos governos neo-republicanos, subordinados ao Consenso de Washington, transformaram-se em parcelas preponderantes do lucro empresarial, no compasso do juro alto. Os grandes veículos da mídia nacional são grandes empresas, grandes interesses. Teriam passado ao largo desse processo de expansão do capital financeiro ou navegaram nessa banda larga maravilhosa da financeirização global?
Os grandes fundos de investimentos, nacionais e internacionais, que aplicam, simultaneamente, na produção e na especulação, abrigam, sem dúvida, capitais da grande mídia. O deputado Ariosto Holanda (PS-CE), que acompanha o assunto, fazendo discursos ousados, destaca que as empresas que compõem a mídia nacional jogam parte importante das suas operações nos fundos financeiros. Estes, por sua vez, aplicam em bancos, indústrias, agronegócio, bioenergia, mineração etc. O capital, sob a lei das S/As, é uma pulverização só, materializada no universo das atividades.
A roda gira. Os interesses midiáticos não estão apenas no comércio de informações. Ao contrário, por meio desse comércio, outras atividades altamente lucrativas são alavancadas para elevar a taxa de lucratividade das empresas midiáticas. Por intermédio dos grandes fundos de investimentos, o capital da mídia penetra em todas as atividades, dada sua participação intensa nos modernos mecanismos de multiplicação do capital que a financeirização global proporciona, já que na produção de bens e serviços ele deixou de multiplicar-se na escala necessária à sua incessante sobre-acumulação.
Salário zero
O mundo do mecanicismo, que orienta as consciências que ditam as ordens dentro das redações da grande mídia, é um museu que só tem valor histórico. Merece ser visitado como atrativo de turista. Os donos dos veículos de informação preservam a ideologia mecanicista na cabeça dos seus empregados e colocam seu capital para agir dialeticamente na multiplicação especulativa, nos fundos de investimentos globais, acompanhando o desdobramento geral da lucratividade capitalista em todas as suas dimensões. Enquanto isso, posam de moralistas apoiados em conceitos ideológicos fantasmagóricos, carcomidos, nos quais sequer acreditam, como ocorre com sua pregação relativamente à ficção do livre mercado. Os patrões rechaçam a dialética nos seus editoriais, mas a absorvem no movimento do capital geral do qual faz parte em posição de destaque, a fim de auferir a máxima rentabilidade possível, num mundo em que o Estado se transformou em capital, e o capital, em Estado.
O Estado Capital e o Capital Estado surgem depois da crise monetária aguda em 1929, que jogou a economia de mercado na dependência total dos gastos estatais, como puxadores da dinâmica global. A moeda capitalista pós-29 não é apenas reserva de valor, como a vê a mídia, mas valor que se valoriza ficticiamente, gerando no seu rastro crises monetárias intermitentes. O padrão ouro do século 19, cuja essência neoliberal leva o sistema capitalista à sobre-acumaulação e conseqüente deflação, chegou aos limites fixados pelos próprios economistas clássicos e marxistas: leva o salário a zero ou negativo, na acepção matemática do termo (Marx). Ou seja, salário zero, sob o neoliberalismo, é o ponto da explosão, pois o pleno emprego em tais condições torna-se natural desde que se pague para trabalhar. Belezas capitalistas do trabalho involuntário que movimentam as gangues que mandam matar jornalistas que as investigam.
Promoção do desenvolvimento
O equilibrismo capitalista, pregado pela grande mídia, sob os auspícios do ensinamento liberal, é o fim do capitalismo, e não a sua salvação. Representou, no extremo político, o fascismo e o nazismo, cuja bola Ibsen antecipou em suas magistrais peças teatrais a partir de 1840, pontificando, como o artista dos paradoxos: ‘Os liberais são os piores amigos da liberdade de pensamento.’
A mídia nesse novo contexto, antecipado por Rouseff, sem meias palavras, no Valor, vai ter que questionar sua própria essência. Até que ponto ela é pública e até que marco é privada? Quando está precisando de grana, corre ao BNDES, dinheiro público. Faz como fazem todas as empresas capitalistas, brasileiras e estrangeiras. Esse esquema sustentou a taxa de lucro dos capitalistas nacionais, como Antônio Ermírio de Moraes, Roberto Marinho, Chateaubriand, Gerdau etc., somados, naturalmente, aos banqueiros, que se transformaram, também, em industriais e vice-versa. São esses homens que Dilma Rouseff destaca, no Valor, serem necessários ao dinamismo do sistema capitalista nacional no espaço global, em parceria com o Estado, como aconteceu com os países capitalistas ricos. Portanto, nem keynesianismo nem monetarismo, mas keynesianismo e monetarismo dividido por dois, como destaca o economista Almir Hockembach.
Nesse sentido, qual seria o papel superior da mídia, no cenário em que precisará desvestir-se de suas ilusões neoliberais, para se afirmar como empresa capitalista na relação íntima entre capital e Estado em nome da promoção do desenvolvimento cuja essência será dada por nova correlação entre o público e o privado?
Constrangimento moral
A TV Brasil, supervisionada pelo ministro Franklin Martins, da Comunicação Social, e coordenada pela jornalista Tereza Cruvinel, chega no momento exato em que Dilma Rouseff dá o recado de Lula no Valor, ressaltando o novo conceito entre público e privado. Para ser público, terá que ser privado, e para ser privado, haverá, também, que ser público. Público mais privado dividido por dois? Como a mídia fica nesse jogo, se ela, graças às suas posições ideológicas, carece de uma suficiente visão pública no que diz respeito à mercadoria que vende, ou seja, a informação?
Ou a mídia viverá no exterior da realidade, para dizer que continuará privada a fim de assistir, abstratamente, à evolução do processo real, distante do público?
Por exemplo: se a grande mídia (o privado) recorre ao BNDES (o público), não seria conveniente que a taxa do público elevasse proporcionalmente na gestão do interesse privado em forma de atendimento do interesse público? Por que a TV Globo, uma das mais beneficiadas pelo dinheiro público, não coloca no ar um programa de debate público, como necessária resposta à sua condição de pessoa jurídica que usufrui do dinheiro do contribuinte por meio das agências bancárias estatais?
Seria tentar interferir no conteúdo programático da emissora? Ou seria um necessário constrangimento moral pelo qual ela passaria por não estar sendo suficientemente pública quando o público é o seu oxigênio?
Contradição global
Ficar segurando a opinião pública para saber quem matou Thaís é algo agradável temporariamente. E os grandes temas, a liberdade para debater os antagonismos naturais que o processo de acumulação capitalista provoca, quando serão discutidos pelo oligopólio midiático global? Se a emissora insiste em ser privada, enquanto usufrui do público e nega servi-lo em todas as suas necessidades e potencialidades, impulsionadas pelo mundo da informação, coloca-se, naturalmente, como alvo dos ataques dos que querem maior dose de público sobre o privado.
Pode estar correndo perigo. Se a Record e a Band intensificarem o trabalho de oferecer produtos públicos em maior escala que a Globo, poderá o mundo global ser surpreendido por não estar suficientemente atento às oportunidades lucrativas. Quem disse que uma empresa capitalista não se interessaria em bancar um programa de debate nacional ao qual compareçam as diversas opiniões antagônicas para expressarem publicamente, por meio do privado, que também é público? Alta audiência, certamente, sob a democracia. Não é o que ocorre nos Estados Unidos, na Europa? O capital é mais inteligente do que o capitalista, como dizia Lauro Campos, nos seus discursos no Senado, na Era FHC.
Mas, o velho cacoete da zelite (obrigado, Millôr), que tem medo da evolução política daqueles a quem tenta massificar, insiste em predominar. Até quando? A chegada da TV Brasil vai, certamente, acelerar a contradição global, empurrando-a para a necessidade de ser mais pública e menos privada, sob pena de encontrar crescentes dificuldades para renovar sua concessão estatal pelos anos afora, como, certamente, desejam os Marinho, os bispos Macedo, os Saad etc.
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Jornalista, Brasília, DF