Thursday, 26 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Novas formas de censura

Felizmente, foi-se o tempo da censura institucionalizada, centralizada nas mãos fortes do governo. Apesar de a tentação estar presente, por exemplo, nos debates sobre classificação indicativa das programações televisivas, o peso do passado recente ainda não permitiu ao Executivo encampar qualquer coisa mais séria nesse sentido. Contudo, há algum tempo, episódios pequenos, às vezes vistos até como piada pela nossa imprensa exageradamente descontraída, mostram que a censura em si, independente de ser exercida pelo poder público, não desapareceu completamente da vida nacional.

No Brasil, parece que se confunde com freqüência o direito à defesa, a preservar a honra ou a privacidade (argumento ironicamente muitas vezes usado por ‘personalidades’ que, como diz Tutty Vasques, são pós-graduadas em ‘evasão de privacidade’, como determinada filha de ministro), com o cerceamento da informação. Que uma entidade como uma igreja protestante se sinta ofendida por matérias de tal ou qual órgão de imprensa e entre na justiça pleiteando punição e até sanções financeiras pesadas, caso ganhe a causa, é algo natural (desde que mostre a cara e não utilize vários laranjas para vencer pelo cansaço) aqui ou em qualquer outro lugar do mundo. Absurdo é querer instaurar – como ocorreu com o jornalista Juca Kfouri, proibido de mencionar em seu blog o nome de determinado promotor público famoso por aparições em programas dominicais de futebol – a censura prévia.

Garantia de maior saber

Tal mecanismo, por incrível que pareça, já vigora fortemente no mercado editorial brasileiro. Vive-se por estas bandas o império das biografias chapas-brancas, devido a uma interpretação da lei que praticamente impede que se escreva sobre alguém sem a autorização do próprio biografado ou dos familiares sanguessugas da reputação de seus antepassados famosos.

O ‘Rei’ – não o do futebol, o outro – manchou sua trajetória de vida ao impedir a venda de sua biografia que até – tirando ‘detalhes tão pequenos de nós dois’ – era extremamente favorável à sua pessoa. Ruy Castro sofreu horrores nas mãos da família do gênio das pernas tortas. Se não me engano, mesmo Nelson Motta, amigão de seu tema, o Síndico, penou também para poder lançar sua biografia sem ter surpresas desagradáveis.

Pior é que tal postura nem sempre é motivada pelo medo de ‘sujarem’ a reputação própria ou do parente ou por ganância financeira. Muitas vezes é simples necessidade de poder, de posse… nem será dito nada em desabono ao seu ente querido. Nem a avareza justifica totalmente tal atitude. Se as herdeiras do 7 do Botafogo tinham mesmo que explorar um dos poucos patrimônios deixados pelo pai (o nome), outras famílias nem precisam – e mesmo assim… Surpreende-me, por exemplo, as sucessoras das veredas do grande sertão, provavelmente cultas e bem situadas na vida, tomarem postura semelhante ao declararem que só elas podem biografar a vida do pai ou permitir que o mundo conheça ou não na íntegra o seu diário. Como se ser filho, nora, neto ou pai fosse garantia de maior saber… Às vezes, os familiares são as pessoas que menos conhecem a vida de seus entes ilustres.

Silêncio por meio de mandados

Essa censura prévia parece ser coisa típica de países de vida cultural tacanha e sem tradição democrática (na Argentina, a viúva do cego dos labirintos de palavras também não larga o osso de jeito algum e declara aos quatro ventos que só ela possui a ‘verdade’ sobre a vida de seu marido). Nos EUA, um dos gêneros mais bem sucedidos é, exatamente, o das biografias não-autorizadas. De estudos sérios (mesmo que polêmicos) sobre personalidades de grande influência nos rumos da história e da cultura de seu povo a bobagens do tipo Elvis era um ET, Keith Richards troca o sangue todo ano e ‘revelações’ sobre a vida sexual de figuras notórias, vivas ou mortas – lá se publica de tudo.

O tempo se encarrega de provar o absurdo ou não, a relevância ou não, de tais relatos, e a justiça de dar a grana devida ao biografado ou à família deste quando julga que realmente é necessário (o que ocorre muito raramente), sem tirar nada de circulação.

Mas aqui temos uma longa tradição ditatorial que exige do Estado, no caso encarnado pela Justiça, um paternalismo, uma tutela excessiva, refletido em ações radicais e antidemocráticas. Ao contrário de demonstrar uma pretensa força de nosso aparelho institucional, isso apenas torna nossos cidadãos cada dia menos capazes de discutirem seus problemas, suas diferenças, suas posições em público. Ao debate livre se prefere, infelizmente, o silêncio garantido por mandados judiciais.

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PS.: O fato de não dar nomes aos bois no texto não tem relação alguma com o tema tratado; é apenas uma opção estilística.

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Mestrando em Teoria Literária e Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo