Sunday, 17 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Novela agride tradição brasileira da mestiçagem

Revistas especializadas (os puristas que se conformem: Caras é um gênero de jornalismo e telenovela, um gênero de ficção) informam que Desejo Proibido será reduzida, devido à baixa audiência. Por coerência, Duas Caras deveria estar na reta final. A Globo poderia de há muito ter fechado o caixão e dado perda total, mas o investimento na novela das 9 a torna suscetível a recuperação. A guinada de Aguinaldo deveria ter sido a invasão da Portelinha, quando o autor trocou os seios de Alzira pelo tiroteio. O desfibrilador não funcionou. Meia dúzia de intelectualmente ativos ainda vêem a trama.

Esgotadas as manobras de conteúdo, tenta-se um artifício formal para reanimar o roteiro: a ágil edição paralela, inventada em 1901 pelo cineasta inglês James Williamson. Reivindicação estadunidense, como tudo, mas teorizada, como tudo em montagem, pelos soviéticos da década de 1920 (mais precisamente por Vsevolod Pudovkin), consiste na alternância de duas ou mais cenas que se concluem simultaneamente, criando expectativa e atenção. Quem a utilizou magistralmente foi David Wark Griffith, em 1915. Mas quem de fato a criou, segundo registros do historiador francês Georges Sadoul, foram os cineastas de Brighton, no início do século passado.

Sergei Eisenstein identificou em Gustave Flaubert a montagem dialética de intercalação de cenas que usou em A greve, quando alternou tomadas de operários indo para o trabalho com gado indo para o abatedouro: Madame Bovary se atracando com o amante, entrecortada por um comício moralista, está no romance de 1857. Os genes da edição paralela são literários. E da decupagem clássica também: a seqüência Grande Plano Geral, Plano Médio dos personagens e Close dos detalhes foi tirada de Charles Dickens por Griffith.

Preconceito e intolerância

Retornando ao menu principal, qual seja, bofetadas em Duas Caras, a novela está para se tornar uma das piores dos últimos tempos, com edição esperta ou sem ela. Retrata sob ângulo direitista o movimento estudantil, como já foi abordado aqui no OI, embora, no que tange aos professores da Pessoa de Moraes, seu quadro tenha sido até ameno, pois o corporativismo, a competitividade e a luta pelo poder no ambiente acadêmico geram gente de um caráter de que nem no baixo meretrício se tem notícia.

A questão mais grave está na qualidade do texto (‘Evilásio, somos como chocolate branco e chocolate’, diz Júlia entre lençóis) e nas costas viradas para a tradição da cultura brasileira. Do que será que se alimenta um autor de novela? A julgar pelos diálogos, de mídia, de filmes hollywoodianos, de seriados norte-americanos, de best-sellers. Isto trocado por lixo leva troco. Se respeitasse Gilberto Freyre, Sergio Buarque de Holanda, Darcy Ribeiro, Jorge Amado, para ficar na superfície, saberia que o traço cultural mais marcante deste país é a miscigenação.

Fomos colonizados por portugueses e espanhóis, povos já mesclados na invasão da península ibérica por árabes de cultura sofisticada (durou 700 anos) numa época em que a Europa estava próxima da barbárie. Gente habituada ao convívio pacífico entre etnias e contrários. (Por que seleções de futebol das ex-colônias francesas e inglesas não têm mulatos, só pretos? Porque esses povos não se misturaram. Diferente do Brasil, onde há pelo menos um casamento inter-racial em cada família. Basta olhar para ruas e praças.) Então, o vômito de Branca sobre o túmulo do marido que a traiu e o vômito de Barreto ao ver a filha beijando um negro deixam de ser hipérbole (recurso estético) e passam a ser excrescência (escatologia). Portanto, essa novela, além de não ter tido senso de humor, traço marcante do caráter tupiniquim, agrediu os comportamentos usuais da cultura brasileira, transformando a exceção (preconceito e intolerância) em regra.

Latejo melodramático

De nada adiantou Aguinaldo colocar umbandistas e evangélicos no roteiro (era o plot dos igrejeiros), pois teve que cortar vários na invasão – uma porque estava trabalhando muito mal, outro porque estava pegando muito mal. Tentou cortejar o espectador com religião, mas este estava suficientemente contrariado pelo fato do pistoleiro de Ferraço ter beijado o crucifixo depois de usar a metralhadora, numa cena até interessante, verossímil, mas forte demais para um público de TV. No mesmo mote, atenuou-se o escalafobético fanatismo de Ezequiel, que era assombrado pelo passado (!) do vilão, Adalberto. Samba do crioulo doido.

As afro-personagens parecem todas saídas de algum filme norte-americano, o que equivale a dizer do movimento da negritude. As mulheres brasileiras (exceto a ex-ministra Matilde) não têm esse aguerrimento de ‘origens africanas’ (que, por sinal, andam se matando por lá); não dava para desenhar pelo menos uma negra meiga, como são de fato as que a gente vê no dia-a-dia, que dissesse ‘não’, mas com fibra e delicadeza?

A música de Djavan é um hino de mediocridade que o Rio vai esquecer; ele e Jorge Vercillo poderiam se juntar à família Lima, entrar para o Sandy e Júnior e fazer um convescote com Orlando Moraes. (Compositores em longa crise de criatividade devem se abster de fazer trilhas sonoras para novelas. Os sonoplastas sabem como um áudio ambiente pode arruinar ou realçar uma cena.) Um clone de Simone lateja melodramaticamente Ternura, de Wanderléa, para embalar os sonhos com dobrões de ouro de Célia Mara.

‘Gosto popular’ = ‘lucro’

Mas como, não há nada que se salve? Há, sim: as cenas de escola de samba e os sabões éticos de Evilásio. Os pitos no padrinho são as grandes lições de moral da novela: ‘Não, não pode afastar o marido pra cantar a mulher sossegado.’ ‘Sim, é preciso respeitar o resultado de eleição democrática.’ E, melhor ainda, o pito no pai, quando ia bater de cinto na irmã, porque violência doméstica contra a mulher também inclui surra de pai autoritário.

Desejo Proibido abarcou o horário ingrato de verão quando, apesar da chuvarada que assola o país, o brasileiro reluta em sair do mar ou do bar (os 22% que têm internet – fontes oficiais – estão, como se sabe, egocentrados em orkuts e blogs, alguns delirando que definem os rumos do mundo, de eleições a Ibope, ancorados na tese do fascista Hugh Hewitt). A novela é boa e não merece os maus índices. Apesar de ter esticado a corda do ‘que fim levou a bugra’ até os limites do aceitável, as interpretações de Cássio Gabus Mendes, Lima Duarte e Marcos Caruso compensam tudo.

A Globo estréia esta semana Beleza Pura, na faixa das 19 horas. Pelo título, mais uma ode à cultura do corpo e às festas em sociedade, com personagens de modelos, estilistas, esteticistas, promoters e sets em clubes, clínicas estéticas, salões de cabeleireiro, academias de ginástica. Mesmo com a renovação no quadro de autores, as temáticas indicam que as tramas estão passando por um processo de involução (desde Beto Rockefeller, que em 1968, na extinta Tupi, revolucionou os padrões narrativos – até então a fórmula reproduzia os dramalhões mexicanos – a telenovela brasileira passou por várias fases), cada vez mais escravas da audiência, que não é um indicador de qualidade, já que a lógica que rege os meios de comunicação de massa é adaptar a linguagem a um padrão médio de preferências, a um abstrato ‘gosto popular’ que pode ou não coincidir com o valor estético do produto. ‘Gosto popular’ aqui equivalendo a ‘lucro’.

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Jornalista e pesquisadora