A Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática (CCTCI), da Câmara dos Deputados, realizou na quinta-feira (27/11) a primeira audiência pública de sua história com o tema ‘Debate sobre os atos do Poder Executivo que renovam as outorgas das concessões de serviços de radiodifusão’, atendendo a requerimento apresentado em agosto passado pela deputada Luiza Erundina (PSB-SP) e pelo deputado Walter Pinheiro (PT-BA).
Na verdade, essa audiência é uma das conseqüências do Ato Normativo nº1/2007, que institui novas regras para a apreciação dos processos de outorga e de renovação de concessões de radiodifusão na CCTCI, em vigor desde 1º de julho de 2007.
Foram convidados representantes do Ministério das Comunicações (Minicom); da Agência Nacional de Telecomunicações; do Tribunal de Contas da União; de três associações de radiodifusores: Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert), Associação Brasileira de Radiodifusores e Associação Brasileira de Radiodifusão, Tecnologia e Telecomunicações; representantes da sociedade civil (Intervozes e Abraço) e da Universidade de Brasília (Lapcom, Laboratório de Políticas de Comunicação).
Marco regulatório
Não há dúvida: a realização da audiência é, em si mesmo, um fato auspicioso. Até aqui, as outorgas e renovações de concessões sempre foram quase automáticas, simplesmente ‘passavam’ pela CCTCI sem que qualquer avaliação de mérito fosse realizada. Isso fez com que os concessionários de radiodifusão se comportassem como ‘proprietários’ e não apenas ‘curadores’ desse serviço público.
Na audiência, o Minicom e os representantes das concessionárias alegaram que o principal problema relacionado às concessões de radiodifusão é a burocracia. Nenhum outro serviço público no Brasil enfrentaria um trâmite burocrático com a complexidade exigida na radiodifusão. Daí porque o Minicom anuncia a contratação, no próximo ano, de uma consultoria da Fundação Getúlio Vargas para simplificar e agilizar o processo.
Os representantes da sociedade civil, por outro lado, fizeram o ‘dever de casa’ e apresentaram várias propostas concretas tanto de critérios para novas outorgas e renovações de concessões como para a inadiável elaboração de um marco regulatório para o setor.
Sem responsabilidade pública
A novidade da audiência, no entanto, foi a introdução – aparentemente despretensiosa – de uma tese que, mesmo sem ser advogado, ouso afirmar, constitui uma inédita e perigosa inovação na regulação de serviços públicos.
Ao reagir a propostas que incluem o ‘interesse público’ como critério para avaliação das concessionárias, o representante da Abert estabeleceu uma diferença entre as responsabilidades dos três sistemas previstos na Constituição – privado, público e estatal. Disse ele: ‘Os concessionários comerciais não precisam atender todo o público, uma vez que pertencem ao sistema privado’. Vale dizer, aqueles que têm responsabilidades com o atendimento do ‘interesse público’ são os sistemas público e estatal; o sistema privado atende aos seus próprios interesses e, claro, aos interesses do mercado.
A tese que desobriga os concessionários privados a atender ao ‘interesse público’ já havia aparecido para justificar a ‘inconstitucionalidade’ da exigência de transmissão do programa Voz do Brasil. Artigo recente, publicado no caderno ‘Direito e Justiça’ do Correio Braziliense (‘Inconstitucionalidade da Voz do Brasil‘, 24/11/2008, pág. 3), afirma:
‘Entende-se que prevalece a liberdade empresarial da concessionária em escolher retransmitir ou não a Voz do Brasil, ao invés da imposição autoritária. Isso porque a Constituição impõe a complementaridade entre os setores de radiodifusão privado, público e estatal, o que, evidentemente, implica a harmonia e o equilíbrio entre eles. Por que a União não se vale de seus próprios meios de comunicação se pretende divulgar as ações dos três poderes republicanos? Ela deve utilizar o sistema de radiodifusão estatal e não o privado’ (disponível aqui).
O que não se sabia é ser também essa a posição da maior associação de concessionárias de radiodifusão privada brasileira, a Abert, em relação às responsabilidades de seus membros no atendimento ao ‘interesse público’.
Difícil de acreditar
Ao exigir a observância do princípio da complementaridade entre os sistemas privado, público e estatal para outorga e renovação das concessões de radiodifusão (artigo 223), o constituinte tinha como objetivo corrigir o inquestionável desequilíbrio histórico existente entre esses sistemas, com a óbvia hegemonia do sistema privado.
Além disso, a Constituição não faz qualquer distinção entre os sistemas privado, público ou estatal quando se trata da produção e programação de seu conteúdo. A prova disso está no artigo 221 que define os critérios a serem atendidos por todas as emissoras de rádio e televisão. Reza o texto:
‘A produção e a programação das emissoras de rádio e televisão atenderão aos seguintes princípios: preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas; promover a cultura nacional e regional e estimular a produção independente que objetive sua divulgação; obedecer aos princípios da regionalização da produção cultural, artística e jornalística e do respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família’.
A tese agora defendida pela Abert, portanto, contraria claramente a norma constitucional em vigor.
Dessa forma, aqueles interessados em preservar o ‘interesse público’ como critério de avaliação para o desempenho dos concessionários dos serviços públicos de radiodifusão devem colocar ‘as barbas de molho’. Está em gestação nos laboratórios jurídicos do país um novo conceito: o concessionário privado de radiodifusão não tem qualquer responsabilidade de atender ao ‘interesse público’. Isso é tarefa exclusiva dos sistemas estatal e público.
É difícil de acreditar, mas é verdade.
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Pesquisador sênior do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política (NEMP) da Universidade de Brasília e autor/organizador, entre outros, de A mídia nas eleições de 2006 (Editora Fundação Perseu Abramo, 2007)