Monday, 23 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Novos desafios para o Direito

Uma avalanche de informações desconexas sobre o vídeo da modelo brasileira Daniela Cicarelli no palco virtual do site YouTube, assolou as manchetes nacionais e internacionais na primeira semana do ano. O que se pode chamar de Uma avalanche de informações desconexas sobre o vídeo da modelo brasileira Daniela Cicarelli no palco virtual do site YouTube, assolou as manchetes nacionais e internacionais na primeira semana do ano. O que se pode chamar de marketing de guerrilha gerou diversas discussões nas inúmeras comunidades e fóruns da internet, onde a maioria esmagadora dos internautas se mostra indignada com o bloqueio do YouTube, aparentemente em decorrência de uma decisão da 4ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo.

Até essa informação (sobre o bloqueio do site) não é uníssona nos sites que noticiaram o caso. Alguns, como o próprio Estado de S.Paulo, por meio de reportagem da BBC Brasil [disponível aqui], chegaram a noticiar como falsa a notícia de que o YouTube seria retirado do ar no Brasil. Entretanto, o fato é que o site em questão encontrava-se bloqueado para os assinantes do provedor de acesso à internet Brasil Telecom [disponível aqui], e nas horas posteriores foi bloqueado também pelos provedores de acesso da Telefônica e Embratel [disponível aqui].

O fato de um site como o YouTube se encontrar bloqueado para alguns usuários de internet no Brasil não deve ser analisado apenas sob o ponto de vista qualitativo a respeito do conteúdo do referido site. Usuário ou não, ter uma imagem preconcebida de que o comportamento do usuário deste tipo de site é apenas a procura por conteúdos de cunho sexual é uma posição questionável. [O YouTube foi matéria de diversas reportagens, destacando sempre o caráter revolucionário da sua tecnologia ao permitir que os usuários sejam verdadeiros emissores de conteúdo. Tal fato tem importância porque permite que pessoas anônimas possam veicular suas produções para o mundo todo a custo zero. Talvez esta característica possa esclarecer um pouco da alegria de alguns conglomerados de mídia televisiva com a decisão judicial que bloqueou o YouTube, e, em contrapartida, o reflexo e a repercussão desta medida na imprensa internacional.]

Além disso, eliminar completamente esse tipo de uso da tecnologia é algo praticamente impossível, assim como não deve servir de motivação para a exclusão de tais tipos de tecnologia.

Neste sentido, conforme observa Steven Johnson (2003), colunista da revista Wired, os analistas de tecnologia sempre nos lembram que a pornografia é uma das primeiras áreas a adotar alguma novidade tecnológica. ‘Em outras palavras, novas tecnologias são assimiladas pela indústria do sexo mais rapidamente do que pelo resto da sociedade – isso foi verdade para a imprensa escrita, para o vídeo, para a web (…)’ (JOHNSON, 2003, p.155). Deste modo, se a presença de pornografia for suficiente para a defenestração das tecnologias, que começassem pela invenção de Guttemberg e, sem dúvida, sairíamos perdendo.

Todavia, este posicionamento não significa um total conformismo em relação a essa questão, mas sim de um novo desafio e uma busca por modelos que sejam mais adequados para a solução deste tipo de demanda provocada pelo surgimento do ciberespaço.

Informação, liberdade de expressão e privacidade

O próprio contexto do surgimento destes direitos nos dá uma dimensão da sua importância, bem como uma referência para a análise do seu funcionamento. Seguindo a idéia de Norberto Bobbio (1992), de que os direitos não nascem todos de uma vez, mas seguindo o desenvolvimento técnico e as transformações vividas pela sociedade, sem dúvida, as revoluções das telecomunicações demandam um novo modelo de proteção e tutela destes direitos de primeira geração [São os direitos individuais, civis e políticos, surgidos principalmente no contexto histórico marcado pelo processo de secularização e racionalismo iluminista. Esta geração de direitos trata principalmente das liberdades individuais (ou seja, são direitos exercidos individualmente, como o próprio instituto criado pelo direito inglês, o habeas corpus)].

Se a sua origem é marcada pela preocupação em limitar o poder do Estado, ou, como bem observa Celso Lafer (1998), afirmar a emergência de um pensamento mais voltado para a liberdade, e não para a governabilidade, as novas redes de comunicação colocam em questão não apenas a invasão do Estado na esfera íntima e privada do indivíduo, mas também a possibilidade de uma nova amplitude de ações que acarretem em ofensa a tais direitos.

O caso da modelo brasileira é um exemplo de como o uso da internet pode ser potencialmente ofensivo à imagem do cidadão. É salutar que exista a devida proteção jurídica para casos semelhantes e o fato de tratar-se de uma pessoa pública não torna legítimo que impere apenas uma espécie de ditadura das massas.

Lembramos ainda que a liberdade de expressão, reconhecida pela Declaração Universal dos Direitos do Homem em seu Art. 18 [Art. 18 da Declaração Universal dos Direitos do Homem – Todo o homem tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião; este direito inclui a liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade de manifestar essa religião ou crença, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pela observância, isolada ou coletivamente, em público ou em particular], não é um direito que pode ser exercido de modo absoluto. ‘Algumas formas de expressão podem ser legitimamente proibidas dentro da ordem e do respeito a outros direitos fundamentais ou valores de uma sociedade democrática. Semelhantes restrições também se aplicam on line‘ (RORIVE, 2005) (tradução nossa) [Some forms of expression may be legitimately prohibited in order to respect other fundamental rights or values upheld in a democratic society. Such restrictions also apply on-line].

Hipótese de divulgação intencional

Dentre essas restrições, tuteladas constitucionalmente pelo ordenamento pátrio em seu Art.5º, X [Art. 5º, X da CF/88 – São invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação], e pela Declaração Universal dos Direitos do Homem em seu artigo 12 [Artigo 12 da Declaração Universal dos Direitos do Homem – Ninguém será sujeito a interferências na sua vida privada, na sua família, no seu lar ou na sua correspondência, nem a ataques a sua honra e reputação. Todo o homem tem direito à proteção da lei contra tais interferências ou ataques], encontra-se também o direito à privacidade. O conflito entre direitos, principalmente com o advento das tecnologias da comunicação, que diariamente coloca em lados opostos vida privada e direito de expressão e informação, é também objeto de muitas controvérsias, devendo ser analisado cada caso concreto.

Para tanto, o que é, afinal, a vida privada? Resumidamente, conforme definida por René Ariel Dotti (1980), ela ‘abrange todos os aspectos que, por qualquer razão, não gostaríamos de ver caírem em domínio público; é tudo aquilo que não deve ser objeto do direito à informação nem da curiosidade moderna, a qual, para tanto, conta com aparelhos altamente sofisticados’.

Assim, para a análise do caso em questão, uma das primeiras medidas a serem verificadas é se realmente houve a violação do direito à intimidade e à vida privada. Bem, se a vida privada do cidadão é valiosa a ponto de se estabelecer uma multa de R$ 250 mil por dia, esse mesmo cidadão não exporia sua vida privada em local público, e sendo esta exposição um ato sexual, tanto na legislação brasileira [Art. 233 do Código Penal brasileiro – Praticar ato obceno em lugar público, ou aberto ou exposto ao público: Pena – detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, ou multa], como na espanhola, poderia se configurar um crime. Conforme a análise do desembargador Valter Xavier (2006), Cicarelli e seu namorado podem reclamar na justiça a reparação dos direitos violados. Mas também poderão responder perante a justiça espanhola. O artigo 185 do Código Penal espanhol trata sobre os crimes de exibicionismo e provocação sexual. O dispositivo diz que atos de exibição obscena na presença de menores de idade, portadores de enfermidade ou deficiência mental é crime.

Há ainda a hipótese de divulgação intencional do vídeo como forma de autopromoção, caso em que não haveria a violação ao direito à privacidade e intimidade da modelo, uma vez que haveria a intenção e a autorização de exploração do seu direito de imagem.

Uma medida justa e eficiente?

A medida adotada para reparar a ofensa ao direito da modelo brasileira, é igualmente ampla no espectro de abrangência, uma vez que acaba por atingir e cercear o direito de expressão e do acesso à informação de aproximadamente 5 milhões de usuários brasileiros (contando apenas os usuários dos provedores da Brasil Telecom). Neste aparente conflito de direitos fundamentais, a medida adotada de bloquear o site YouTube é questionável sob vários aspectos. O primeiro deles é que, se o bloqueio ao site é motivado pela necessidade de se proibir o acesso ao vídeo da modelo, além do excesso e da desproporcionalidade da medida (conforme visto alhures, atinge mais de 5 milhões de usuários), também parte do equivocado pressuposto de que as pessoas que acessam o site o fazem exclusivamente para ver o conteúdo referente às cenas da modelo.

Ademais, tal medida seria o equivalente a proibir uma emissora de televisão de exibir seu conteúdo diário em razão da exibição de uma cena de sexo em horário impróprio para menores (a comparação é válida se tomarmos o ponto de vista de que em ambos os casos temos um conflito entre interesse coletivo e interesse individual. No primeiro, entre o direito individual da modelo à privacidade e o interesse coletivo ao acesso ao site e à informação; no segundo, entre o interesse individual da emissora e o interesse coletivo de proteção à criança e ao adolescente, à moral, bons costumes etc.).

A própria característica estrutural destas redes de comunicação, que permitem a comunicação de muitos para muitos, de forma horizontalizada e menos hierárquica que os modelos tradicionais de comunicação (estrutura de um emissor para muitos receptores), também tornam ineficazes os institutos processuais do Direito pátrio.

O perigo da censura em cascata

Os instrumentos de tutela inibitória previstos no Código de Processo Civil brasileiro não acompanharam as novas demandas exigidas por tecnologias como a internet. A ‘obrigação de fazer’ esbarra nas possibilidades da arquitetura das tecnologias de comunicação. Tais instrumentos resolveriam uma questão como a da modelo brasileira se fossem divulgadas em mídias de funcionamento tradicional, como a mídia impressa (quando, por exemplo, poderia ser retirada das bancas uma determinada edição de uma revista), ou mesmo um programa de televisão, onde a ordem para bloqueio do canal seria diretamente à emissora.

O modelo de arquitetura de funcionamento da internet demonstra a fragilidade e a inadequação com que a atual legislação enfrenta este tipo de demanda. Se o objetivo do bloqueio ao site YouTube era impedir que o vídeo da modelo brasileira circulasse pela rede, tal medida, além de tentar censurar o acesso a um grande número de usuários do site e repercutir internacionalmente, não logrou êxito.

Somadas aos programas peer to peer de compartilhamento de arquivos, inúmeras maneiras de burlar a censura ao site foram também compartilhadas pelos internautas em questão de horas, o que gerou, em verdade, uma maior atenção e divulgação do vídeo.

Outro perigo de medidas como esta do bloqueio ao site para impedir o acesso ao vídeo – e proteger uma não confirmada violação de direitos – é um efeito de censura em cascata. Como os arquivos se encontram em diversos sites e diversos pontos da rede, esta questionável censura poderia se estender para outros sites que contêm o vídeo e, ainda assim, tal medida não seria eficaz e prejudicaria um número ainda maior de usuários.

Conclusão

A internet é um meio de comunicação de arquitetura aberta, de aspecto rizomático, onde a metáfora do polipeiro de Euclides da Cunha poderia ser utilizada para explicar sua estrutura. Num ambiente com tais características, a lição que este episódio nos mostra é a necessidade de um novo modelo de abordagem jurídica para este espaço, de forma a compatibilizar e respeitar tanto o ambiente democrático que existe nesta nova ágora virtual, como os direitos e liberdades individuais, para que não tenhamos um convívio entre ‘paredes de vidro’ e o pesadelo orwelliano.

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Advogado, mestre em Teoria do Direito e do Estado pela Fundação de Ensino Eurípides Soares da Rocha (Univem), pesquisador do Núcleo de Estudos, Pesquisas, Integração e Práticas Interativas (NEPI), filiado ao CNPq