Saturday, 02 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

O abandono na cidade do Pan

‘De onde vens criança?/Que mensagem trazes de futuro?/ Por que tão cedo esse batismo impuro/que mudou teu nome?/Em que galpão, casebre, invasão, favela,/ ficou esquecida tua mãe?/E teu pai, em que selva escura/se perdeu, perdendo o caminho/ do barraco humilde? (Cora Coralina – Poemas dos Becos de Goiás e Estórias mais)

São esses versos sofridos que me acorrem subitamente quando vejo a triste ‘paisagem urbana’ dos grandes centros do país. São milhares e milhares de menores abandonados, afastados das escolas, famintos, sujos e maltrapilhos, a dormirem ao relento e a pervagarem pelas ruas das capitais brasileiras.

Nunca os vira antes em tão grande número nas calçadas de Copacabana. A olhos vistos, nos horários matutinos, vespertinos e noturnos, com sol ou com chuva.Certamente serão ‘recolhidos’ a tempo das ruas, durante os dias dos Jogos do Pan. Como sempre acontece em momentos especiais, quando o ‘poder público’ cuida de esconder as chagas da Cidade Maravilhosa, hoje ‘cidade sitiada’, são tomadas as devidas providências. Dissimula-se, por pouco tempo, esta situação irreversível, cujas imagens são divulgadas pela mídia para o mundo inteiro.

Pais irresponsáveis

Desta vez, percebi serem bem menos numerosos os adultos e idosos que se distribuíam pelos passeios da Avenida Nossa Senhora de Copacabana. Morreram todos? Ou se homiziaram em outros espaços mais ‘atrativos’, sob pontes e viadutos da cidade?

Mas voltemos às indagações de Cora Coralina. Que mensagens podem ter essas crianças excluídas? O que pensam que lhes ocorrerá, a cada um em particular, num futuro sem qualquer perspectiva? Acho que nem pensam… Para que pensar?

Crianças abandonadas do Brasil, que triste sina! Por onde andam seus inconseqüentes pais, seus familiares, seus amigos? Por que tanta omissão diante de tão trágica realidade?

De que valeram os progressos da medicina para os irresponsáveis que os trouxeram ao mundo? Será que desconhecem o uso da pílula, que desde os anos 60 libertou as mulheres da gravidez indesejada? E os outros métodos fornecidos gratuitamente pelo governo?

A ‘pintura’ de Machado

Bem, vamos tratar de outro assunto, este de caráter cultural, embora merecedor do meu reparo e do meu desalento.

Refiro-me a duas visitas especiais. Pois desta vez não arredei pé do meu intento de estar no Largo do Boticário, no que fui atendida por meu irmão Pedro. Cavalheiro à moda antiga, propiciou-me este encontro, na companhia de Edla e Suely. O lugar é lindo e pitoresco, um belo postal do Rio antigo. Entretanto, encontra-se lamentavelmente abandonado. Inadmissível é que esteja também tão sujo e degradado sendo, como é, um ponto turístico sem similar no Rio de Janeiro.

Feita a desejada visita, seguimos pela rua principal do Cosme Velho. Desejávamos visitar o local onde vivera Machado de Assis até sua morte, no dia 29 de setembro de 1908. A velha morada não mais existe. Em seu lugar, foi construído um prédio imenso e ‘armengado’, em cujo canto da parede externa lê-se, numa insignificante placa de metal, breve referência ao fundador da Academia Brasileira de Letras. País sem memória é este nosso Brasil!

Visitando o Cosme Velho, ocorreram-me trechos dos vários livros de Machado de Assis, que pintou como ninguém até hoje a ‘atmosfera’ e a vida urbana do Rio de Janeiro.

Prazer renovado

Ainda conduzidos por um competente motorista de táxi, denominado Paulino, gentil e ‘estudado’ como ele só, fomos visitar o Parque Lage, tranqüilo e belo espaço de lazer, cheio de árvores frondosas, local reservado e agradável em meio àquela fervilhante metrópole. Refúgio dos amantes da música, o ambiente é muito procurado para bate-papos e refeições ligeiras, para o encontro de casais enamorados, ou para aqueloutros que só buscam a paz.

E, como tais idas ao Rio sempre trazem recordações, essas lembranças de outras visitas realizadas no passado são sempre um lenimento para o espírito. Por isso, visitar o Rio de Janeirode vez em quando é um prazerrenovadoe uma saudade sentida.

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Presidente do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia e membro da Academia de Letras da Bahia