Há 25 anos, em ensaio para a revista Playboy sobre a Copa do Mundo da Espanha, o já então consagrado jornalista Alberto Dines, exaurido pelo lufa-lufa da catarse futebolística, proclamava que ‘há um canto nas redações em que não quero mais entrar – não tenho estofo: a editoria da paixão’. Entregava os pontos, por assim dizer, ao que qualificou como 13º trabalho de Hércules, por exigir de seus profissionais que decifrem os caprichos ‘dessa estilização de vida e morte chamada futebol’, na qual se vêem ‘catapultados para a emoção, mas obrigados a desvencilhar-se logo dela para encarar teclados, câmeras e microfones; assistir vitórias e sossegar, testemunhar derrotas e sossegar, estraçalhar-se durante noventa minutos e sossegar’, filosofava, naquele que talvez tenha sido o último texto épico de nosso futebol.
De lá para cá muita coisa mudou. Não há mais clima ou apelo emocional, muito menos o glamour da bola de antigamente e que, de certa forma, ainda pontificam na odisséia narrada por Dines na sua ‘La Gran Guerra de Espana’, inspirada no célebre tratado de Klaus Von Clausewitz sobre as guerras. Copa que, além de injustiçar uma das maiores seleções da história, foi uma espécie de divisor de águas no futebol em geral.
Com a TV bombando os investimentos no mercado europeu, começou aí o processo de desertificação de nosso futebol, com a evasão dos craques e depois de valores de todos os quilates, que se espalharam literalmente pelos quatro cantos do planeta. Depois de mais de duas décadas de sangria desatada, eis que esse paradoxo de pujança e penúria chega a um nível alarmante, com nosso futebol doméstico cada vez mais reduzido a pangarés, em função do êxodo sistemático, e hoje em dia irrestrito, de muito mais valores do que a capacidade de reposição das equipes.
Brechas da legislação
Equipes, por isso mesmo, condenadas não só ao inglório papel de meras incubadeiras, como à perda contínua e inexorável de representatividade, como já acontece com alguns de nossos clubes mais tradicionais. E o que faz nossa solerte mídia esportiva diante de tal esvaziamento e iminente colapso da outrora galinha dos ovos de ouro? Impotente e com interesses comerciais invariavelmente conflitantes com possíveis propostas saneadoras, trata, mediocremente, de safar o seu lado, apelando para todos os jargões possíveis e imagináveis no sentido de turbinar a audiência e o faturamento.
É de dar engulhos a magnificação de irrelevâncias que campeia nas tradicionais mesas-redondas, estreladas por manjados medalhões como Galvão Bueno, Milton Neves, Roberto Avalone e outros menos votados, devidamente ladeados por convidados não menos escolados na arte de encher lingüiça. Performance que ganha ares de façanha com o fôlego de maratonista exibido pela equipe do Sport TV que, sob o comando competente de Luis Carlos Jr., consegue tornar palatável a resenha de um futebol em adiantado estado de anorexia.
Embora não se possa afirmar que a imprensa seja a responsável direta pelo agravamento desse quadro, como parte interessada e provedora de recursos substanciais para a sobrevivência dos clubes era de se esperar uma participação mais ativa no que diz respeito à preservação do espetáculo. Mormente a Rede Globo, que praticamente monopoliza as transmissões e, como tal, deveria exercer uma cobrança mais efetiva junto à CBF e ao próprio Ministério dos Esportes no sentido de estancar a sangria desatada de valores em plena temporada.
O ideal seria implementar medidas que pudessem impedir ou dificultar que os empresários continuem se beneficiando das brechas da legislação, numa inversão de papéis que deixa os clubes reféns dessa gente.
Esperteza e cumplicidade
Uma autêntica pirataria que, desde que foi oficializada pela Fifa, há dez anos, muito mais do que beneficiar a classe dos jogadores representou a sorte grande para a picaretagem do futebol, em contraste com o descalabro que se abateu sobre nossos já combalidos clubes.
Foi preciso que alguns deles batessem no fundo do poço para que a Lei fosse alterada e os direitos dos clubes minimamente preservados. Mesmo assim, a mídia reluta em cobrar mais incisivamente providências que impeçam o sucateamento de nosso futebol, protegendo os clubes – que além de tudo continuam, como antes, à mercê de dirigentes que tendem a transformá-los em verdadeiros feudos, quando não em hospedeiros das mais variadas maracutais, como no caso da gestão Dualibi no Corinthians.
Anomalias que vão se perpetuando graças às manobras políticas de praxe e à procrastinação das mudanças estruturais destinadas a dar mais transparência e seriedade às administrações dos clubes, inclusive com a previsão de responsabilização penal para dirigentes infratores.
É lamentável que a imprensa esportiva se restrinja a repercutir os resultados de campo. O que faz atilada e sofregamente no mister de perscrutar o previsível universo dos vestiários, falta-lhe no deslindar dos problemas crônicos de nosso futebol, principalmente quanto a esse já mencionado ambiente viciado e promíscuo que envolve dirigentes, empresários e até certos setores da mídia que lucram com esse estado de coisas. Esperteza de um lado, cumplicidade de outro e os cargos vão se tornando vitalícios, com os espertalhões se locupletando, quase sempre em prejuízo dos clubes e torcedores.
Muito chão até 2014
Em suma, tudo como sempre foi – e, pelo visto, continuará sendo indefinidamente, até pelo fato de ser o próprio presidente da CBF, Ricardo Teixeira, quem melhor encarna essa malfadada tradição do continuísmo. Recém-aclamado pela quarta ou quinta vez ao cargo que seu sogro, João Havelange, só largou para tornar-se presidente da Fifa, Teixeira provavelmente só sairá se quiser ou se for também para dar o pulo do gato e assumir a entidade máxima do futebol. Ambição, aliás, condizente com quem, mesmo às voltas com inúmeras acusações e evidências de irregularidades levantadas pela CPI do futebol, há quatro anos, não só se safou de todas como ficou ainda mais firme e forte à testa da entidade. Ainda mais agora, capitalizando o projeto brasileiro de promover a Copa de 2014, com o qual parece ter estreitado definitivamente os laços com o governo.
Projeto, por sinal, engolido a seco pela mídia, que praticamente não se envolveu nos trâmites incentivados e depois aprovados por Lula. Questões pertinentes aos custos exorbitantes do evento – estimados em mais de 5 bilhões de reais, posto que envolvem não apenas a reforma geral de todos os 18 estádios postulantes, como investimentos numa infra-estrutura complexa e dispendiosa – passaram ao largo de nossa loquaz crônica esportiva, com uma ou outra dissidência que o descaso geral acabou por eclipsar. Um descaso ao que tudo indica deliberado, diante da perspectiva de faturamento alto, de agenda cheia, de ganho político, enfim, coisas que fazem o altruísmo parecer coisa de amadores.
Mas ainda há muito chão até 2014. Até lá, mais cedo ou mais tarde, questões cruciais como as aqui aventadas terão que ser encaradas de frente para que o atual apagão futebolístico não se torne definitivo.
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Jornalista, Santos, SP