Em Anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia (1971), livro que considero O Capital de Marx no horizonte da pós-modernidade, Gilles Deleuze e Félix Guattari, seus autores, fizeram uma instigante interpretação do capitalismo. Para os autores de Anti-Édipo, o capitalismo é um sistema religioso sem ser e fundamentalista sem ser, sendo tanto mais religioso e fundamentalista quanto mais age como não religioso e não fundamentalista, o que constitui um evidente paradoxo, pois é agindo de forma laica, não religiosa, que o capitalismo se apresenta como o sistema político-econômico que supera todos os outros modelos teocráticos e despóticos anteriores.
E por uma razão muito simples. A saber: o lucro, a única religião do capitalismo, sua mais nefasta, obsessiva, destrutiva e autodestrutiva crença, tão cega, por não objetivar senão a si mesma, que supera qualquer forma outra de culto religioso, em suas consequências negativas, uma vez que apenas o lucro deve ser o objeto por excelência de adoração, o totem ou o intocável Deus, de sorte que tudo o mais – inclusive as religiões milenares – deve se submeter a Ele, ao Deus-lucro, sob pena de ser acusado de terrorista, de ignorante, de ressentido, de anacrônico, de herege, pecador e, pasmem, de fundamentalista, por não compreender a transcendental e épica necessidade de que o lucro resulte sempre em mais lucro, em benefício de uma minoria, que se torna plástica, artificiosa, estilizada, narcisicamente alegre, exatamente porque se constitui como a despótica casta – como a encarnação de Deus-lucro na terra – a se beneficiar do excedente econômico produzido precisamente por aqueles que são acusados de terroristas, ignorantes e fanáticos.
Não é circunstancial, por isso mesmo, que a fascista direita de todos os quadrantes do mundo tende a acusar de corrupto a qualquer movimento político que, direta ou indiretamente, não professe a religião do lucro, o que remete a uma outra possibilidade de interpretação para os casos de denúncia de corrupção envolvendo o PT, o governo Lula e especialmente a atual candidata petista à presidência, Dilma Rousseff.
E essa outra possibilidade de interpretação não se inscreve nem no sujeito ativo nem no sujeito passivo da corrupção. A (res) pública corrompida – com seus supostos envolvidos – constitui tão-somente a ponta do iceberg, um pretexto acusatório cujo inconsciente político não é a indignação ou a denúncia ou a necessidade de punição aos corruptos e aos corrompidos.
Uma estratégia de defesa do lucro
O inconsciente político dessas denúncias todas de corrupção, de tráfico de influências, de quebra de sigilos, de incompetência e por aí afora, está relacionado, na verdade, com o risco que esse ou aquele campo político de esquerda – ou tendências esquerdistas – pode representar para a autovalorização do valor, isto é, para a naturalização ideológica do suposto perene rio do lucro para poucos.
É, portanto, o lucro que não pode ser corrompido com nenhum ‘obstáculo’ social, ético, ambiental e muito menos revolucionário. As notícias que circulam nos meios de comunicação, por isso mesmo, ecoam simplesmente o pavor que o fascismo plutocrático tem com todo e qualquer movimento político que pode, aqui e ali, pôr em questão o determinismo fundamentalista do lucro.
Até porque a corrupção nunca é exceção num sistema econômico em que tudo deve gerar lucro. Nesse sistema, o capitalismo, a corrupção é regra geral e ocupa o coração das instituições, inclusive o da família. Há corrupção, por exemplo, quando pagamos um plano de saúde privado, com direito de isenção de impostos, num contexto em que falta dinheiro para a saúde pública. O mesmo vale para a educação.
Existe corrupção em toda situação em que o particular se apropria do coletivo e do público, razão pela qual constitui, no mínimo, um moralismo vazio qualquer denúncia de corrupção que não ponha em causa o sistema capitalista, corrupto por natureza pelo simples motivo de que a sacrossanta propriedade privada constitui-se como fundamento religioso de sua dinâmica sem fim rumo ao abismo do progresso ininterrupto, dilapidando, submetendo, humilhando e assassinando, para produzir lucro, o planeta todo.
Meu argumento, neste artigo, portanto, é este: as denúncias de corrupção – elas sim, corruptas, feitas pelos meios de comunicação, constituem uma estratégia de defesa de e para o lucro (para poucos). É por isso que o PIG, o Partido da Imprensa Golpista, acusa de corrupto, de incompetente, de ignorante, de terrorista, de autoritário, todos que não se apresentem como verdadeiros pretendentes, ou noviços, ou iniciados ou simplesmente profetas do deus lucro.
Candidata aparecia sempre de forma negativa
O transcendental corpo abstrato do lucro deve ser incorruptível, de modo que, nesse contexto, os banqueiros e especuladores, hoje, são os santos dos santos dos santos. È por isso que os pacotes econômicos dos EUA e dos países europeus não foram canalizados, tendo em vista a atual crise econômica mundial, para a produção e para o trabalho, mas para os bancos e os especuladores.
É igualmente por isso que o neoliberalismo se inscreve antes de tudo como um messiânico projeto econômico de saque e pilhagem – em nome do deus lucro – de tudo que é público e coletivo, seja sob o ponto de vista econômico ou simbólico. O neoliberalismo é a quinta-essência da incorruptibilidade do lucro, como se fora o mundo das ideias platônico, mundo em que o lucro deve ser a alma de todos os corpos do mundo, pois, de outro modo, serão corpos corruptos, motivo pelo qual, como fazem hoje os meios de comunicação com a candidata à presidência, Dilma Rousseff, devem ser incriminados, sem cessar.
Por outro lado, se comecei este artigo me amparando no livro Anti-Édipo, capitalismo e esquizofrenia, é porque neste fabuloso livro de Deleuze e Guattari o capitalismo é analisado como um laico sistema econômico que religiosamente, em nome do deus lucro, se apropria de todos os valores, mitos, culturas, práticas artísticas, despotismos, clichês. O capitalismo não tem limite ético, religioso e ideológico para a consecução de seu objetivo-mor: o lucro.
Tanto é assim que não é circunstancial a divulgação que os meios de comunicação, especialmente a Globo, estão realizando da candidata Marina da Silva, do PV; e mesmo de outros candidatos à presidência mais à esquerda do espectro ideológico, como o candidato do PSOL, Plínio de Arruda Sampaio e mesmo o do PSTU, o Zé Maria.
Quando é que Mariana da Silva aparecia nos meios de comunicação privados como ministra do Meio Ambiente do governo Lula? Se aparecia ou apareceu certamente era de forma negativa, razão pela qual a edição de sua imagem televisiva a esboçava como inflexível, carrancuda e intolerante.
Propaganda para promover jornal capixaba
Hoje, por sua vez, como candidata que pode, crescendo nas pesquisas, ajudar o campo conservador a garantir ao menos um segundo turno, tudo é diferente, pois é possível ver, no Jornal Nacional, uma Marina Silva calma, ponderada, sensata e muito frequentemente disposta a ecoar as denúncias que os porta-vozes do incorruptível lucro fazem de Dilma Rousseff.
É assim que age o capitalismo: de maneira flexível, dobrando e desdobrando-se conforme o movimento das ondas, sem lastro no mundo da justiça; sem lastro em nada senão no automovimento sem fim do determinismo incorruptível do lucro.
Por minha vez, esse último argumento me remete aos incorruptíveis atores da Rede Globo. Como é possível observar, eles, como bons soldados do lucro para poucos, estão aparecendo cada vez mais no programa político de Marina da Silva, assim como nas globais iniciativas de publicidades supostamente a favor da ética e contra a corrupção.
Recentemente, a propósito, tive a oportunidade de presenciar uma propaganda que o ator e diretor da Rede Globo, o caricatural Jorge Fernando, está ‘gentilmente’ protagonizando, a fim de promover o jornal A Gazeta, do Espírito Santo.
‘É incorruptível lucro certo!’
Jorge Fernando aparece com os olhos arregalados, como uma caricatura de si mesmo, embora tenha como proposta fazer uma caricatura dos discursos de perspectivas político-ideológicas diversas, como se fossem podres batatas de um mesmo saco: o da corruptível política, e corruptível, esse é o inconsciente que interessa, porque é apenas no plano político-democrático que o incorruptível lucro pode ser obstaculizado como, ele sim, o verdadeiro movimento corrupto que deve ser imediatamente contido, se quisermos continuar vivendo neste planeta.
Jorge Fernando, num lance teatral, imitando um ditador, mistura o discurso da extrema-direita com o da extrema-esquerda, provocando uma chuva de saliva quando chega na palavra imperialismo, com a nítida intenção de ridicularizar aqueles poucos políticos ou partidos que ainda costumam dar nomes aos bois, sem eufemismo, chamando as coisas pelos seus verdadeiro nomes: imperialismo no lugar de globalização, luta de classes no lugar de inclusão e exclusão e daí por diante.
Depois de vomitar caricaturalmente a sua salada multipartidária, como se fizesse parte de um único lixo, o lixo da política, o sempre entusiasmado ator global tira do suposto lixo discursivo, de sua asséptica lucrativa boca, a expressão que, para ele, contrapõe-se a todo discurso político, a saber: o combate à corrupção, e finalmente conclui, mais ou menos assim: ‘ É a corrupção que precisamos combater! Abaixo a corrupção! Compre o jornal A Gazeta!’
Sem ignorar que a propaganda em si constitui uma estratégia global de divulgação da candidatura do Serra e de rechaço à candidatura de Dilma Rousseff, como se esta fosse corrupta por excelência, o inconsciente político do mascarado faz tudo, Jorge Fernando, pode assim ser interpretado: ‘Combatemos os inimigos do incorruptível lucro porque são corruptos. Compre o jornal A Gazeta! É incorruptível lucro certo!’
Para os donos…
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Poeta, escritor e professor de Teoria da Literatura na Ufes