Em discurso de posse como diretor-geral da Agência Brasileira de Inteligência (ABIN), no dia 13 de julho, dei recados à sociedade, aos funcionários da agência, e terminei minha exposição com uma analogia-agradecimento ao presidente Lula pela confiança com que me distinguiu.
A tônica do discurso foi a transparência. E a idéia foi de que a ABIN precisa se antecipar para não ser surpreendida. Mas, em verdade, o surpreendido fui eu. Não leio discursos: tenho idéias e desenvolvo a oratória. Devia ter me antecipado às interpretações jornalísticas. Não o fiz: eis o risco do orador.
Empreguei analogias que, por natureza, estão repletas de ambigüidades. É o contexto que vai lhes determinar os seus significados.
Comecei com três palavras norteadoras da minha atuação: ‘Inteligência com inteligência’ – frase, aliás, cunhada pelo jornalista Mário Simas. E terminei com um vocábulo de três letras – o ‘bis’ da questão.
A analogia foi pontual. Se fosse um jogo de futebol, o governo estaria a exatos 34 minutos do primeiro tempo (1/3 do mandato); já fez gols, (boa atuação); já tomou cartões amarelos (denúncias); a torcida ovaciona, embora exista um pequeno grupo ‘do contra’ (liberdade democrática); neste exato momento entro em campo (nomeação); o jogo é violento, já tomei ‘caneladas’ antes de entrar (reportagens da CartaCapital); afinal, estou na posição de beque central do time. Um time do Estado, não do Governo.
A ABIN é o beque central pois evita o ataque adversário (ameaças endógenas e exógenas, NÃO ameaças políticas); anula jogadas (proteção do Estado Democrático de Direito e da sociedade) e, observando as oportunidades de gol (oportunidades econômicas), lança a bola nos pés do capitão do time (o mandatário da nação).
A torcida (sociedade) vai gritar ‘é campeão , é campeão’, e não será surpresa se a própria torcida, envolta no clima, eufórica e extasiada com atuação do time, pedir bis!
O emprego do ‘bis’, na analogia do discurso, presta-se à torcida (sociedade), que clama por outro espetáculo do time vencedor. Do time que deu espetáculo.
Face atávica
A minha atividade é de Estado, e não de Governo. Estado e Governo são locuções indivorciáveis, mas diversas. Fui convidado por um Governo para ter função de Estado. Mas o senso comum, e alguns repórteres, não sabem fazer essa diferenciação. É evidente que a função de Estado não pode ser partidária. Tenho plena consciência disso. Mas a atividade é sem dúvida política: coordeno a política de inteligência do país, mas que isso não se confunda nunca com atuação político-partidária.
Quando mencionei o ‘bis’ foi para declarar que ‘a torcida no estádio’ (sociedade) deposita extrema confiança no Governo, e que está torcendo pelo Estado – que é a sociedade politicamente organizada.
Gostaria de deixar claras as minhas convicções democráticas e a consciência que tenho do papel de Estado, e não de Governo, na direção da Agência Brasileira de Inteligência. Gostaria que o ‘bis’ ficasse como a transpiração do orgulho e da confiança do brasileiro no time. Não mais que isso. O ‘bis’, em última análise, é a forma mais tocante do aplauso: e o ‘bis’ é para o Estado.
Todo o orador deve saber um axioma: a imprensa, em seu estado natural de retransmitir uma mensagem, é pródiga em pinçar extratos de discursos, frases, locuções, e até interjeições, e dar-lhes um novo sentido, redramatizando até mesmo o significado: é aquilo que os filósofos chamam de ‘hipostasiar’. Vocábulo que, em linhas gerais, vindica um procedimento pelo qual uma frase, retirada de seu contexto, ganha uma nova pletora de significados – justamente porque interposta, inserida, num outro contexto.
Eis uma das faces mais atávicas do jornalismo em geral, e da edição em particular.
Credencial única
Pois bem: fiz o discurso de posse. Em seguida fui para a entrevista coletiva, que durou uma hora e meia, com presença de quase 50 profissionais de imprensa. Na coletiva, não fui questionado em momento algum sobre a interpretação possível do vocábulo ‘bis’. Nenhuma pergunta foi-me direcionada no sentido de que eu desse mais amplo significado às analogias e figuras de linguagem que empreguei. Mas nas edições dos jornais do dia seguinte, o ‘bis’ foi lido com os olhos interpretativos de que aquela era uma sonora palavra de passe pedindo a reeleição do presidente da República.
Sam Zagoria, ex-ombusdsman do Washington Post, defendia que, durante uma coletiva, as perguntas mais difíceis de serem feitas eram as clássicas: ‘O que você quis dizer quando falou aquilo?’.
Pergunta difícil para o repórter, porque fácil de ser feita, e difícil para o entrevistado, porque o obriga, necessariamente, a destecer a trama de seu discurso em público.
Mas, ao analisar os jornais no dia seguinte, constatei: não só comigo ocorrera o fenômeno. Bem ao meu lado, na minha posse, o presidente Lula repreendera o eventual ‘denuncismo’ dos agentes investigadores do Estado. E o que saiu impresso foi que o presidente dera um puxão de orelha no ‘denuncismo’ da imprensa.
Enfim, neste momento de transição, ou de ruptura como dizem alguns, o que mais preciso é da confiança da imprensa e da sociedade no trabalho que vou desenvolver. E só tenho uma credencial para isso: minha biografia.
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Delegado de polícia e diretor-geral da ABIN – Agência Brasileira de Inteligência do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) da Presidência da República