Sunday, 17 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

O cabide de emprego das TVs privadas

O ser se diz de muitas maneiras, dizia Aristóteles, embora, cada vez mais, e me refiro aos humanos, nos dizemos e nos fazemos de forma restrita, ainda que potencialmente tenhamos culturas, economias, sociedades, racionalidades, etnias, gêneros diferentes.


A verdade é que a diversificação de nossos dizeres e fazeres não encontra(m) um clima nada favorável se considerarmos as nossas deploráveis prisões maniqueistas: bem versus mal, rico versus pobre, centro versus periferia, essência versus aparência, valor versus não-valor, verdadeiro versus falso, religioso versus laico, universal versus particular, público versus privado, direita versus esquerda; e aí por adiante, até o acúmulo absurdo de tédios, que só nos torna mais perversos, ávidos de mortes, de tanto que não vivemos, não inventamos; de tanto, enfim, que não podemos nada fazer, senão o nada da vontade, como impostura, sufocando-nos a partir do centro semântico de nossas armadilhas maniqueistas.


Faço essa digressão para mostrar como nossas maniqueistas prisões nos deixam idiotas, para não dizer burros, por absoluta incapacidade de ver o imbecil e injusto mundo que permitimos, diante de nossos olhos, no uso perverso, contra os interesses das maiorias, por exemplo, que as nossas privadas públicas TVs privadas (privadas públicas porque são uma concessão pública e porque se comportam como se fossem a voz do público) realizam, em suas programações diárias, ecoando o conjunto de nossas mais ‘respeitáveis’ e excluidoras instituições, e sempre a despeito da diversidade vital das e nas ruas: a do comum povo brasileiro.


Onde os Ministérios Públicos? Onde a Polícia Federal? Onde o Poder Judiciário? Onde os poderes constituídos? Onde nós, como contestação majoritária, para permitir tão descalabro uso perverso das tecnologias de comunicação, justo na era delas?


Inteligência inigualável


Que mundo é este que tão monocraticamente, música de uma nota só, não apenas nos permitimos nele, através dele, mas também o desejamos, como se desejássemos o que nos submete, ao atribuir qualquer tipo de valor às imagens editadas para defender o interesse de uma tão banal, execrável e narcísica elite, na suposição de que o chamado mundo real seja o que as TVs nos jogam na cara diariamente?


E não é – pelo menos como editada banal farsa? Senão vejamos.


Ligo a televisão nas décadas de 80, 90 e na nossa primeira dual milenar década, em qualquer canal privado, embora os estatais sejam de matar, emparedadas que estão pelo privado mundo plutocrata em que vivemos; rendidos vendidos canais públicos, sem ser. Retomando: ligo a televisão. O que vejo? Monótonas propagandas contra a dimensão pública, a dizer que as instituições estatais não valem nada, que o governo x ou y, principalmente se for tendencialmente de esquerda, é um verdadeiro cabide de empregos; que tais categorias de funcionários públicos são marajás; que a saúde pública não presta; que a educação, então, ‘é uma vergonha!’, exclama de lá de dentro uma voz que disse que os lixeiros são a ralé da sociedade, de um tal Boris Casoy.


No mundo televiso, no final da década de 80, dele é isto que ouço: ‘Viva a iniciativa privada, que nos salva, salvará, destas trevas, e nada mais, ainda que através do solícito apoio estatal-público, é claro!’ Aí, então, num piscar de olhos, no novamente chamado mundo real, chega o caçador de marajás, o super Fernando Collor de Melo, gentilmente tornado o salvador da pátria; o super-homem do Brasil, a combater o perigo vermelho de um governo Lula, o comedor de criancinhas.


Último debate televisivo na TV Globo. Seu brilhante jornalismo conclui: ‘Collor, o gênio da raça plutocrata brasileira é imbatível! Humilhou, com sua inteligência inigualável, o ignorante Lula da Silva. Também, pudera, com este sobrenome, da Silva, é impossível um Zé povinho governar a pátria varonil!’


Um cargo para a plutocracia da Casa Grande


E o sujeito, o Collor, se torna presidente do Brasil. Bravo! Eis o varonil saco roxo a nos governar. Primeiro gesto: roubar a poupança da classe média, que tanto medo tinha do barbudo carrancudo, o da Silva. Segundo grande gesto: formar um grupelho de afoitos privados sanguessugas dos recursos públicos, aos quais as TVs privadas chamavam de criativos empreendedores, jovens modernos da república de Alagoas; aqueles que iriam combater o atraso de um país pré-moderno, cujos carros eram umas carroças e cujo povo é isto: o próprio atraso.


E depois? Depois, como o caçador de marajás, em função de seu exagerado narcisismo – e também por ter se concentrado em seu grupelho – não realizava as tarefas para as quais foi designado (privatizar o patrimônio público do povo brasileiro), era necessário exorcizá-lo do poder porque o neoliberalismo planetário não podia esperar mais um minuto sequer para saquear nosso patrimônio. E ainda tinha o risco de um revés maior, com a possibilidade de eleição de um governo de esquerda. Algo tinha que ser feito rápido…


E então?


Então, como a Casa Grande televisiva engendrou o Frankenstein, ela mesma promoveu a sua retirada de cena, instigando a emergência supostamente espontânea dos jovens guerreiros ‘caras pintadas’. Eis o chamado Golpe das Tulipas, tão conhecido pelas agências internacionais americanas. Será que as nossas oligopólicas TVs privadas tiveram alguma consultoria do Tio Sam?


Vai saber…


E o que mais, após, vi e vejo, ligando as TVs? Vi a edição televisiva de um ilustrado sociólogo: Fernando Henrique Cardoso, o poliglota FHC versus o monoglota da Silva. O homem que falava javanês, FHC, contra um da Silva que insistia petulantemente a concorrer a um cargo religiosamente feito e refeito pelo/para a plutocracia da Casa Grande, a única ungida pelos céus todos, a verdadeira pretendente a nos governar para sempre e sempre e sempre, amém.


Uma legião de pessoas para promover a idiotia


Vi o maquiavélico príncipe FHC, o mais promovido presidente de nossas privadas TVs, dizer que aposentados são vagabundos. Vi FHC atacando, com amplo apoio midiático, a previdência social, o emprego, a saúde, a educação. Vi também o homem que falava javanês fazer aquilo que Fernando Collor não fez: erguer, no coração do Brasil, o mais bárbaro neoliberalismo, privatizando empresas públicas e a classe média, que também foi privatizada como nunca, ao ser convidada, televisivamente, a se comportar de forma egoísta, abandonando de vez a sucateada educação e saúde públicas, em nome de uma suposta privada educação e saúde de qualidade, para os seus íntimos.


Eis aí o sistema de parentela neoliberal: Édipo Rei; papai, mamãe e filhinho protegidos pelas ilhas das fantasias privadas, enquanto a população monoglota era abandonada às traças.


Aí vi depois as privadas neoliberais TVs a serrar e cerrar filas para eleger o Serra, contra o monoglota da Silva, agora mais estilizado, como a classe média, para fazer frente à patrulha midiática da Casa Grande, a justiceira dos plutocratas. Vi o da Silva, já não mais carrancudo, ganhar duas eleições, desbaratando as privadas TVs, com o apoio de uma monoglota população que não entende o hieróglifo televisivo privado porque sabe, por sobrevivência, que é imagem de imagem, a que chamamos de simulacros; é morte para morte, por desconsiderar completamente as batidas do coração da vida, no rés-do-chão do cotidiano.


Vi, embora no plano do capitalismo – este plano que é o da morte – Lula da Silva governar este país como nunca, pelo simples fato de que não se submeteu aos ditames das privadas TVs, que são os mesmos do imperialismo americano e europeu.


Vi da Silva governando, estrategicamente, para o capitalismo brasileiro, e por isso mesmo respeitando os interlocutores eleitos democraticamente na América Latina, como Hugo Chávez, Evo Morales e Rafael Correa. Vi as TVs privadas, invadidas por inexpressivos e medíocres homens e mulheres que falam javanês, a sofrer sucessivas derrotas, porque não conhecem a língua do povo; por não conhecerem, enfim, o acerto transcendental do falar errado do povo, pois é um errado em relação à farsa dos acertos prosódicos das línguas imperiais; é o falar certo do povo.


E, após dois mandatos de Lula, o que continuo vendo nas privadas TVs? Ligo a televisão e vejo o cabide de empregos das privadas TVs. Ligo programas como Vídeo Show/Vido Game, e vejo uma legião de pessoas, que provavelmente falam javanês, com emprego fácil, para fazer coisa alguma: promover a idiotia.


Máquina de produzir clones de alienados


Como são tantas iguais pessoas, para um mesmo igual programa de entretenimento e autopromoção, no vídeo show /vídeo game globais, tenho a obrigação de dizer seus nomes. São eles/elas: Lugi Baricelli, André Marques, Ana Furtado, Fiorela Mattheis, Thalita Rebouças, De Luca, Cissa Guimarães, professor Jorginho e Angélica.


Quantos empregos fartamente fáceis! É por isso que as privadas TVs, para manter tais marajás, solicitam fartos recursos do Estado brasileiro? Afinal é preciso pagar bem esses voluntários felizes da banalidade. É por isso também que os donos de tão louváveis privadas TVs privadas têm tanta veneração pelos governantes do PSDB?


E, assim, vendo-as tão à vontade e autoconfiantes, os marajás da banalidade, pergunto novamente, numa só voz: ‘Qual deve ser o salário desses marajás do exibicionismo anoréxico? Por que são tão parecidos uns com os outros? A inteligência crítica está proibida na TV privada brasileira? Por quê?’


Aí, então, mudo de canal e passo os olhos num programa como Hoje em dia. O que vejo? Mais marajás costurando intrigas, fofocas, puxa-saquismos, exibicionismos; e mais e mais anoréxicas idiotias a favor da saúde mental e comportamental do povo brasileiro, especialmente das donas de casa.


Qual deve ser o salário desses marajás outros do exibicionismo, igualmente anoréxico, desse outro privado canal igual da TV brasileira? Por que será que a TV privada é uma máquina de produzir clones de alienados homens e mulheres (que falam javanês?), como Mariana Leão, Natália Guimarães, Geanne Albertoni, Celso Zucarelli, Chris Flores e o lindo bom-moço Edu Guedes?


A legião dos marajás da boa vontade


Não é muita gente para um mesmo fenomenal programa? Como foram contratados? Por concurso público de provas e títulos? Por indicação de parentes? Por notórios serviços prestados à sociedade do consumo? Por serem todos, sem exceção, a favor do imperialismo americano?


Ansioso, mudo de canal novamente. Vejo um sistema de idiotia um pouco mais requintado, com ‘verdadeiros’ homens que falam fluentemente o javanês. Vejo o CQC. Mais cabide de empregos: Marcelo Tas, Rafinha Bastos, Rafael Cortez, Marco Luque, Felipe Andreoli, Oscar Filho, Danilo Gentili, Monica Iozzi. Quanta gente pra um pretensioso programa!


Aí vejo que os cabides de emprego sofrem algumas metamorfoses. Talvez porque alguns bem nascidos ainda não estejam ganhando o suficiente, coitadinhos. Vejo que figuras como Marco Luque e Rafael Bastos recebem o direito divino de terem seus próprios criativos bestiais programas de produzir banalidades. Bravo!


De onde vem tanto dinheiro para sustentar tão saradas almas?


Aí ligo num programa de esporte x ou y, desse ou daquele canal. Mais uma legião de operários comentaristas da bola, ganhando fortunas com o objetivo de nos ensinar tudo sobre o seu paulista/carioca time preferido.


Bravo! O povo brasileiro vai ficar muito bem informado! Tarefas hercúleas de promoção de cidadanias visceralmente democráticas! Viva os marajás das TVs privadas, com seus necessários empregos civilizatórios! Viva nós todos, que permitimos que a concessão pública permaneça em mãos de tão incríveis alegres marajás banais, privados funcionários públicos!


E o que mais vejo? Nada além de ouvir o brilhante grunhido de resposta dos donos das TVs privadas, se soubessem ler um texto como este: ‘Nós somos a privada iniciativa. Ninguém tem nada com isso. Temos todos os direitos do mundo de empregar nossos parentes, de promover nosso sistema de parentela plutocrata. Seu comunista pretensioso! É por causa de um tipo assim que o Serra tem que ganhar de qualquer jeito essa eleição! A Dilma Rousseff não pode ganhar de jeito algum, muito menos ainda o candidato do PCB, Ivan Pinheiro; ou o do PSOL, Plínio de Arruda Sampaio; ou o Rui Pimenta PCO; ou o Zé Maria do PSTU, os quais nem aparecerão jamais em nossas puras imperialistas telas divinas. Onde estão os EUA para nos salvarem desses bárbaros?! Se não for através do golpe das tulipas, que nós tão diligentemente tentamos, diariamente, promover, que seja através do golpe judiciário ou armado ou parlamentar. Honduras, seja aqui!’


O que posso responder diante de tão brilhantes multicolores constatações, senão que o maniqueísmo estatal e privado é uma armadilha, como todo maniqueísmo e que, como todo maniqueísmo, serve pra desviar a atenção para o que interessa: antes de ser privado ou estatal, todo recurso é público; é comum, razão pela qual toda concentração de riqueza é roubo; é uma forma de, ainda que indiretamente, tirar comida de milhões, bilhões de criancinhas pelo mundo afora.


Ou vocês realmente acreditam que o salário do Faustão não tira comida da boca de muitas crianças, jovens e adultos? Será que o salário dele, de super marajá, não tem relação alguma com o fato de que muitos de nós, não obstante trabalharmos desde a mais tenra idade, ainda não termos a nossa casa própria? Será que somos os bárbaros incompetentes? Será que os bons são esses que ele promove em seus programas dominicais, com suas brilhantes interjeições ‘ Vamos lá, galera! Fulano de tal – o puxa-saco promovido da hora – é muito competente no que faz; tem muita consistência e responsabilidade cidadã! Ô minha senhora, olha aí seu maridão roncando no sofá!…’


É este o mundo que continuaremos a permitir? Este de uma plutocrata oligarquia planetária, que sanguessuga a vida na Terra e ao mesmo tempo produz e reproduz, narcisicamente, via terrorista concentração de poder midiático, o banal espetáculo de suas farsantes, dispendiosas, idiotas, zumbíticas imagens; de suas tão necessárias privadas vidas, enquanto que nosso comum destino, de diversidade biológica, alimentar, habitacional, criativa, corporal, intelectual, é barbaramente humilhado, caçado e assassinado?


Ah, sim, claro, eles não são contra a biodiversidade, pois existem programas específicos para a flora e a fauna do mundo! É verdade, concentrar rendas não prejudica em nada as feras. Também existe anualmente o programa (e outros que tais) da legião dos marajás funcionários da boa vontade: Criança Esperança! Eles se enriquecem às nossas custas, mas se esforçam para que nós mesmos colaboremos para mitigar a miséria do povo. E esses programas têm futuras isenções de impostos?


Como pude ser tão tolo? Como pude ser tão ressentido?

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Professor da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), poeta, escritor e ensaísta