A imprensa tradicional ainda faz uma representação aceitável da realidade na sociedade contemporânea? A questão vem à tona neste período carnavalesco, em que de modo geral os costumes se esgarçam e aquilo que é considerado imoral no resto do ano se transforma em qualidades positivas do espetáculo.
Sob o mote da alegria, vale quase tudo: as páginas dos jornais e a tela da televisão se transformam em passarela de periguetes e outros personagens sobre os quais, em outras ocasiões, a mídia tem olhos mais críticos.
Pode-se dizer que isso é natural como a dinâmica social: sob o signo de Momo, arquivam-se certas responsabilidades, guardam-se os preceitos da linguagem culta e vamos que vamos. No entanto, pode-se perceber um padrão moral conservador subjacente ao discurso aparentemente liberal com que são tratadas as notícias sobre os quatro dias de folia.
Corregedora moral
Vale para o carnaval, de modo geral, o padrão que convém ao se tratar de eventos relacionados, por exemplo, a um programa como o Big Brother Brasil.
Como parte do jogo, os protagonistas do reality show estão comprometidos com certas rupturas do comportamento socialmente aceitável. Eles são contratados para ousar e, eventualmente, chocar o público. Até mesmo certos desvios, como o caso em que um dos participantes foi acusado de estupro, são absorvidos na largueza de valores em que se instala o produto de entretenimento, como um de seus predicados comerciais.
A luta pela audiência justifica praticamente tudo. A questão se torna mais complexa quando se observa que a mesma organização acumula créditos de audiência no campo do entretenimento para ampliar ou consolidar sua presença no campo do jornalismo, onde os valores são muito outros. Essa dicotomia se apresenta, por exemplo, em detalhes na cobertura de crimes de grande repercussão, como ocorreu na semana passada.
Na sua faceta entretenimento, a organização de mídia aborda festiva e descuidadamente a coisificação do ser humano, em especial da mulher, e na faceta jornalística tenta se impor como corregedora da moral, do respeito à diversidade social, de pressupostos que a identificam com o que se imagina deva ser a sociedade contemporânea.
Sem reserva de mercado
Essa condição característica do duplipensar já foi absorvida de tal forma pela persona jornalística das organizações de mídia que só lhes resta transformá-la em qualidade a ser admirada. Assim, também no contexto restrito do jornalismo, valem os dois pesos e duas medidas, de acordo com o protagonista da história.
Por trás das escolhas de edição não parece haver dúvidas, mas existe uma tabela de valores e um index que relaciona personagens gratas e desafetos. De um lado, o permissionismo deslavado das imagens de carnaval e do Big Brother. Do outro, uma parceria com as forças mais conservadoras da sociedade a obstruir o debate sobre a questão da descriminalização do aborto.
Assim, a notícia, como ruptura previsível do estado latente no espaço público é um fato constantemente esperado porque sempre acontece alguma coisa noticiável. Mas o acontecimento não parece disturbar o ambiente das redações, porque a primeira decisão é sempre a de enquadrar em padrões domésticos os elementos de caos presentes no inusitado.
Mas os processos de tomada de decisão, planejados para sistemas estáveis de produção, cujo limiar é definido pelo acionamento das máquinas na gráfica, talvez não sejam mais adequados para a sociedade hipermediada.
As estruturas das redações, divididas em cadernos especializados, talvez não sejam mais adequadas para a tarefa de captar os fatos e transformá-los em produto noticioso. Mas elas não podem mudar porque justificam o sistema vertical de gestão, que garante a padronização das opiniões explícitas ou dissimuladas que estão contidas em todo material jornalístico.
E essa talvez seja a principal contradição e o grande desafio para a chamada imprensa tradicional: ela precisa se abrir para a inovação, para ser capaz de concorrer com os novos protagonistas do meio digital, principalmente os estrangeiros. Mas sua estrutura conservadora é avessa ao espírito inovador.
Enquanto puderem, as empresas brasileiras de comunicação vão tentar preservar sua reserva de mercado – embora todas elas estejam dispostas a receber o dinheiro de investidores estrangeiros. Mas a cada novo avanço das tecnologias de comunicação e informação, menos se justifica a manutenção dessas estruturas.
Não há reserva possível para o mercado difuso da notícia. As imagens do carnaval brasileiro, por exemplo, estão em sites de todo o mundo, e até em emissoras que podem ser captadas gratuitamente pelos tablets.
O mundo desfila na rede.