Nos últimos dias, vimos a blogosfera atuar quase de coletiva contra o projeto ‘O mundo precisa de poesia – blog’, no qual estão à frente Maria Bethânia (com o cargo de diretora artística), Hermano Viana (como coordenador de conteúdo e moderador do blog) e Andrucha Waddginton (como diretor dos vídeos).
O projeto, que ganhou repercussão nacional por ter sido aprovado na Lei Rouanet pelo valor aproximado de R$1.350.000,00, necessita de algumas explicações, especialmente porque muito tem se falado e criticado, mas sem nenhuma análise ou rigor, características típicas das redes sociais. Enquanto produtor cultural, a meu ver cabe esclarecer que um projeto desse porte e com essa amplitude custa caro, pelo menos aos olhos daqueles que não estão acostumados a lidar com esse tipo de trabalho.
Os 365 vídeos com Bethânia interpretando poemas ou trechos de autores consagrados da língua portuguesa realmente necessitam de pessoas qualificadas e experientes, que tenham vivência nesse tipo de iniciativa. O blog, que serviria como suporte para veiculação e distribuição do material produzido, foi uma escolha de linguagem da equipe de produção. E não necessariamente uma plataforma barata para se gastar menos – como muitos alegaram. Assim como os proponentes do projeto, também acredito que esse tipo de trabalho tenha mais a ver com a linguagem dos blogs do que com a linguagem dos já tradicionais sites. Portanto, não se trata apenas de um blog no qual diariamente serão inseridos poemas aleatórios – como muitos que vemos por aí –, mas um espaço com um trabalho curatorial e técnico de qualidade com grandes profissionais do mercado, o que, repito, custa caro.
O ponto mais criticado do projeto foi o salário de Bethânia, que consumia parte significativa do orçamento e que está em R$50.000,00 por mês, totalizando R$600.000,00 ao longo de doze meses de trabalho da cantora. Não creio que R$50.000,00 por mês seja um alto salário para uma artista com o histórico e do nível da Bethânia. Poderia, inclusive, ser mais do que isso. Minha implicância é com o tempo de duração desse trabalho, pois é sabido que Bethânia não precisará trabalhar um ano para a realização de todos os vídeos. Na pior e mais longa das hipóteses, em seis meses todo o material poderia ser gravado. Faltando, portanto, a edição dos vídeos e upload diário do material.
Possivelmente esse é o principal ponto negativo da iniciativa, pois parece que os proponentes não estão pretendendo realizar um projeto cultural, e sim, conseguir um emprego de um ano. Durante os doze meses de execução do projeto, precisariam nada mais do que o coordenador e moderador do blog e um assistente com perfil técnico para subir o material e resolver qualquer problema também de ordem técnica. Na pior das hipóteses, manteria também o editor (para finalizar os vídeos em aberto) e mais alguns profissionais com perfil de produção. Um fato é inegável: Bethânia não precisaria estar durante os doze meses do projeto recebendo R$50.000,00 por mês.
O que mais me chamou a atenção nisso tudo não foi o fato de ninguém vir a público falar sobre o caso, mas a defesa do próprio Hermano Viana no jornal O Globo (http://migre.me/45fXk), que em alguns momentos chega a ser vergonhosa. Seria mais sincero falar apenas da magnitude do projeto e dos profissionais envolvidos na empreitada, que de fato custam muito caro. Isso já justificaria parte considerável do valor apresentado à Lei Rouanet. Agora, tentar justificar a proposição do projeto a partir da ‘carência enorme de literatura de língua portuguesa na internet’ e da utilidade pública da iniciativa, convenhamos, não convence muita gente. A mim, pelo menos, não convence nem um pouco.
John Neschling, por exemplo, recebia na Osesp o dobro do salário pedido para Bethânia e nem por isso se tornou motivo de chacota nas redes socais. Aliás, o maestro sempre falou abertamente sobre o seu salário à frente da orquestra. Salários altos no meio da cultura são recorrentes, mais do que a maioria das pessoas imaginam. Não tenho dúvidas de que se esse projeto fosse aprovado por um anônimo passaria incólume – isso, se fosse aprovado. A pergunta é: a CNIC (Comissão Nacional de Incentivo à Cultura) aprovaria um projeto semelhante de um produtor anônimo? Pela minha experiência com o uso das leis de incentivo à cultura, afirmo veementemente que não.
Porém, a verdade é que Bethânia e seus amigos acabaram servindo de bode expiatório, pois o que aconteceu neste caso é recorrente nos mecanismos de apoio a cultura no país, seja pelos incentivos diretos, via Fundo Nacional de Cultura, seja pelos incentivos via Lei Rouanet. Quem trabalha com isso sabe que frequentemente projetos são aprovados com valores acima dos praticados pelo mercado e muitas vezes são realizados. Basta percebermos que nenhum outro artista formador de opinião se posicionou contra ou a favor de Bethânia. ‘Quem cala consente’, diz o dito popular. E tem sua parte de verdade. Não quero dizer com isso que artistas consagrados não tenham o direito de usufruir dos benefícios fiscais das leis de incentivo à cultura, mas apenas apontar um fato recorrente no país.
O caso da Bethânia foi mais um que sinalizou que a Lei Rouanet precisa ser revista. Cabe à nova gestão do MinC decidir sobre o assunto, porém, ao que tudo indica, a ministra Ana de Hollanda tem muito mais interesses conservadores a defender do que propriamente contribuir para o desenvolvimento e a democracia cultural do país.
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Produtor cultural, Rio de Janeiro, RJ