Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

O choque das anticivilizações

Em meio ao bombardeio de notícias sobre as mais variadas violências – desde um assalto passando por um crime irracional (que aqui significa mais que hediondo), até os sofisticados esquemas de corrupção envolvendo governos, órgãos (que deveriam ser) públicos e corporações – ficamos sempre na análise superficial, isto é, a ocorrência do fato em si, sem nos aprofundarmos nos processos que geram tais acontecimentos.


Em artigo publicado neste Observatório, em março deste ano (‘Quando pessoas são tratadas como coisas‘), sugeri tais observações aprofundadas. Outros textos, porém, já me indicavam tal caminho. Para não me alongar em citações, cito apenas o recente texto de Leonardo Boff intitulado ‘O verdadeiro choque de civilizações‘, publicado no sítio Adital, no qual, citando o pesquisador norte-americano Mike Davis, ele trata da favelização do mundo, acelerada com a introdução do neoliberalismo a partir de 1980, quando:




‘…houve uma privatização de quase tudo, uma acumulação de bens e serviços em poucas mãos de tal monta que desestabilizou socialmente os paises periféricos e lançou milhões e milhões de pessoas na pura informalidade. Para o sistema, eles são ‘óleo queimado’, ‘zeros econômicos’, ‘massa supérflua’ que sequer merece entrar no exército de reserva do capital’.


Incluídos e excluídos


Uma das conseqüências deste processo seria (ou já está sendo) ‘a luta entre a cidade organizada e amedrontada e a favela enfurecida’, isto é, incluídos vs. excluídos – aqui num aspecto político, configurando-se o verdadeiro choque de civilizações –, fato, aliás, observado pelo sistema dominante, o qual já se prepara (e já age) para conflitos urbanos, em favelas, chegando a lembrar um cenário próximo ao da guerra de Canudos. Daí, Boff questiona se a militarização do combate aos traficantes no Rio de Janeiro já não estaria obedecendo a esta estratégia.


Antes fosse uma ‘guerra’ com motivos políticos, pois explicitaria um grande desejo de mudança. Penso que, pior que isso, trata-se de uma luta vazia de sentido político, a violência literal, desumana, uma luta coisificada. Há muito já havia percebido que os diferenciais entre um ladrão de rua – desses que assaltam ou seqüestram – e um corrupto ou corruptor é apenas o tipo de arma utilizada – o primeiro, com uma faca ou revólver; o segundo, com a influência e a caneta – e a pena, para o que é realmente punido. Neste caso, também há incluídos e excluídos, mas em ambos temos o Homem sendo consumido pelos objetos, que procura conquistar a qualquer custo, a que chamo choque das anticivilizações.


‘Uma guerra sem fim’


O atual momento que estamos vivendo – conseqüência do processo descrito por Boff – nos apresenta um conflito social onde a ideologia de qualquer lado que se esteja é a mesma, contrária à noção de comunidade. Com isso, o desprezo pelo espaço público tende a crescer e o desrespeito com o outro também; e o Homem coisificado como fim e como único valor, fazendo qualquer outro desaparecer. Enquanto isso, os governos continuam na balela do crescimento (produzir mais), esquecendo-se (talvez propositalmente) do desenvolvimento, que é a preocupação de colocar os avanços da técnica e da informação aliados com a vida de toda a população, proporcionando uma real qualidade de vida, permanente, e não comprada num supermercado.


Alio-me, assim, às idéias do geógrafo Milton Santos, que vê uma saída para esta crise através de ações locais, desde que haja um insistente esforço dos setores da sociedade que estão conscientes do quadro que está configurado [SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. 6ª ed., Rio de Janeiro: Record, 2001]. Creio ainda nisso porque conheço muitas pessoas que fazem este trabalho de formiga, que passa sobretudo pela educação – num sentido abrangente, que inclui informação e oportunidades. Qualquer esforço ou medida que não tenha este foco será inútil.


A conclusão de Boff, com a qual encerro este artigo, vai também por esta linha, ao dizer que ‘enquanto não se fizerem as mudanças de inclusão necessária, continuará o medo e o risco real de uma guerra sem fim’ e – acrescento – sem sentido.

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Sociólogo, São Paulo, SP