Para um país carente de tudo como o nosso, que precisa urgentemente se reinventar, nada poderia ser mais desanimador do que a devastadora falta de protagonistas que se denota não só na área político-governamental, como em praticamente todos os setores vitais da sociedade. Dói na alma constatar que vivemos um vácuo de lideranças impositivas, um vazio de estadistas, pensadores, de personagens e instituições que deem o exemplo e comprem a briga no sentido de colocar as coisas nos eixos.
Nessa tenebrosa conjuntura de governantes desacreditados, de uma classe política que é vista, com toda razão, como provedora da roubalheira e desmandos que condenam o país à danação eterna; e em que a imprensa e a elite de intelectuais vivem sob incômoda e justificada suspeição, inevitável não lembrar e lamentar a falta que nos faz as antigas gerações de protagonistas, de mentores e talentos que brilharam e enriqueceram as mais diversas áreas. Na política, nos esportes, nas artes, e no próprio jornalismo.
Só não vê quem não quer que a atual crise de governança e moralidade está diretamente vinculada a degradação e aviltamento das chamadas forças vivas da sociedade, ao inexorável esgarçamento do tecido social. Uma sociedade que padece e reclama de situações para as quais, muitas vezes, ela própria contribui, ao compactuar e prestigiar os agentes nocivos que desencadeiam um círculo vicioso que ninguém dá conta. Conivência ensejada pelo comportamento anódino da própria mídia, porta-voz e porta-estandarte de dramas e tramas cuja recorrência poderia em grande parte ser evitada ou minimizada, houvesse por parte da imprensa, mais integridade e isenção; e por parte da população, senão a desejável educação e civilidade, um mínimo de senso de responsabilidade e colaboração.
Disposição e humildade
Com a enorme difusão dos meios de comunicação e a consequente ampliação de nosso campo visual, salta à vista o marasmo, a degradação, a sujeira que emana de todos os cantos no país, seja no sentido figurado como numa realidade que nos agride de todas as maneiras. Da bandalheira que impera no meio político-governamental aos dramas e vicissitudes do dia a dia. Os quais convém não subestimar, relevar, posto que é justamente dos pequenos detalhes que tudo começa. Coisas simples mas básicas, como os exercícios de cidadania que pavimentam os caminhos de uma sociedade civilizada.
Algo que ainda estamos longe de conseguir, basicamente por uma deficiente base educacional e cultural negligenciada há décadas por governantes que insistem em ignorar que não há progresso e evolução possíveis sem um ensino adequado.
Deveriam, houvesse disposição e humildade para tanto, se espelhar nas lições do grande líder e mentor que precisou de apenas três décadas para transformar uma medieval Cingapura num modelo de modernidade e convívio humano. Reverenciado e cortejado por grandes líderes das superpotências, do passado e atuais, como Henry Kissinger, Margareth Thatcher, François Mitterrand e Barack Obama, o ex-primeiro ministro Lee Kuan Yew, morto no último dia 23/3 aos 91 anos, soube como ninguém comandar e administrar nas condições mais adversas, fazendo por merecer as honras de um funeral que mobilizou praticamente toda a cidade que é considerada a mais cosmopolita, segura e modelo de convívio multirracial.
Tudo bem que Cingapura não chega a ter o tamanho da região metropolitana de São Paulo, o que em tese simplifica a tarefa de implementar medidas que permitam conciliar crescimento econômico com estabilidade e segurança. Mas o que não se pode ignorar é que o modelo que deu tão certo, que fez de Cingapura talvez o centro financeiro mais confiável e seguro do planeta, segue os mesmos rígidos padrões que alavancaram o surgimento dos chamados tigres asiáticos, também calcados em legislações severas e premissas como seriedade, determinação, disciplina e incentivo à meritocracia. Sem falar, é claro, na prioridade absoluta conferida a educação e massificação cultural.
Campo de batalha
Qualquer comparação com o que acontece aqui chega a ser covardia. Basta olhar em volta ou mesmo um simples passeio na orla da praia, como fiz na manhã de domingo (5/4), para constatar que nossos problemas são antes de tudo, de natureza cultural. De carências e deficiências que inibem ou suprimem até as noções mais elementares de direitos constitucionais e de cidadania. Costumo andar na beira da água, o que dessa vez simplesmente não deu, devido a quantidade absurda de lixo e sujeira devolvida pelo mar. Fato que vem acontecendo regularmente na outrora limpa e agradável praia de Itararé, em São Vicente (SP), deixando a impressão de que pode estar havendo descarte clandestino, por conta da sabida saturação dos aterros sanitários da região.
Nem por isso me surpreendi com a quase indiferença dos banhistas para este, digamos, pormenor, se deleitando em meio aquele lixo todo espalhado pelo refluxo da maré. Pensando bem, nem poderia ser diferente em sendo um tipo de convivência a que grande parte da população vicentina já está familiarizada, em função das seguidas interrupções na coleta de lixo da cidade, ora por greve, ora por força de calotes da prefeitura aos serviços terceirizados. Além, é claro, das costumeiras e pavorosas demonstrações de falta de higiene e asseio que nos acostumamos a ver em nossas praias. Cujo aspecto, aos finais de ensolaradas tardes dominicais, lembram a de um campo de batalha repleto de dejetos e restos mortais.
Alentado histórico
Detalhes aparentemente banais e insignificantes, mas que tem tudo a ver com a dura realidade que nos cabe engolir, imposta por governanças sem o indispensável estofo e altruísmo, e embalada ao gosto do freguês por uma mídia que trafega entre a frivolidade e mal disfarçados interesses hegemônicos-mercantilistas. Difícil dizer o que é mais maléfico: se o nível imbecilizante da predominante mídia televisiva, com suas novelas, programas de auditórios e BBBs pra lá de intragáveis, ou se a nauseabunda queda de braço entre as duas correntes que no frigir dos ovos, só denigre nossa imprensa. Um cenário, de qualquer forma, mais deprimente do que o cocô do cavalo do bandido.
Alentado e volumoso histórico desta pouco edificante epopeia de nossas perdas e desencontros, das escassas vitórias e inúmeras derrotas no sentido de construir um país melhor, vem sendo elaborado há vinte anos neste espaço. Que bem ou mal, tem feito o que mais se quer e se espera dos dignitários de nosso destino, ou seja, se reinventando, ampliando os horizontes para não morrer na praia. O que no contexto de escassez e privações crônicas que nos encontramos, não é coisa pouca.
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Ivan Berger é jornalista