‘Enquanto Belém dorme, o Jorge Age.’ Este dito popular define o que foi Belém depois da Segunda Guerra Mundial. Cidade de muros baixos, era de conhecimento público que o famoso Jorge Age participava do contrabando. Como ele, alguns dos mais notáveis personagens da cidade. Alguns de simpatia inigualável e de intensa participação social, como o próprio Age, um dos beneméritos do Clube do Remo. A frase sobre Jorge Age era um achado. Persiste na memória dos mais antigos até hoje. Neste momento, uma ótica utiliza essa frase popular em anúncio veiculado pelas emissoras de rádio.
Havia um lado negro na contravenção penal, em função do dinheiro ilícito que movimentava e da necessidade que a atividade tinha de aliados para se manter, além dos prejuízos que causava ao erário e, por efeito, aos cidadãos, com a sonegação dos impostos e o gasto de divisas (em menor grau, porque as trocas eram geralmente em mercadorias, não em dinheiro vivo). Com as suas duas faces, porém, o contrabando se estabeleceu no Pará no vácuo dos americanos, quando eles voltaram à terra de origem, legando aos anfitriões um tanto do seu american way of life. Os paraenses haviam experimentado o gosto das coisas importadas, do carrão ao tecido de nylon. E não queriam se desfazer delas.
Para manter a reposição dos estoques, a importação ilegal surgiu, cresceu e se estabeleceu, aproveitando-se principalmente da Guiana Holandesa, com capital em Paramaribo, além das demais remanescentes das possessões coloniais européias, a francesa (em Caiena) e a inglesa (em Georgetown). Elas eram as portas de entrada para perfumes, uísque, sandálias de borracha e vários outros itens de um consumo supérfluo, mas que entrara na rotina dos belenenses. Se o custo do frete lhes impossibilitava trazer a preço adequado os produtos do Sul, que viessem os do estrangeiro. O Pará ainda estava isolado do resto do país, com o qual mantinha contato apenas através da via área e da cabotagem.
Vieram tantos produtos que Belém se tornou ‘o porto brasileiro onde se registra maior incidência de contrabando, especialmente oriundos dos EUA’, anotou o repórter José Leal, enviado especial do jornal O Globo, do Rio de Janeiro, que, em 1957, divulgou uma série de 22 reportagens por ele escritas e reproduzidas na capital paraense pela Folha do Norte. É um retrato – amplo e detalhado, embora às vezes impreciso ou exagerado – do que era o contrabando em seu auge e do universo que gravitava em torno dele.
Bola preta
É surpreendente que um fenômeno dessa envergadura nunca tenha merecido a atenção devida, sobretudo dos acadêmicos. Não há um único livro escrito sobre o tema. Nem uma tese sequer. Artigos em jornal, nunca mais. O assunto parece ter-se tornado proibido. Já não faz parte da agenda da cidade. Ao menos até este mês, quando uma homenagem ao fundador do maior império de comunicações do Estado teve o efeito contrário ao pretendido: reinseriu o contrabando na conversa dos mais antigos.
Moradores da avenida 25 de Setembro, que perdeu esse nome, substituído pelo de Romulo Maiorana, em ligações telefônicas e mensagens pela internet, protestaram contra a troca. Não gostaram do cancelamento da homenagem aos soldados paraenses que foram para a Bahia, no início do século XX, combater o reduto de Antônio Conselheiro em Canudos, vários deles morrendo em combate, pela louvação a um contrabandista.
Uma das mensagens, posta em circulação através da rede mundial de computadores, sob o título ‘Em detrimento aos ‘heróis’ paraenses massacrados na Guerra de Canudos, um contrabandista vira nome de avenida em Belém’, reproduziu a 14ª da série de matérias de José Leal, ‘Um Repórter na Belém do contrabando’, que cita o futuro criador das Organizações Romulo Maiorana.
Leal relata ter sido informado ‘que estavam sendo vendidos em Belém revólveres contrabandeados’, o que considerou ‘uma novidade, pois até aquela data havia entrado clandestinamente no Pará toda espécie de mercadorias, procedentes de Paramaribo, com exceção de armas’. O repórter carioca sabia que apenas uma vez houve contrabando de espingardas, ‘porque na Guiana Holandesa os estabelecimentos comerciais não vendem pistolas ou outros meios de defesa pessoal, constituindo crime gravíssimo o porte de arma’. Deduziu que, por isso, ‘os Smith and Wesson que apareceram em Belém não poderiam ter vindo do Suriname’.
A partir daí o enviado de O Globo (por ironia da história, hoje associado ao grupo Liberal) chegou a Romulo Maiorana, através de um amigo dele, que lhe garantiu que 100 revólveres tinham sido trazidos dos Estados Unidos pelo colunista social de O Liberal, ainda o órgão oficial do PSD (Partido Social Democrático), de propriedade do governador Magalhães Barata, que o recebeu como doação dos amigos 10 anos antes. Romulo – que casaria com uma sobrinha de Barata – havia chegado a Belém em 1953 e organizado uma agência de publicidade, especializada em flâmulas e placas de anúncios em pontos de ônibus, em sociedade com o também pernambucano Nelsinho Valença.
O que o marcaria seria o detalhe da associação do seu nome ao contrabando de armas em Belém, nessa época ‘inundada por revólveres’, que podiam ser comprados ‘na calçada dos hotéis, no bar, na rua, com o conhecimento da Polícia, que nenhuma providência tomou, embora sabendo quem tinha trazido e quem os estava vendendo’, segundo o repórter de O Globo.
Por esse detalhe, o nome de Romulo foi anotado pelo serviço secreto do Exército e fez parte do primeiro banco de dados do Serviço Nacional de Informações, o SNI, criado pelo general Golbery do Couto e Silva logo depois do golpe militar que depôs o presidente João Goulart, em abril de 1964. Essa anotação ainda existia nos assentamentos do SNI em 1973, quando o governo federal decidiu pela concessão do canal 7 de televisão em Belém. Para evitar o veto do órgão de segurança, cuja aprovação era então requerida, Romulo organizou uma empresa em nome de cinco dos seus principais funcionários, sob o compromisso de eles lhe devolverem a concessão quando o obstáculo fosse eliminado.
Mesmo então, a anotação referia-se ao passado de Romulo, ressaltando que ele ‘encontra-se atualmente afastado dessas atividades ilegais’ e se tornara um empresário bem sucedido, que merecia o canal de televisão (‘O LIBERAL, sob sua direção, ganhara feição moderna, funcional e boa impressão, mediante aquisição de moderno material’, dizia a nota do SNI). Era um veto mais de natureza moral do que legal, embora o registro ressaltasse que o empresário se mantinha ‘fiel à sua tradição de corrupção’.
Esse mesmo tipo de restrição impediu Romulo Maiorana de se associar à Assembléia Paraense, o clube aristocrático da cidade, que lhe deu bola preta quando ele tentou comprar uma ação, mas depois o cobriu de glória, quando ele já tinha equiparado o Iate Clube à AP e se tornara um dos homens mais influentes do Pará. Os militares, que procuravam evitar a sua companhia, também passaram a freqüentar seus veículos e seu gabinete, um dos lugares de maior prestígio de Belém (ainda mais quando a presença dos visitantes era registrada no jornal, através de fotografia ou em nota do Repórter 70, a coluna social do dono).
Agressão covarde
Esses fatos constituem história já de meio século e não podem mais ser extirpados dos jornais e documentos da época, mas os herdeiros de Romulo tudo fazem para que esse passado seja expurgado da memória de todos. A troca de nomes da avenida, proposta por um ‘amigo da casa’, o vereador Gervásio Morgado (do PR), foi aprovada por seus pares a toque de caixa e por unanimidade. Dois dias depois foi sancionada pelo prefeito em exercício, Walter Arbage (Duciomar Costa, como de regra, viajava). Nenhum integrante da família Maiorana compareceu ao ato de promulgação da lei, no Palácio Antônio Lemos. A empresa foi representada pelo seu diretor de marketing, Guarany Júnior.
A maioria da população aplaudiu a mudança, tanto pelo conceito de Romulo junto à sociedade como pelo poder do seu império de comunicação – e mesmo pela circunstância de que a sede do jornal O Liberal passa a se localizar na avenida com o nome do seu principal personagem. A aprovação também foi dominante entre os moradores da avenida, inclusive porque a prefeitura anunciou que iria começar a executar um projeto urbanístico na antiga 25 de Setembro semelhante ao que foi aplicado na Duque de Caxias. Mas a mudança de nome também suscitou uma discussão com efeito imprevisto ou indesejado pelo seu autor: voltar a atrair o interesse de uma parte da opinião pública pelo contrabando.
Nada disso podia ter acontecido se os legisladores já tivessem adotado a providência de proibir a mudança da designação de logradouros e bens públicos. Todas as novas homenagens deviam tomar por base novos lugares ou prédios. Os argumentos para a troca quase sempre são fracos e o novo nome costuma ser de valor inferior ao antigo, mesmo quando são apresentados fundamentos de aparente validade.
No caso da 25 de Setembro foi alegado que hoje o conhecimento sobre o fenômeno Canudos difere da visão que as autoridades e a opinião pública tinham na época da guerra declarada aos fanáticos de Conselheiro. Eles nunca foram ameaça à integridade do país e ao regime republicano. Se não incomodados, podiam ter-se mantido como uma comunidade exótica, mas não perigosa. Outra abordagem teria sido muito mais proveitosa do que a agressividade bélica do governo.
A esse tipo de exercício intelectual dá-se o nome de revisão – ou releitura – da história. Novas informações, a abertura de arquivos até então inacessíveis e o arejamento proporcionado pelo tempo permitem ver o mesmo fato por outra ótica. Marx contribuiu muito para o revisionismo com sua visão da totalidade e do contexto dos acontecimentos, que ajudam a explicar os atos individuais. Mas que também gerou uma distorção: de se ver a história apenas como uma sucessão de estruturas, como se elas fossem destituídas de dinamismo social, dos elementos da imperfeição humana, com suas contradições e paradoxos, com suas individualidades tão desiguais. O presente distorce o futuro ao se projetar sobre ele com seus próprios valores, que absorvem e ocultam os valores da época antiga.
Se os estudos sobre Canudos, desde a extinção do foco supostamente monarquista criado por Antônio Conselheiro, podem transformar o que era heróico em sórdido ou cruel, ignorar o que aconteceu de fato significa que a história deixará de ser uma sucessão de realidades para se tornar uma construção destituída de seu principal elemento de historicidade, que é o próprio fato. É certo que fatos podem ser inventados a posteriori, mas a história está muito longe de ser mera construção intelectual – ou, pior, uma reconstrução postiça.
Se hoje já não se justificaria tratar por heróis os que participaram do massacre de Canudos, não se pode nunca ignorar que eles foram encarados como tal na época em que os combates aconteceram, sendo recebidos festivamente quando de sua volta às terras de origem. Prova disso é a existência em Belém, como em muitas cidades espalhadas pelo país, de homenagens a eles, como a da avenida 25 de Setembro. Apagando-se esse registro, contribui-se para distorcer a história, que passa a ser uma marionete nas mãos dos que podem manejar os fios decisórios em determinado momento, como agora neste episódio.
Acho justa a homenagem a Romulo Maiorana, mesmo com nódoas na sua biografia, porque o saldo é favorável tanto a ele como à sociedade. Essas nódoas passaram a ser marcas da história e, como tal, devem ser assim consideradas. Quando – em outras edições deste jornal – me referi ao seu passado ligado ao contrabando, não pretendi jamais ofender a sua memória (e aos seus herdeiros ou sucessores), denegri-lo ou atirar contra ele acusação nova. Apresentei alguns fatos inquestionáveis e que se tornam necessários referir quando se precisa explicar determinados acontecimentos, como seu recurso a terceiros para a obtenção da concessão de um canal de televisão em 1973, quando o contrabando já era figura do passado.
As ações judiciais que seus dois filhos propuseram contra mim, a pretexto de defender a memória do pai, tinham um objetivo não declarado: o de me imobilizar e, se possível, destruir, para não continuar a incomodá-los com a verdade, especialmente depois que um deles, Ronaldo Maiorana, me agrediu fisicamente. A agressão, covarde e indefensável, expôs sua organização à reprovação nacional e internacional, com repercussões que chegaram a respingar sobre o poderoso aliado, as Organizações Roberto Marinho, donas do mesmo jornal que mandou seu repórter à ‘terra do contrabando’, mais de meio século atrás.
Teste de consistência
O título já não cabe mais a Belém e ao Pará, mas é um elemento importante da sua história, a ser tratado como tal: sem passionalismo, com a utilização dos métodos que a ciência da história fornece para que a crônica dos acontecimentos reais não se metamorfoseie na versão conveniente. Quando a história é interditada, ela própria encontra um jeito de escapar dos grilhões e se expressar, ainda que através de linhas tortas, como as desta mudança de nome de uma avenida.
É compreensível que os herdeiros de Romulo Maiorana não queiram tratar de questões incômodas da sua biografia, exaltando apenas os seus feitos, que não foram poucos. O que é inaceitável é se concedem poder de veto sobre essas questões, transformando em réprobos e passíveis de perseguição quem queira tratá-las com seriedade. Podem não gostar da situação, mas têm que reconhecer a legitimidade do interesse, por se tratar de tema de âmbito público.
Na época em que foram publicadas, as reportagens de José Leal tiveram enorme repercussão. Ele tinha consciência da reação que provocaria. Como o próprio repórter anotou, com evidente exagero, ‘Belém é uma cidade perdida, onde, com raras exceções, todo mundo vive do contrabando, para o contrabando ou pelo contrabando’.
A ‘alarmante generalização’ fez João Malato, articulista da Folha e um dos principais jornalistas dessa época, se manifestar para alertar: ‘É preciso não esquecer-se que os verdadeiros responsáveis por essa atividade de lesa-economia de uma pátria, não são os que nela desempenham o papel secundário, de instrumentos materiais da contravenção, e cujos nomes o repórter de ‘O Globo’ enfileirou numa sequência numerosa’.
Os ‘grandes responsáveis e principais beneficiários do tráfico ilícito’, garantia Malato, ‘permanecem revestidos de sua carapuça de honestidade inderrocável, fumando os seus charutos na calçada iluminada e refrescante do Grande Hotel, exibindo-se nos salões festivos da sociedade, frequentando os diretórios partidários e as sedes governamentais – e quando acontece serem atingidos por alguma alusão às suas espertezas mascaradas, correm às colunas pagas dos jornais, para se classificarem a si mesmos de legítimos varões plutarqueanos, a que lhes dá direito as suas investiduras na presidência ou na diretoria desta ou daquela entidade, carente de valores, e onde, também, sobrenadam outros espécimes de salsugem moral amazônica’.
Os procedimentos relatados pelo jornalista, que, anos depois, se tornaria também articulista de O Liberal, já sob o comando de Romulo Maiorana, acabariam por se repetir na onda das reportagens de José Leal. Em notas pagas, alguns dos muitos personagens se defenderam de acusações feitas e proclamaram-se homens sem máculas, como o próprio Jorge Age. Mas foram poucos os que transferiram o turbilhão de comentários e cochichos para a letra impressa de jornal. A maioria se manteve em silêncio, apostando na duração fugaz do interesse da opinião pública, por não ter o que dizer em sua defesa ou porque realmente os fatos alegados, sem ter ao menos verossimilhança, não mereciam ser desmentidos.
Nem tudo o que o repórter publicou era verdadeiro ou estava provado. A tarefa de submeter o passado ao teste de consistência só se realiza quando a sociedade evoluiu o bastante para encarar a verdade, por mais que doa a uns e outros. Por mais que esses uns e outros se achem mais iguais do que todos os demais.
******
Jornalista, editor do Jornal Pessoal (Belém, PA)