Mais um dia de trabalho cansativo. Eram quase dez da noite quando deixei a rádio e marchei para casa pelo caminho de sempre. Ao dobrar a segunda esquina, um alvoroço por perto do hotel que, na época, era o melhor da cidade. Carros pretos com chapa branca, homens engravatados entrando e saindo do hotel.
‘Tem notícia fresca por aí’, avisou-me o faro de repórter. Chamei num canto um funcionário do hotel, que me explicou: ‘A comitiva do governador está entrando para pernoitar’.
Eu já ouvira dizer que aquele governador não viajava de avião. Agora, tinha certeza. A comitiva seguia em vários carros e imponentes peruas Veraneio pelo interior de São Paulo até algum lugar próximo à divisa com Mato Grosso do Sul. Pelo adiantado da hora, resolveram parar na cidade para dormir. Provavelmente fizeram-no sem nenhum aviso antecipado às autoridades locais e setores de segurança da região. Silenciosa surpresa para a cidade!
Sinal de ocupado
Por outro lado, nessa época a presença de um governador do estado na cidade, mesmo que para fazer xixi, era um fato extraordinário, quase ‘furo de reportagem’.
Sondei o ambiente e vi o governador em pé, próximo ao balcão da recepção. Consegui me aproximar e pedi que dissesse umas breves palavras para os ouvintes da cidade, num rápido contato que eu faria ao vivo, utilizando o telefone do hotel. Visivelmente cansado, meio atordoado com a agitação do desembarque, ele concordou.
No telefone da recepção, disco para o estúdio da Rádio Alvorada. Sinal de ocupado. Tento novamente. Ocupado. Sua Excelência me olha com certa impaciência (sim, usava-se esse pronome de tratamento), enquanto arrisco pela terceira vez. Continua ocupado!
Uma angústia visível
A linha telefônica era usada só para ligações eventuais. Naquele horário, não havia transmissões por telefone nem programa com participação de ouvintes. Procuro outras explicações e, por uma fração de segundo, entre a pressão das circunstâncias e a noção do mico em que me metera, quando poderia ter ido direto para casa jantar tranqüilamente, imagino o motivo da maldita linha ocupada. Meus pensamentos não conseguem evitar a visão dos estúdios. Vejo o entediado locutor meio esparramado sobre sua mesa, com o telefone no ouvido. Entre um intervalo e outro da programação, com música suave no ar, sussurra encantos de sua voz para alguma ouvinte derretida. Sinto vontade de correr até lá e gritar para o homem da voz bonita que sua ingênua atitude paralisou o governador e me deixou na corda bamba!
Reponho o fone no gancho e tento me desculpar. Mas o visitante é um homem informal e muito acessível. Além disso, deve ter-se compadecido com minha visível angústia:
– Sua rádio é longe daqui? – pergunta-me.
– Logo ali, depois da próxima esquina, Excelência!!
– Vamos até lá.
O silêncio era a regra
Eu mal acreditava no que via. Ele me acompanhando a pé pela rua, sem escolta nem cordões de isolamento! Explico minha admiração: eram tempos do regime militar e ainda nem se pensava em abertura política. Isso fazia toda diferença em termos de rigor, liberdade, prevenção e todo aparato de controle e segurança.
Antes de chegar, pensei: ‘Onde acomodo o homem para entrevistá-lo?’ Jogá-lo no ar a essas horas seria desperdiçar a chance de uma entrevista detalhada, com boa audiência. Então, já que veio até aqui, aproveito sua boa vontade para gravar uma entrevista mais longa, sem pressa, para apresentar em horários nobres.
Não era preciosismo, nem deslumbramento provinciano. Para quem não viveu aqueles tempos, é preciso dizer que o silêncio era a regra. Falar era quase uma exceção, que muitas vezes dependia de prévia autorização superior. Obter uma palavra de alguma fonte de notícias era difícil. Uma palavra informal do chefe do governo estadual, uma raridade!
Sem precauções especiais
O melhor lugar para acomodá-lo é a sala do diretor, com poltronas de couro, tapetes e ar condicionado. Quase à prova de som, nenhuma janela, a sala servia também como estúdio. Apressado e pouco à vontade para conduzir meu acompanhante pelas desavisadas dependências, vou direto para a primeira sala – a das poltronas de couro – sem passar por outros ambientes nem pelo estúdio principal, onde cuidavam da programação ao vivo o tal locutor e o operador de som, que era um colega simpático, com hábitos típicos do interior. Gostava de chapéu, cigarro de palha e, entre uma pitada e outra, um gole do café frio que trazia numa garrafinha de vidro.
Entro na sala, tranco a porta e inicio a gravação. O governador responde às perguntas com boa vontade, mostra-se simpático e estende-se além do previsto. Dou-me por satisfeito, desligo o equipamento e me levanto, para acompanhá-lo de volta ao hotel, já preocupado com o abuso por mantê-lo ‘confinado’ por tanto tempo, sem qualquer precaução especial.
Um ‘estranho’ que se dizia repórter
Abro a porta e o susto é inevitável. Tenho a sensação de estar em outro lugar, algum ambiente desconhecido. O corredor está congestionado! Agitação e nervosismo por todos os lados. Dou um passo para trás e mantenho a porta entreaberta, para evitar que o governador se exponha. Afinal, ainda não sei o que se passa do lado de fora.
Homens com trajes parecidos, alguns com aqueles aparelhinhos radiocomunicadores. Um deles, que parece ser chefe de alguma coisa, dá uma instrução pelo seu aparelho: ‘Chamem reforço e cerquem o quarteirão!’.
Espremido entre estranhos, lá está o bigode do locutor, cercado por pessoas que, presumo, são seguranças e assessores. Parece em apuros. Percebo que tentam obter dele alguma informação. Então começo a entender o que se passa. O pessoal da segurança perdeu de vista o governador por muito tempo, logo após ele ter sido abordado por um ‘estranho’ que se dizia repórter. Localizaram os estúdios e querem a resposta do colega: ‘Onde está o governador?’ O locutor tenta explicar onde fica a casa do governador do Rotary Club, fato que deixa os homens ainda mais irritados.
Embornal e cigarro de palha
No outro canto, a situação é pior. Percebo que o operador de som está mais encrencado. Por sua causa, um perito em explosivos está sendo chamado, para examinar objetos encontrados em poder do apavorado funcionário. Um embornal contendo algo do tamanho de uma granada de mão e um cilindro metálico com aspecto de projétil de fuzil.
Abro a porta e o governador sai, para alívio de todos. As coisas se esclarecem e fico sabendo que o locutor não tinha culpa da linha ocupada. Antes de se retirarem, os seguranças se desculpam com o operador e lhe devolvem o embornal com sua garrafinha de café e o cilindro metálico, que ele prontamente examina para ver se continua funcionando. Afinal, tinha muita estimação pela velha binga, o isqueiro rústico com que acendia o cigarro de palha.
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Jornalista, Brasília, DF