Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

O discurso (in)competente do jornalismo

Para chegar a ser superficial, o jornalismo feito no Brasil ainda precisará se aprofundar muito. O periodismo brasileiro, ao contrário do que muita gente pensa, não existe para questionar nada, mas simplesmente para garantir que as coisas permaneçam exatamente como estão. Senão, me diga quantas vezes o Jornal Nacional promoveu um debate sobre a reforma política…

Outra coisa bastante curiosa é o desaparecimento dos limites entre jornalismo e entretenimento. Os jornalistas hoje são cotados entre celebridades, não como especialistas em comunicação. Desconfio até que este é o objetivo da maioria das pessoas que faz este curso: conquistar os degraus da fama sem precisar passar pela chatice de uma escola de teatro e ganhar experiência percorrendo os palcos da vida. Jornalistas de TV são atores, não pessoas interessadas na informação como bem público. Se uma coisa levar à outra, tanto melhor.

Por exemplo, Marília Gabriela. Nunca acompanhei sua carreira e não sei se ela chegou mesmo a ser uma jornalista de verdade. Mas sei que famosa ela é, o que não necessariamente tem a ver com qualidade. Marília Gabriela é o exemplo perfeito da enevoada fronteira entre real e ficção. Largou o jornalismo para ser atriz de novelas. Aliás, uma boa atriz, pois como jornalista já praticava a arte de atuar.

A autoridade do depoimento

Mas há um paradoxo. O jornalista, para ganhar credibilidade, deve obter sucesso no ‘campo’ (Bourdieu) do jornalismo. E para isso, é preciso não se submeter aos ditames do mercado, por exemplo, fazendo propaganda comercial. Para a categoria, é antiético (ou pelo menos deveria ser) usar da autoridade adquirida na lida com público para auferir ganhos econômicos no meio publicitário. Para ‘fazer um nome’, é preciso antes conquistar os espaços de sua própria área e, só depois, transferir o capital simbólico para outros âmbitos, como o político, por exemplo.

Com exceção de Marília Gabriela.

A bonita loira é uma das vedetes do mercado de anúncios. Por que? Porque as pessoas confiam na sua palavra por intermédio de um pseudo-discurso jornalístico comprometido com a veracidade da informação. Sua imagem funciona da seguinte forma: ao emitir uma mensagem sobre determinado assunto, o público a associa a alguém cuja fala é verdadeira, pois oriunda de um campo onde todos necessariamente falam a verdade, no caso, o jornalismo.

Nada mais falso.

Outro dia a vi estrelando uma propaganda de telefonia móvel e serviços de banda larga. Nele, Marília Gabriela falava em um tom professoral, jornalístico, sério. E diz: ‘Eu sou Marília Gabriela, jornalista.’ O texto denuncia uma clara interferência de discursos. No caso, fala uma jornalista, mas que há muito tempo abandonou a profissão.

Hoje ela é uma boa atriz. E como boa atriz que é, desempenhou perfeitamente o papel para o qual foi chamada a desempenhar: o de jornalista. A reafirmação da fala ‘jornalista’ serve, no caso em questão, para dirimir possíveis dúvidas do espectador sobre a autoridade do depoimento.

Um fato revelador

Atualmente, Gabriela é talvez a única jornalista-atriz no Brasil de renome que aceita atuar como jornalista para o explícito ganho econômico dela e das empresas. Por isso é tão requisitada.

Mas o movimento inverso também acontece, ou seja, dos atores/atrizes que se transformam em ‘jornalistas temporários’, e isso, ao contrário do que vínhamos discorrendo, acrescenta know-how ao ator/atriz, em vez de tirar. Estamos falando de um completo embaralhamento dos mundos do jornalismo e da acadêmia com o do espetáculo. A verdade do discurso transfere-se do estudioso, tecnicamente habilitado, para aquele que simplesmente aparece na TV e, por isso mesmo, é credenciado para discorrer sobre os mais diversos assuntos.

Por isso, vemos cada vez mais atores/atrizes participando de programas jornalísticos e opinando sobre tudo, de eleição a futebol, de moda à política econômica. Qualificação tornou-se sinônimo de visibilidade. Uma moda que chegou também nos jornais e revistas, onde entertainers como Maitê Proença, Fernanda Torres, Caetano Veloso e outras pessoas do mundo do show business mantêm suas colunas semanais de opinião ‘balizada’.

Sobre o compositor de Sampa, o jornalista e professor Muniz Sodré, em texto publicado no Observatório da Imprensa (Os neojornalistas estão chegando, 29/06) destaca sua coluna n´O Globo (20/06), na qual o cantor se pergunta se ‘o jornalista estaria `sentindo saudades de um suposto tempo em que jornais eram feitos por jornalistas´.’ (Vejam só! Trata-se de um artista-escritor-colunista com espaço garantido em jornal reclamando que os jornalistas estão perdendo espaço nas publicações, fato por si só revelador do atual estado de coisas.)

A economia da visibilidade

Após responder dizendo que, em geral, os jornais nunca foram feitos exclusivamente por jornalistas, ou seja, que sempre houve cruzamento do fazer jornalístico com os discursos provenientes da arte e da literatura, por exemplo, o professor faz uma ressalva e afirma que, mesmo assim, alguma coisa está mudando:

‘A frase caetana sinaliza um tempo em gestação, em que a identidade corporativa do profissional de imprensa vem sendo fortemente abalada por uma série de fatores. Há o fator tecnológico, a internet. Mas há também, especialmente aqui entre nós, um novo tipo de reconhecimento do entertainer (músico, ator, compositor, cantor etc.) como intelectual com voz socialmente autorizada como pública. É esta, muito provavelmente, a razão para o recrutamento desses entertainers como colunistas em jornais do Rio e São Paulo.’

E mudando talvez para pior: ‘Charme pessoal à parte, multiplicam-se os indícios de que o besteirol possa estar migrando das ribaltas para o jornal.’

É a nova economia da visibilidade colonizando o discurso competente. Lamentável.

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Estudante, Natal, RN