Duas figuras públicas foram alvo de críticas devido a declarações polêmicas que circularam na imprensa. Primeiro, foi o apresentador de TV Luciano Huck, que numa entrevista saiu-se com a seguinte pérola: ‘Todos são iguais, só o dinheiro é diferente.’ Dias depois, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso assinou um artigo em que empregava a palavra ‘povão’ para definir ‘as massas carentes e pouco informadas’.
Na verdade, até é possível entender o que cada um deles quis dizer. Luciano Huck, líder de audiência entre as classes C e D, tentou mostrar que, apesar de ter muito mais dinheiro que seus espectadores, era um sujeito simples, sem soberba. Desde a polêmica sobre seu artigo pedindo mais segurança no país, escrito na época em que foi assaltado em São Paulo, Huck vem tentando mostrar que é um cidadão igual aos outros, sujeito às mesmas leis e aos mesmos problemas que todos brasileiros encaram diariamente. Obviamente, a coisa não é bem assim: Huck não usa transporte coletivo, não leva seus filhos a escolas públicas e sua esposa não tem dupla jornada acumulando as tarefas da vida profissional e da vida doméstica. Seu orçamento jamais é apertado.
Antes que me tomem por uma ‘esquerdista revoltada’, quero dizer que Luciano Huck merece toda a riqueza e a vida confortável que possui porque é talentoso, trabalhador e persistente, assim como outros brasileiros bem-sucedidos. No entanto, ele deveria parar de tentar se fazer de cidadão comum porque isso é, no mínimo, um desrespeito a quem realmente pertence à classe C – a chamada ‘nova classe média’ – e que luta para pagar estudo, plano de saúde e casa própria. O que realmente me incomoda quando Huck afirma que ‘só o dinheiro é diferente’ é isto: o apresentador parece não compreender que dinheiro não é apenas uma questão de ter mais luxo ou de ter uma vida mais confortável, mas sim, um fator determinante para alcançar os meios de progredir socialmente, sem que fatores como doença e falta de segurança se tornem obstáculos ao desenvolvimento humano. Ter dinheiro é ter acesso a uma boa educação, a uma boa alimentação, a uma boa saúde. Enfim, essa diferença não é insignificante; é abissal.
Palavras dizem mais
Já o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, um homem ilustre tanto no meio acadêmico quanto na política, meteu os pés pelas mãos de um modo que jamais se esperaria de um sociólogo. Na verdade, sua verve erudita é a culpada disso tudo porque a academia em geral se apega demais a conceitos, esquecendo que o mundo veloz de hoje muda tudo de uma hora para outra. Por exemplo, quem realmente consegue conceituar ‘povão’? Para mim, ser ‘povão’ é ser descomprometido consigo mesmo, é gastar mais do que se ganha, é torrar dinheiro em objetos supérfluos incompatíveis com sua renda mensal, desguarnecendo áreas importantes da vida familiar, como moradia, saúde e alimentação.
Uma das grandes conquistas do governo Lula é ter permitido aos mais pobres o gosto de fazer parte da classe média e de passar a agir como um neocapitalista. A classe a quem FHC se referiu como ‘povão’, hoje, não tem nada de ‘povão’: está investindo como nunca em cursos de qualificação, em melhorias em suas pequenas propriedades, em qualidade de vida. Tudo isso porque vivemos na era da informação: qualquer jovenzinho que tiver acesso à internet, mesmo que seja na lan house capenga de sua comunidade de subúrbio, tem acesso ao mundo. E, quando percebemos que existem outras realidades melhores do que a nossa, queremos fazer parte dessa vida melhor.
Enfim, se Huck e FHC estudassem análise de discurso – uma área dentro do amplo escopo da Linguística –, aprenderiam que as palavras dizem muito mais do que queremos que elas digam. Apesar de bem-intencionados, foram pegos no ‘dito pelo não-dito’ e agora padecem sob o jugo de críticos mal-intencionados, que se aproveitam da pura e simples falta de noção dos dois.
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Professora e tradutora, São Marcos, RS