Um dia após o show dos Rolling Stones transmitido pela Globo, fui procurado por um advogado amigo que queria saber o que achei do espetáculo. Uma indagação como esta pode ser uma armadilha para uma discussão e, para não criar problema com o amigo e ao mesmo tempo dizer a verdade, tive que falar inicialmente que achei o Mick Jagger inseguro nas primeiras duas músicas – o que fez meu amigo se apressar em saber, claro e direto, o que achei do show, enfim. Não tive dúvida em dizer que este não foi o melhor da carreira da banda, mas que foi um bom show, com alguns pontos a mais por ser de graça para todos assistirem e ter um público recorde de 1,2 milhão de pessoas, além de ter sido no Rio, que voltou a ser a capital do rock.
Com cara de quem não gostou das minhas ponderações, meu amigo advogado foi taxativo: ‘Achei o show uma porcaria! Umas músicas desconhecidas, sem mesmo legendas para se saber o que estavam cantando, umas vestimentas que pareciam molambo e não entendi por que fizeram tanta propaganda disso aí. Só assisti mesmo até o fim para ver e poder falar desse absurdo.’
Houve muito oba-oba em torno da promoção da Globo, mas, por outro lado, está claro que meu amigo Sergio Mazzetto (para não restar nenhuma dúvida de que o personagem é real) representa uma faixa de telespectadores insatisfeitos, mais até, frustrados, com o resultado do programa televisivo tão amplamente anunciado pela emissora. Evidentemente, Rolling Stones é Rolling Stones, seja aqui no Brasil ou no Japão, como em qualquer parte do mundo, a mais antiga banda de rock em atividade, o grupo que reafirmou o conceito de agressividade do ritmo e que mudou completamente a forma de apresentação ao vivo dos conjuntos que surgiriam depois dos anos 1960. Razão pela qual muitas vezes os produtores de TV passam por cima dos que poderiam ser seus telespectadores não-amantes do rock e dos Rolling Stones e apresentam um show pela telinha como se sua platéia fosse composta apenas de pessoas idênticas às que fazem qualquer sacrifício para ir ver o grupo ao vivo. Sem sua programação normal do sábado, este segmento de telespectadores esquecido ficou relegado, por sua conta teve que procurar outra atração em outro canal, ir dormir ou acompanhar sem entender, de qualquer forma, o show.
Relegados pelo Sul
Já houve um tempo em que a Globo não agia assim: nos anos 1970, o show de Alice Cooper foi totalmente explicado à medida que se desenvolvia. As letras sarcásticas de I Never Cry, School’s out for Summer e Billion Dollar Babies eram explicadas, assim como por que Vicent Damon adotou o nome feminino de Alice. E o que seria um show estranho para o telespectador brasileiro virou programa interessante e até mesmo cultural, pela carga de informação nele contida.
O próprio Rock in Rio, nas décadas seguintes, tinha uma carga informativa que ajudou muito o telespectador esquecido (este completamente alheio ao artista, à música e ao show) a se engajar na audiência, quando não na corrente de fãs. Caso típico, este último, o de Fred Mercury, do Queen, que fez no Brasil muitos fãs da terceira ou da pré-terceira idade.
Embora os Rolling Stones estejam completando 44 anos este ano, a geração do advogado Sergio Mazzetto, à qual também pertenço, teve uma relação muito forte com os Beatles, ficando Stones em plano secundário, quando não esquecido. The Beatles saiu na frente naquela corrida na pequena cidade de Liverpool, ao norte da Inglaterra, como é o nosso Nordeste, da mesma forma relegada pelos do Sul. Da mesma forma que aqui tínhamos Dorival Caymmi, João Gilberto e Caetano Veloso, Liverpool teve Beatles e Rolling Stones.
Audiência frustrada
Os integrantes dos dois conjuntos se relacionavam, mas não eram íntimos, pois John Lennon e sua turma eram os ‘sãopaulinos’, e a turma de Mick Jagger, os ‘corintianos’. Ringo Starr, baterista dos Beatles, foi baterista dos Stones. A chegada do empresário Brian Epstein abriu as portas para os Beatles gravarem em Londres e chegar à Billboard, alcançando os primeiros lugares. Sua ascensão abriu a porta aos Stones. E os dois grupos passaram a disputar fãs no mundo todo. Entre 1962 e 1970, os Beatles tiveram seguramente mais de 20 sucessos no topo das paradas musicais, enquanto os Stones tinham o carro-chefe (I Can’tget No) Satisfaction e nada mais. Nos anos 1970, sem os Beatles, que se desfez, os Stones criaram ou relaçaram sucessos como Jumpin’ Jack Flash, Let’s Spend the Night Together, As Tears Go By, Honky Tonk Woman e Brown Sugar, músicas que representaram alguns dos momentos mais importantes do show do dia 18 no Rio.
Os Rolling Stones colecionaram dezenas de sucessos, mas sempre tiveram um público certo, ao contrário dos Beatles, que foram mais universalistas. No caso do nosso telespectador esquecido, é justamente o tipo de fã de Beatles, que não chegou a se interessar pelos Stones. Entretanto, assim como meu amigo, este espectador queria agora ver os Stones cantando músicas do mesmo calibre de sucesso de um Help, um Yesterday, um Panny Lane ou um Hey Jude, coisa impossível de acontecer, pois o máximo que Stones poderiam chegar em comparação aos Beatles seria um While My Guittar Gently Weeps, música beatleniana muito bonita, excelente som, mas que não teve o mesmo sucesso das quatro citadas.
Diante das chamadas para um show único de 1,5 milhão de público, sendo Rolling Stones e sendo a Globo a transmitir, mesmo o telespectador fora de sintonia com o rock também ficou em frente ao televisor. Sem conhecer as músicas – que, além de tudo, há de se considerar, perdem muito em qualidade em relação à gravação, quando ao vivo – e mesmo não entendendo nada do que se passava, esse segmento da audiência apenas se frustrou. E nós ficamos a perguntar: o que acontece com uma emissora que consegue transformar o telespectador em voyeur do Big Brother Brasil, mas deixa escapar uma audiência fidedigna, por esquecer simplesmente deste segmento? Será que produtores e diretores da emissora entraram no clima da cidade do Rio de Janeiro, vivendo esta euforia que antecedeu ao grande espetáculo, esquecendo mesmo da realidade?
Oportunidades perdidas
Não é exagero dizer que os dois grupos de rock mais importantes do mundo, atualmente, são Rollings Stones e U2, banda que se apresentou em São Paulo dois dias depois do grande show do Rio. Ironicamente, o vocalista do U2, Bono Vox, disse em entrevista que se sentia muito feliz em ter os Stones fazendo a abertura do show deles no Brasil.
O show da banda irlandesa redimiu os erros cometidos pela televisão no espetáculo anterior. As letras de Bono, de cunho político mesmo quando falam de amor, foram traduzidas em legendas, dando ao telespectador praticamente a definição dos propósitos da banda. Além do mais, o show não era aberto, como no Rio, abrigando um público calculado em 73 mil pessoas no Estádio do Morumbi. Isso facilitou sobremaneira a conquista rápida de sinergia do conjunto com o público e o espetáculo foi crivado de momentos de emoção, com participação da grande platéia de milhares de vozes. O telespectador sentia a passagem destes pontos altos, tornando o programa muito atrativo e mantendo a audiência dos esquecidos no show anterior. Meu amigo elogiou o show do U2, mesmo confessando não conhecer nada da banda, mas teve a possibilidade de se informar sobre ela pelas letras legendadas, pela participação do público e pelo espetáculo, que considerou nota 10.
Apesar do grande show do U2, na primeira das duas noites de apresentação da banda irlandesa, no Morumbi, e de todas as virtudes do espetáculo, há de se considerar oportunidades perdidas nesta promoção. U2 é um grupo singular. Sua presença na guerra da Bósnia, de onde tirou seu sucesso ‘Miss Sarajevo’, como no front de El Salvador, na Nicarágua, inspiração para a música ‘Mothers of the Disappeared’, homenagem às mães de todas as partes com filhos desaparecidos nos regimes de exceção, assim como sua intervenção na questão religiosa na Irlanda e contra a intolerância onde quer que ela exista, fazem do U2 um grupo consciente e engajado em questões sociais, principalmente. Mas U2 é uma banda musical e como tal tem uma história em Dublin, Irlanda do Sul, na Europa e nos Estados Unidos, onde durante pelo menos 10 anos fez shows em temporadas de 5 a 6 meses por ano.
Linguagem em comum
A Globo perdeu a grande oportunidade de exibir um especial antes do show, por exemplo no domingo, véspera da apresentação, mostrando o U2 no bastidor, na histórica trajetória, na luta contra a fome e a guerra. E contando um pouco da história de músicas como I Still Haven’t Found What I’m Looking For (ainda não encontrei o que estou procurando) e With or Without You (Com ou Sem Você), os dois maiores sucessos apresentados no show do Morumbi. U2 é muito rico em conteúdo e daria excelente especial, principalmente às vésperas do show. A apresentação da banda ganhou nota 10 do meu amigo advogado, mas teria um 10 geral mais facilmente se um especial tivesse sido apresentado pela emissora, antecedendo o próprio show.
Um mesmo programa especial poderia ser feito sobre os Rolling Stones. A história dos Stones, desde a década de 1960, passando por tantos grandes momentos, e revelando as idéias contidas nas principais músicas, no mínimo ilustraria o telespectador, que estaria mais preparado para o grande show. Sem contar, ainda, o lado comercial: um bônus a mais aos seus patrocinadores.
É indiscutível a grandiosidade dos dois shows, diferentes em sua forma, mas com um ponto em comum: a linguagem de cada banda que atinge decisivamente seu público. Os Stones utilizando a energia de um Mick Jagger sexagenário, mas nem por isso menos versátil que na juventude. E o U2 mostrando um Bono inteligente e perspicaz, cantor, ator, ser humano. Dois megaespetáculos que, com certeza, ficarão marcados em nossas vidas. De repente, o Brasil se tornou a terra sagrada do rock’n’roll, voltando aos tempos do Rock in Rio. Mais do que isso: o rock’n’roll abrindo o maior espetáculo da Terra, o nosso Carnaval, que neste 2006 viu o ritmo alucinante do rock se aproximar de fato dos surdos e tamborins das nossas escolas de samba.
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Jornalista