Sunday, 17 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

O espetáculo da ‘mídia’, para a ‘mídia’ – e pelos contestadores

Sempre que pipoca uma greve alguém se lembra do nome dele. Sempre que a juventude vai protestar contra a globalização nesses encontros de cúpula em que os presidentes das principais economias do mundo se juntam para falar em público sobre o que já foi combinado ou para desconversar em privado sobre o que ninguém sabe como resolver, alguém se lembra dele. Quando há um piquete mais barulhento também. Principalmente quando há uma ocupação, dessas que dão direito a colchonete nas salas mais solenes das mais circunspectas repartições, aí sim é que o pessoal fala muito dele.


Ele é o francês Guy Debord (1931-1994), autor de um livro espantosamente ambicioso e, não obstante, monumental, de fato: A sociedade do espetáculo, lançado em 1967 em Paris e publicado em português pela Contraponto, em 1997. Para alguns, a obra antecipou o maio de 68. Para outros, como Jean-Jacques Pauvert, ela anteviu nada menos que o século XXI.


A partir da década de 50, esse personagem misterioso e polêmico liderou o ‘situacionismo’, ou, melhor, a Internacional Situacionista (I.S.). Tudo o que a I.S. queria era precipitar situações em que as distinções entre a vida e a arte desaparecessem, deixando em seu rastro a abertura para ações revolucionárias. Os situacionistas operavam as fissuras da vida cotidiana, pois aí é que nasceriam as energias da ruptura com o capitalismo e com a ordem por ele imposta. Consta que, no início dos anos 60, a Internacional Situacionista se dissolveu, mas sobre isso ainda pairam controvérsias. Que não importam agora.


O que importa mais, no momento, é entender um pouco mais desse sujeito. Para tanto, se me permitem, eu vou explicar. Por isso, preparem-se, senhoras e senhores, para alguns parágrafos de densidade inóspita.


Acreditar para entender


Poucos levaram tão longe como Guy Debord a tese de que um capitalismo totalizante e anti-humano havia se instaurado no planeta feito praga em casca de laranja. Poucos falaram de modo tão peremptório e perfurante – ainda que num tom meio paranóico. Até mesmo clinicamente. Mesmo assim, tenho Debord como um gênio. Ele viu, antes de muitos, que ‘toda a vida das sociedades nas quais reinam as modernas condições de produção se apresenta como uma imensa acumulação de espetáculos’.


Em seu estilo aforístico, o autor não deixou muito espaço para divergências. É um texto estranho o dele, estranho mesmo na tradição marxista. Mais que Adorno, bem mais, ele reclama a fé, mais que a inteligência, daqueles a quem se dirige. Você só entende o que ele escreve se, antes de procurar decifrá-lo, aceitar acreditar nele. E só poderá superá-lo com algum proveito – ou seja, só poderá ir além do que ele foi, subir a altitudes que ele não alcançou – se topar viajar ao menos por um trajeto pelas mãos dele, conduzido por ele. Talvez por esse jeito de discurso iniciático, Debord encontrou muita rejeição entre intelectuais franceses. Com todos os efeitos e para todos os efeitos, ele realmente nunca foi o que pode se chamar de ‘científico’ ou de ‘acadêmico’. Mas que ele diz algumas verdades, das mais complexas, isso ele diz.


E então? Que história é essa de ‘imensa acumulação de espetáculos’? Não se trata exatamente da produção industrial e globalizada de imagens, de videoclipes, de games em altíssima definição, de outdoors digitais do tamanho do céu (nós veremos isso já, também). A acumulação de espetáculos é mais que uma saraivada de imagens. É o próprio capitalismo transfigurado em entretenimento, qualquer que seja a área econômica para a qual você olhe. Pode ser a área dos bancos, a agricultura familiar ou o agronegócio, pode ser o camelódromo de uma rua central de qualquer metrópole. Tudo, aos olhos de Debord, oferece bugigangas dotadas de uma poderosa dimensão estética. Tudo integra a grande usina do entretenimento mundial.


Da indústria cultural ao capital que virou imagem


Se Adorno e Horkheimer perceberam que a indústria cultural transformara a produção das chamadas obras de arte em bens de consumo fabricados – como se fossem pasta de dente ou capacete de motociclista –, se eles perceberam que não havia mais diferenças importantes entre a fabricação de um sucesso musical ou cinematográfico e uma botina de plástico ou um pote de margarina, Debord percebeu algo superior e mais sombrio.


Os dois primeiros, expoentes da Escola de Frankfurt, viram que entre a indústria cultural e as demais indústrias (a farmacêutica, a automobilística, a bélica) havia apenas e tão somente um sinal de equivalência. Tanto assim que os gerentes de uma poderiam migrar para outra sem o menor problema. Todas funcionavam nas mesmas bases, todas eram indústrias capitalistas.


O pensador francês – de escola nenhuma, por favor – notou que, em sua época, a década de 60, todas as indústrias, absolutamente todas, convergiam para o espetáculo. Ele notou que as mercadorias circulavam como imagem, não mais como coisas corpóreas, embora ele não tenha usado essa expressão. Um carro, um par de tênis, uma droga estupefaciente, um lápis, o silicone de cirurgia plástica, o café da Colômbia, tudo circula como imagem. Ou, em outros termos: é a imagem quem preside a circulação de todos os bens, não apenas dos bens ditos culturais. Isso significa que todas as mercadorias se apresentam como se fossem bens culturais, como se fossem, numa palavra, ‘arte’, como se tivessem respostas estéticas para as angústias dos humanos desumanizados.


Assim como todas as indústrias, também a ciência, a guerra, a política e a religião passam a se realizar como se fossem imagem. Sim, sim, eu sei que o nobre leitor até admite concordar com o que poderíamos chamar de ‘espetacularização’ (com o perdão do termo esdrúxulo) da política, mas recusará a espetacularização da religião. Peço apenas que esse leitor olhe para o vertiginoso crescimento – econômico, sobretudo – das religiões da era da TV, as religiões que são um teleshopping de Deus a prestação. Preste atenção a isso e depois jure por Deus que não é exatamente isso o que acontece: religiões espetaculares e espetacularizantes. Ultralucrativas. A guerra, ela também, se põe como espetáculo. A ciência idem. Ou você nunca foi à NASA? Ou nunca viu o filme do Al Gore? Ou ainda acha que as pesquisas com células tronco se resolvem apenas nos laboratórios e nos tribunais, sem ter que passar por manifestações glamourosas diante dos holofotes?


Naturalmente, aquilo que converge para o espetáculo, passa pela imagem. Tanto que Debord já avisou: ‘O espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediada por imagens’. Mais, muito mais que isso, ele proclama: ‘O espetáculo é o capital em tal grau de acumulação que se torna imagem’. Essa condição, contudo, ou, mais que essa condição, essa situação, para prestarmos uma homenagem vocabular aos situacionistas dos anos 50, não admite lado de fora, isto é, ninguém escapa ao quadro de determinações descrito por Debord. Ninguém fica de fora. Nem ele mesmo. O espetáculo engole toda forma de atividade social. Isso significa que ele engole também as manifestações políticas antiglobalização. Aí é que mora o problema desse modismo dos espetáculos contestatórios que invocam o nome de Guy Debord, que corre o risco de virar um novo Che Guevara, um ‘Che Guevara Cabeção’, na camiseta dos manifestantes mais joviais.


O infantilismo esquerdóide da era do espetáculo


Poderíamos variar o subtítulo acima: ‘O esquerdismo infantilóide do espetáculo’. Daria na mesma. Voltemos ao suposto profeta dos neorrebeldes. O que ele ensina, categoricamente? O seguinte: ‘Não é possível fazer uma oposição abstrata entre o espetáculo e a atividade social efetiva’. Ou seja, a atividade social não passa por fora dos marcos do espetáculo, ele é sua linguagem, ou, de forma bem explícita, o espetáculo é a linguagem da atividade social. Nos parâmetros de Debord, ele é a única linguagem. Fora dela, portanto, a atividade social inexiste. O que, aliás, encontra ampla sustentação nos fatos. Foi como espetáculo (melodramático) que o MST entrou para o debate do grande público brasileiro: foi com a novela O Rei do Gado, lá se vão muitos anos. Foi como espetáculo que os tais cara pintadas tomaram as ruas para pedir a demissão de Collor. É como espetáculo que a greve da USP finalmente conseguiu aparecer com destaque nos jornais: foi quando a PM entrou no campus jogando bombas de gás para todo lado. Foi um ato deplorável do ponto de vista ético e político, um aviltamento do ambiente democrático, mas, do ponto de vista do espetáculo, foi um impulso formidável para a visibilidade de um movimento que, até o dia anterior, quase não incomodava ninguém.


Na gramática perversa do espetáculo, os grevistas tiveram seu dia de aventura inebriante contra as forças malignas, vivenciaram seu êxtase teatral, sua catarse libertária. Glorificaram-se como alvo da força bruta que, de resto, hoje em dia, é bruta pero no mucho. É quase inócua, no caso, pois, ela também é teatral.


Eis como esses movimentos se transformam em notícia. Não mais pelas idéias que carregam, ou pelos programas que postulam, mas pelas imagens que rendem ao consumo geral de gozo de uma platéia insaciável. O gozo da platéia encontra seu equivalente – necessário – no gozo dos protagonistas. Brigar com a tropa de choque virou uma espécie de item de consumo do entretenimento globalizado, um tipo de esporte radical para quem busca tardes emocionantes antes do jantar.


O mundo das manifestações políticas vai se convertendo num imenso parque temático, um parque vazio de significados e pleno de representações, de imagens e de fulgurações. Nesse parque temático que muda de lugar como um circo mambembe, temos – assim como o sambódromo, que tem um lugar geográfico bem fixo – uma infinidade de outros ‘ódromos’, que vão mudando de lugar feito uma turnê dos Rolling Sotnes: passeatódromos, invasódromos, ocupaçódromos. Não é mais a tal da ‘mídia’ que é espetacular. São os agentes dos tais movimentos sociais que, alfabetizados pela indústria que culmina com o entretenimento, aprenderam a encenar o ‘acúmulo de espetáculos’ de que nos falou Guy Debord. Eles não são ‘contra’o espetáculo da ‘mídia’ – são seus funcionários. Com todo o respeito.


O déficit democrático


Guy Debord viu muita coisa, é verdade, mas não entendeu a ideologia, não entendeu o inconsciente, não entendeu principalmente a democracia. Essa é outra discussão, mas eu não a farei aqui. Digo apenas que a solução que ele propõe para superar o quadro que descreve, de um capital catapultado a espetáculo opressivo e ingovernável, é uma solução ridiculamente soviética, que faz lembrar a palavra de ordem de Lênin, em 1917, defendendo ‘todo o poder aos sovietes’. Debord foi interessante como diagnóstico – e inútil como receita. Tomá-lo por profeta das causas fáceis e aventurosas o desmerece, tende a reduzi-lo a um guia de autoajuda dos revolucionários-das-horas-vagas. O que há de carnavalesco nos movimentos sociais não precisa de teoria. Precisaria apenas de algum comedimento – e de uma crítica menos narcisista.

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Jornalista, professor da Escola de Comunicações e Artes da USP