Episódios como o casamento real na sexta-feira (29/4) deixam muito clara a brutal diferença entre a imprensa escrita e a televisão. Sem recursos como som, imagens ao vivo e comentaristas acostumados a preencher horas e horas de programação com palavras quase sem sentido, a imprensa escrita tem que ser mais objetiva e narrar os fatos. No máximo consegue colocar artigos que tentam explicar aos leitores o significado desses fatos que transformam os espectadores de TV – especialmente da TV paga – em voyeurs de reality shows.
A televisão esquece a notícia e faz o espetáculo, transformando o que deveria ser notícia de uma página com muita foto – no melhor estilo das revistas de celebridades – num acontecimento tão ou mais visto que a cobertura ao vivo de tragédias como os desabamentos no Rio, o tsunami no Japão ou os tornados nos Estados Unidos. E o ibope vai lá pra cima porque, ao que tudo indica, acompanhar ao vivo um “conto de fadas” é melhor do que qualquer notícia com final infeliz.
O canal Globo News (que nunca desliga, nunca descansa etc., etc.) passou a sexta-feira cobrindo o casamento. Primeiro ao vivo e depois com resumos do grande acontecimento. Detalhes do vestido, do beijo na sacada, da carruagem e dos cavalos usados para o cortejo foram repetidos à exaustão. E os telespectadores, coitados, ficam se perguntando que graça vai ter, no dia seguinte, acompanhar a realidade do país com assuntos como a inflação, a mãe que jogou o bebê no lixo, a procuradora que treinou com seu psiquiatra a melhor forma de enganar a polícia.
Tudo vira notícia
Não se pode negar que um casamento com pompa e circunstância é mais fácil de acompanhar. Principalmente porque não tem nada a ver com a realidade dos 190 milhões de brasileiros – a nova pesquisa do IBGE foi o único assunto que ganhou algum destaque no meio do noticiário sobre o celebrado casório. Ficamos sabendo também que 60 mil casais brasileiros são uniões homossexuais assumidas o que, segundo o diretor do IBGE, ajuda a diminuir o preconceito.
Passado o grande evento, a TV paga talvez explore a beatificação do papa João Paulo II, o que pode render um bom ibope, pelo menos entre os católicos. Mas, entre as duas anacrônicas instituições – monarquia e igreja católica – a monarquia ganha em apelo televisivo.
Que a imprensa não poderia deixar de noticiar, não há dúvida. A falta de poder – já que quem manda na Inglaterra é o primeiro-ministro – não diminui o interesse pela família real, que virou a realeza das celebridades. O príncipe que conversa com plantas, os estilistas que vestem a realeza, os jovens que decidem – depois de nove anos de convivência – mudar de patamar: tudo rende manchete, tudo vira notícia. A dúvida é por quanto tempo o telespectador – que paga mensalidade para assistir à TV – vai ser massacrado com especiais sobre o casamento real.
Mais vítima que vilão
Como escreveu o colunista Daniel Piza, …
“…cobertura extensiva e intensiva nos canais de notícias na TV; revistas semanais falando da `princesa encantada´ e de um `sistema que dá certo há mais de mil anos´; Gloria Kalil comentando ao vivo na Globo; intelectuais republicanos, como Timothy Garton Ash e Gilles Lapouge, reconhecendo a magia da `continuidade´ ou `permanência´ para as massas; um casal de tigres sendo batizado de William e Kate; filmes como A Rainha sendo reexibidos e O Discurso do Rei ganhando Oscar; os EUA acompanhando em peso como se o casamento fosse entre americanos; a nova princesa lançando modas como o fascinator, espécie de casquete moderna; Elton John, o amigo de Diana, presente na cerimônia sem suas extravagâncias do palco – afinal, o que é tudo isso? Não me surpreende a curiosidade, mas a intensidade. Precisei buscar no saudoso Otto Lara Resende o título acima. O que o mundo vê além daquelas pompas todas?… O evento veio se encaixar em nossa era de celebridades, em nossa era People, na qual as aparências importam mais que tudo. É a ilusão de perfeição coroada. É a encarnação do medo de enfrentar as responsabilidades, do medo de envelhecer, do medo de não ser desejável. É um sintoma do mal atual, o mal da idolatria, em que os famosos parecem pertencer a uma corte, parecem ser mais especiais e interessantes do que de fato são, parecem livres para fazer o que quiserem. Ou, como já chamei, é a `imagocracia´, o poder da imagem, que em cidades grandes se traduz na sede pelo status que um carro, uma grife e uma plástica (bem-feita, não essas que fazem bocas de pato nas peruas) podem dar. Vivemos numa idade teatral – vide as cantoras, mais e mais performáticas – em que o furor narcisista menospreza as qualidades interiores. As utopias coletivas morreram; as individuais nunca estiveram tão vivas” (O Estado de S. Paulo, 1/5/2001).
Terminado o grande evento, os jornais voltam a dar manchetes sobre economia, crimes, preconceito etc.. E os canais de notícias da TV ficam torcendo para que muito em breve a realeza ou uma celebridade qualquer faça alguma coisa que mereça uma cobertura tão intensa quanto a do mais recente casamento real. Até lá, quem sabe conseguem alguma criatividade para falar do que nos interessa: o dia-a-dia do povo brasileiro. Mas talvez nem o próprio povo – induzido pela TV a se interessar por celebridades – queira ver sua vida retratada com seriedade na tela.
O espectador, nessa história, é mais vítima do que vilão. Afinal, se a TV passa o dia prometendo uma supercobertura do evento, quem é ele para dizer que não se interessa pelo que se passa do outro lado do mundo, com gente que não tem nada a ver com a sua vida?
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Jornalista