A fantasia da eterna conspiração da ‘mídia’ contra o ‘poder popular’ conhece variantes à direita e à esquerda. Tanto o fascismo quanto o stalinismo e seus sucedâneos têm o hábito de combater a imprensa por meio do aparelho de Estado. Neste artigo, vou comentar um pouco mais profundamente as variantes de esquerda dessa fantasia. Quando se manifesta como fenômeno de esquerda, ela deita suas raízes numa leitura malfeita do materialismo histórico e do conceito de luta de classes – além da leitura mistificadora das conjunturas que se apresentam.
Antes de entrar propriamente no tema, devo explicar por que uso aspas em ‘mídia’ e ‘poder popular’. No discurso esquerdista da mentalidade conspiratória – mais do que infantil, infantilizante –, essas palavras encerram generalizações de chumbo, carregadas de valorações morais que servem de apoio para a satanização, de um lado, e para a idolatria, de outro.
Por ‘mídia’, entende-se o conjunto fechado dos meios de comunicação que não se alinham as causas supostamente populares, estejam elas alojadas no governo ou não. Quanto a essas causas, por sua vez, recebem a aura de representantes universais, legítimas e inquestionáveis do povo. Não há nuances. Não há contradições internas. Só o que há são dois pólos: numa ponta, a burguesia e sua mídia ‘partidária’; na outra, os excluídos, essas ‘vítimas’ que serão convertidas em figuras heróicas.
Quando o governo fala em nome dos excluídos, tem-se então a configuração discursiva preferencial da mentalidade conspiratória: o governo é uma ferramenta da causa justa para combater e vencer a burguesia e sua ‘mídia’ injusta. Por isso, enfim, as aspas são necessárias nas duas expressões. Assim empregadas, essas expressões funcionam mais como carimbos de efeito propagandístico, demagógico, e menos como categorias do pensamento. Esse emprego propagandístico das palavras resulta de adaptações bastante precárias do sentido do materialismo histórico e do conceito de luta de classes, a serviço de uma retórica mais própria do melodrama, ou mesmo de uma fábula infantil. Não há nada de pensamento crítico nesse tipo de formulação.
Para enfrentar as forças do mal
A bem da verdade, o que há nesse discurso é uma rendição do pensamento ao apelo emocional de narrativas mágicas ou religiosas sobre o enfrentamento do bem contra o mal. O lado do bem, como sempre, corresponde àquele estereótipo de um personagem frágil, explorado e sacrificado que, por ter parte com a causa redentora, reunirá forças para derrotar o mal. Este, de seu lado, é impiedoso e dispõe de força bruta e de recursos materiais inesgotáveis – mesmo assim, há de perder a batalha final.
Essa visão rebaixa categorias teóricas que só são possíveis por meio da abstração a caricaturas hiper-realistas de vilões inescrupulosos oprimindo seres humanos indefesos, como se o próprio capitalismo não fosse, ele mesmo, uma conformação histórica, mas produto da maldade individual dessa gente gananciosa que não tem pena dos semelhantes. Atente bem o leitor. Boa parte, ou mesmo a totalidade do proselitismo resultante dessa mentalidade conspiratória atende ao modelo narrativo de uma fábula infantil – infantil como gênero literário e também como falta de maturidade política.
Isso tudo não teria importância não fosse pelo fato de que, desgraçadamente, essa mentalidade inspira movimentos e formulações da comunicação pública – no Brasil e em vários outros países da América Latina, pelo menos. A abordagem é sempre bélica. A guerra é o paradigma. O universo das comunicações, de repente, ganha ares de campo de batalha para novas formas de ‘guerras santas’ (entre aspas, também).
Os inimigos das causas populares – e, portanto, do governo que porventura se ache instalado em nome delas – passam a ser descritos como sabotadores da própria democracia. O fatalismo mágico substitui a política. Os ‘inimigos de classe’, tendo parte com o mal, constituem ameaças ao Estado, donde há de caber ao Estado tomar as providências para combatê-los com energia. Em defesa do bem. Se a guerra que os agentes malignos movem contra o povo é uma guerra da comunicação, cumpre ao Estado, em nome do povo, armar-se das tecnologias mais modernas para fazer frente às forças do mal.
As etapas míticas da partidarização da coisa pública
Aqui chegamos ao ponto mais delicado desse tipo de fanatismo. Quando abrigado no interior da administração pública, quando alojado dentro de um governo, ele se estrutura em três passos mentais que unificam seus adeptos:
1.
Os nossos inimigos de classe e, por decorrência, inimigos da democracia e do Estado, cometem excessos inadmissíveis contra nós e, portanto, contra o povo.2.
O povo está indefeso. O governo do povo está indefeso. Na sociedade nós não temos armas para enfrentá-los, pois eles são donos do capital e também são monopolistas.3.
Logo, só o Estado pode defender o Estado dessa tentativa de golpe e, para agir em legítima defesa, o Estado precisa ir a campo e combatê-los.De acordo com essas etapas mentais, como se pode notar com facilidade, não é mais na sociedade que tem lugar a disputa das idéias. A sociedade deixa de ser vista como um ambiente para assumir os contornos de um pólo ameaçador. A opinião pública, na perspectiva da mentalidade conspiratória, vira um campo minado. É território inimigo. Conflagrado. O único jeito, enfim, é usar microfones, estúdios e transmissores estatais para promover o combate contra esses pólos ameaçadores: o Estado precisa entrar em confronto com esses grupos de cidadãos ‘mal-intencionados’, que se põem a serviço de interesses ocultos.
Para justificar esse quadro, alguns alegam que há na sociedade uma situação de exceção, pela qual ‘a mídia deixou de ser um serviço público e se converteu num partido político de oposição’. A partir daí, o Estado, em lugar de zelar pela liberdade e pelas regras democráticas, precisa patrocinar um dos pólos do debate. Deve, isto é, tem o dever de entrar na batalha, como parte. Segundo essa lógica, se há uma ‘situação excepcional’ posta pela ‘mídia de oposição’, é justo que o Estado aja excepcionalmente.
Sem que muitos de seus adeptos se dêem conta, esse discurso acaba pregando o Estado de exceção. Ele diagnostica na mídia privada o germe do golpismo. Como antídoto, defende a criação de emissoras governistas – tão ou mais potentes que as oposicionistas. É muito interessante. Se a mídia comercial fosse, por assim dizer, ‘equilibrada’, os enunciadores desse discurso não defenderiam o fortalecimento das redes públicas, pois só vêem necessidade de emissoras públicas – desde que governamentais, bem entendido – quando se faz necessária combater a mídia comercial, dando-lhe a revanche que ela fez por merecer.
A falta que fazem os marcos regulatórios democráticos
Não é difícil apontar o erro fundamental dessa argumentação um tanto melodramática. Não é difícil, mas, lamentavelmente, isso ainda é necessário entre nós. Vamos a isso, portanto.
Parte desse erro tem a ver com a idéia de que uma emissora estatal governista pode servir de contrapeso para uma ‘mídia’ comercial oposicionista. Isso definitivamente não funciona. Sabemos bem que a comunicação pública – a verdadeiramente pública, que precisa ser independente do governo e independente do mercado – não pode nem deve ser ferramenta ocasional de um governo ou de uma forma de poder. Se for porventura reduzida a essa condição de ferramenta, perderá sua legitimidade, sua credibilidade e, também, seu papel crítico. Não é porque a comunicação comercial seja eventualmente golpista, possibilidade que não deve ser descartada a priori, que a comunicação pública se faz necessária. Por melhor que seja a comunicação comercial, a democracia sempre necessitará da comunicação pública independente.
De outro lado, mesmo quando a comunicação comercial é de péssima qualidade, motivada pelas piores intenções, a solução não passa, nem de longe, pela criação de emissoras governistas. Ela passa, antes disso, pela observância de regras públicas e impessoais para a concorrência comercial justa entre os veículos, pela ampliação da liberdade de imprensa e pela garantia da pluralidade e da diversidade de vozes e mediadores no debate público – o que tem a ver com a vigência de marcos regulatórios adequados à democracia, não com a criação de emissoras estatais.
Esse ponto deve ser posto com toda a clareza. O raciocínio que pretende justificar o aparelhamento dos meios públicos de comunicação é inepto. Mesmo que o comportamento da tal ‘grande mídia’ fosse mais baixo e mais torpe, nem mesmo assim caberia ao Estado (ou ao governo) a função de mediador do debate público. Isso não resolveria nada, como jamais resolveu. Em matéria da comunicação social, a única tarefa que compete ao governo brasileiro atualmente – tarefa que ele não dá o menor sinal de querer assumir – é a de enviar ao Congresso Nacional um projeto de lei fixando uma nova regulamentação para o setor da mídia – da radiodifusão, especialmente.
Não há dúvidas que temos distorções na comunicação social decorrentes da concentração de poder – uma concentração que tem feições de oligopólio –, sobretudo no setor da radiodifusão. Esse tipo de distorção, contudo, não se corrige com rádios públicas – nem no Brasil nem em qualquer outro lugar. Se se quer solução para isso, é preciso mexer nas regras que estruturam o setor. No caso brasileiro, é urgentemente necessária uma legislação que iniba o monopólio, os oligopólios e a propriedade cruzada dos meios de comunicação, entre outros anacronismos. São esses anacronismos que vêm impedindo a diversidade e a concorrência saudável entre os veículos. Fora disso, não cabe ao Poder Executivo estabelecer juízos sobre o conteúdo dos noticiários e muito menos cabe ao governo o papel de editor de notícias. Em síntese, por pior que seja a imprensa de um país, a entrada do governo na disputa não melhora as coisas. Apenas vai complicá-las ainda mais.
Golpes de Estado às avessas
Não obstante, há quem vá mais longe na fantasia conspiratória. Há mesmo quem suponha que um sistema estatal de comunicação, sob controle estrito do governo, ajudaria a prevenir golpes de Estado. ‘Que golpes de Estado?’, perguntará o leitor. Ao que a resposta já se apressa: aqueles golpes que a ‘mídia’ comercial pretende desfechar. Simples assim. Desse modo, toma-se abertamente o aparato estatal de comunicação, controlado pelo governo, como arma política. A favor do Estado.
(Um exemplo desse raciocínio surgiu recentemente, no artigo ‘O governo Lula e a batalha da comunicação’, assinado por Bernardo Kucinski, publicado na revista Teoria & Debate, edição 77, de maio/junho de 2008. Na página 60, o texto afirma: ‘Ter um sistema estatal de comunicação minimamente funcional, com credibilidade e legitimidade junto à população, é uma espécie de apólice de seguro contra golpes de Estado’.)
Quando se acredita que a comunicação estatal combate ou previne golpes de Estado, acredita-se também que o Estado tem legitimidade para se opor diretamente a setores da sociedade civil no debate das idéias. Para enfatizar, vale repetir: o Estado teria o direito de assumir um lado no debate das idéias e, por aí, teria legitimidade para combater cidadãos e setores da sociedade civil. Com isso, o Estado abandonaria sua função de zelar pelas regras democráticas e passaria a ser parte na disputa – como um árbitro que passa a jogar a favor de um dos times. Deixaria de agir como Estado para agir como partido.
O que é grave, nesse ideário, é a suposição de que os jornalistas que noticiam suspeitas de corrupção, por exemplo, concorrem para favorecer um ‘golpe’. Mais grave ainda é a noção subterrânea de que a opinião pública precisa estar protegida do jornalismo, ou protegida contra o jornalismo. É preocupante também a crença de que a liberdade de imprensa, dependendo do modo como for exercida, traz prejuízo ao bom debate público. Temos aí um caldo de cultura no mínimo problemático.
E há mais. A título de curiosidade, note-se, ainda, que, nesse caso, o golpe de Estado é concebido como um golpe que se desfere contra o Estado a partir da sociedade – e não como um golpe contra a sociedade por meio do assalto ao aparelho de Estado, que pode mesmo brotar de dentro do próprio Estado, como aconteceu em 1968 no Brasil. Temos, portanto, uma inversão. Temos uma inversão segundo a qual é apenas o Estado, não a sociedade, quem precisa de proteção contra golpes. Essa concepção não deixa ver que é justamente o recrudescimento dos aparatos estatais contra o livre debate na sociedade que, muitas vezes, acalenta e prepara possíveis golpes (de Estado) contra a democracia. Ela não deixa ver que o golpe de Estado faz o percurso exatamente oposto. Ele vitima a sociedade por meio do Estado, não o contrário.
Ainda quanto ao papel de emissoras estatais – ou melhor, de emissoras alegadamente estatais e, na prática, agressivamente governamentais – na prevenção de golpes de Estado, talvez nos seja útil lembrar a história recente de outros países e mesmo do Brasil. Se sem emissoras estatais uma nação ficasse de fato exposta ao golpismo, os Estados Unidos, que nunca apostaram em redes estatais de comunicação, teria sofrido mais golpes de Estado que a Bolívia. E não teve. Como se sabe, a democracia americana tem sido estável.
De outro lado, se as emissoras estatais assegurassem estabilidade ao Estado, a União Soviética estaria lá até hoje, muito bem ‘protegida’. Se dependesse de recursos estatais empregados na comunicação, Hitler não teria perdido a guerra e a ditadura militar no Brasil teria se eternizado. Por que todos despencaram, apesar de tantos aparatos oficiais de comunicação? Não despencaram porque seus aparatos funcionassem mal, mas porque o movimento social democrático é mais forte que os aparelhos. Despencaram porque, nesses regimes, embora o aparato não fosse, na verdade, uma vacina contra golpes de Estado, mas o próprio prolongamento do golpe de Estado tornado regra, havia a força maior que vem do movimento democrático da sociedade civil, mesmo quando fragilizada.
Por isso, ou também por isso, toda forma de comunicação pública que tenha compromisso com a democracia finca seus alicerces na sociedade civil – jamais na vontade do governo.
Encerrando para continuar depois
Esses são apenas alguns dos equívocos que comparecem ao nosso debate contemporâneo sobre comunicação pública. Há outros. A respeito desses e dos demais, ainda virão outros artigos nesta coluna.
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Jornalista, professor da Escola de Comunicações e Artes e pesquisador do Instituto de Estudos Avançados da USP