VENEZUELA
Sinais autoritários no país de Chávez
‘De Caracas – É fácil enxergar nuvens autoritárias no céu político de Caracas. A ação do presidente Hugo Chávez sugere um esforço para aproveitar a chuva de ouro dos preços do petróleo para construir uma espécie de ditadura popular, onde o governo oferece um pacote de bem-estar em troca de poderes concentrados.
Na Assembléia Nacional, o governo tem todos os votos disponíveis para reformar a Constituição à sua imagem e semelhança. Numa estética que lembra a Cuba de Fidel Castro, a palavra ‘revolução’ enfeita absolutamente todos os discursos e documentos oficiais, mas na prática é um processo de cima para baixo, sem povo na rua – até os Conselhos Comunais, que Chávez define como uma versão local dos sovietes da Rússia de 1917, foram formados de acordo com instruções saídas no diário oficial. Insatisfeito com o tratamento dos meios de comunicação, Chávez decidiu usar uma brecha legal para extinguir a licença de funcionamento da RCTV, emissora que funciona há 53 anos e é a mais antiga do país.
O Fisco atua sobre empresários e cidadãos comuns como um serviço militarizado. As punições são freqüentes e produzidas com espalhafato. Mesmo quem compra um jornal na banca de revista é obrigado a levar uma nota fiscal com endereço, telefone e número de carteira de identidade. Entre líderes sindicais, cresce o receio diante das pressões do governo para cooptar dirigentes e criar entidades pelegas. ‘Vamos deixar claro: nós defendemos a revolução e seu aprofundamento. Mas a autonomia sindical tornou-se uma questão básica para nós’, afirma Orlando Chirino, uma das mais conhecidas lideranças sindicais do país.
Para o historiador Manuel Caballero, uma parcela do eleitorado que reelegeu Hugo Chávez com 63% dos votos, em dezembro, ‘queria uma ditadura’. Para Carlos Bravo, porteiro de um edifício nas cercanias da capital venezuelana, ‘vivemos numa ditadura especial. Os ricos pagam impostos. Os pobres podem ir ao médico, o salário subiu. Minha pensão de aposentado, que sempre atrasou, agora é depositada em dia. Essa ditadura me encanta.’
O apego da maioria da população da Venezuela à democracia é claro, informam as pesquisas de opinião. Colocados diante da possibilidade de assistir à instalação de uma ditadura semelhante à de Fidel Castro, 80% rejeitam a idéia. Essa postura resoluta tem sido a principal âncora interna contra aventuras autoritárias. Tanto é assim que, embora tenha planos assumidos de permanecer em palácio até 2021, Chávez mantém o país sob um regime que, tecnicamente, é uma democracia. As tentações autoritárias, contudo, não são exclusividade do governo atual. A mesma oposição que define Chávez como ditador já promoveu dois golpes de Estado fracassados para tentar afastá-lo do poder.
‘O encantamento da população tem base na distribuição de benefícios materiais pagos pelo petróleo’, avalia o prefeito Leopoldo López, do Chacao, município da Grande Caracas, de oposição. ‘Quando o dinheiro fácil acabar, Chávez terá de enfrentar o descontentamento e vai reprimir a população.’
Os encantos do petróleo são um fenômeno conhecido na Venezuela. Hoje, os shopping centers vivem lotados. As filas de compra de automóvel podem durar oito meses e mesmo em janeiro as lojas ficam cheias. Nos anos 40 do século passado, a bonança venezuelana já era comparada à ‘Califórnia nos dias da ‘febre do ouro’. Gastar até esvaziar os bolsos tornou-se uma espécie de mandamento nacional’, escreveu o ex-presidente Rómulo Betancourt. ‘O venezuelano tornou-se sinônimo de gastador.’
Quando o petróleo empurra perto de 70% do PIB, representa mais de 90% das exportações e paga todas as contas do governo, não se forma uma sociedade organizada naqueles moldes clássicos do capitalismo, mesmo em sua versão dependente.
Entre 1900 e 1977, a renda per capita da Venezuela foi a que mais cresceu em toda América do Sul – única e exclusivamente por causa do petróleo. Os venezuelanos conseguiram alfabetizar a população mais cedo do que a maioria dos vizinhos. Criaram hábitos tão refinados que hoje em dia 200 mil pessoas dedicam a maior parte do tempo a aprender música. A criminalidade é um pesadelo violento, mas um estudo das Nações Unidas, no primeiro semestre de 2006, apontava São Paulo como uma cidade menos segura do que Caracas.
A maioria dos economistas estima que o aparato produtivo venezuelano é tão precário que só consegue absorver 4% do dinheiro do petróleo, o que gera uma economia parasitária, com surtos incontroláveis de consumo, que pressionam por importações que impedem a formação de uma indústria local e transformam a iniciativa privada num clube de amigos. Hoje, importa-se até os biscoitos à venda no Mercal, os supermercados populares subsidiados pelo governo. O açúcar desaparece com freqüência. A inflação cresce com facilidade.
O mundo do trabalho tem um peso relativo e isso tem pouco a ver com o debate sobre a economia pós-moderna. É que a riqueza vem da exploração da terra. Com o crescimento dos últimos três anos, o desemprego diminuiu de 12% para 10%.
Chávez só mostrou a que veio quando os saltos do mercado permitiram lançar um pacote de benefícios que transforma o Bolsa-Família do governo Lula em esmola. Elevou em 20% a renda no campo ao equiparar os salários da zona rural com os das regiões urbanas. Despejou pequenas fortunas na conta dos funcionários públicos ao quitar, de uma só vez, o passivo trabalhista acumulado durante muitos anos em pleitos na Justiça.
O governo garante crédito universal para todo cidadão interessado na casa própria. O crédito para a compra de automóveis zero-quilômetro está garantido até para estrangeiros que residem no país. Os aluguéis foram congelados há três anos – só em 2006, a inflação foi de 17%. Nos bairros pobres, mães carentes recebem um salário mínimo mensal – superior a R$ 500 – a título de ajuda. Num bairro popular de Caracas, onde vivem cerca de 5 mil adultos, 400 mães recebem este benefício.
Nesses lugares, o governo ainda mantém casas de alimentação que fornecem comida de graça para quem não pode se sustentar. É muito melhor do que cesta básica porque não dá trabalho. São três refeições ao dia, prontas para servir, em quentinhas de alumínio. Ali, o governo não banca apenas a pavimentação de ruas e a construção de escadarias nos morros que marcam a paisagem de Caracas. Também banca reformas nas residências de cada família. Troca telhado, acaba com infiltrações e é capaz de construir uma casa nova em folha caso se chegue à conclusão de que o imóvel anterior tornou-se imprestável. ‘O sistema está pronto com suas leis e regras,’ afirma a líder comunitária Julia Ramírez. ‘Só não funciona melhor por causa de nossa pressa, nossa anarquia.’
Com esse crescimento de 10% ao ano desde 2003, a Venezuela poderia transformar-se numa potência sul-americana, caso a janela do mercado internacional permitisse. A maioria dos observadores locais duvida disso em função do viés político do governo. Chávez produz uma diplomacia que subsidia países que se alimentam do petróleo bolivariano, como Cuba, Equador, Bolívia, Nicarágua. Seria uma futilidade ideológica se não incluísse hostilidades permanentes em direção ao Primeiro Mundo, onde se encontram capitais e cérebros indispensáveis para um salto de envergadura. O resultado é que todo mundo quer ganhar dinheiro na bolha de consumo da Venezuela de Chávez, mas a taxa de investimentos segue uma das mais baixas da região, ainda que o risco-país seja de 183, o menor de sua história, e que o petróleo, em baixa há seis meses, ainda se encontre num patamar bastante confortável para as contas do governo.
Num esforço para obrigar as montadoras a encontrar parceiros internos para produzir automóveis num mercado superaquecido, o governo baixou um decreto com restrições às importações. A idéia é favorecer a produção local, mas a proposta enfrenta dificuldades estruturais. ‘O problema é que aqui não há empresários preparados nem engenheiros formados’, afirma um executivo brasileiro, que há três anos reside na região de Caracas. ‘Quando se compara com o Brasil, a defasagem é de pelo menos 20 anos.’
Uma das principais ações de Chávez para estimular o emprego foi a criação de cooperativas. Eram 877 antes da posse, tornaram-se 100 mil em 2005. Mais de dois terços estão voltadas para a área de serviços – num sinal das dificuldades para encontrar um caminho produtivo. O governo também pretende subsidiar sistemas de co-gestão em 700 fábricas, que foram à falência por razões diversas.
Num texto sobre a petro-ditadura de Marcos Pérez Jiménez (de 1952 a 1958), que marcou Caracas com parques e avenidas nos anos 50, o economista Arturo Uslar Pietri associou a riqueza do petróleo ao autoritarismo. Escreveu que a Venezuela possui ‘o capitalismo de Estado mais extenso e poderoso do lado de cá da Cortina de Ferro. Esse capitalismo de Estado tem conseqüências graves. Se continuar crescendo ilimitadamente, a Venezuela vai se tornar um país não mais de dependentes do petróleo, mas de dependentes do Estado, e esse capitalismo monstruoso do Estado chegará fatalmente a converter-se em uma terrível máquina de tirania.’
Num ambiente com pressões em tantas direções, a Assembléia Nacional é um ambiente curioso. Quando a presidente Cilia Flores encaminhou a votação da Lei Habilitante destinada a assegurar poderes especiais a Chávez, em primeira discussão, não foi preciso nem verificar o quórum nem contar os braços erguidos. Muitos deputados tinham ido embora para seus Estados, um líder importante não voltara do almoço. Já se sabia que o governo iria vencer – por unanimidade.
Numa sessão recente na qual se comemorou o Dia do Professor, uma dezena de parlamentares fez discursos. ‘Nossa tarefa é forjar uma nova geração de professores, educados para o socialismo e a revolução’, disse o deputado Giovanni Peña. ‘Para criarmos o homem novo precisamos da educação nova’, afirmou.
Peña considera a Venezuela uma terra abençoada. ‘Essa terra pariu um lutador que participou das guerras revolucionárias do século 18 na Europa, o general Francisco Miranda’, diz. ‘Aqui também nasceu Simón Bolívar, o Libertador de seis nações da América…’
Beneficiada pelo boicote da oposição ao pleito parlamentar, que lhe permitiu concorrer sem adversários, a professora Gabriela Ramírez elegeu-se com o voto de bairros nobres de Caracas. Bonita, casada e mãe de três filhos, tornou-se a principal interlocutora de Chávez na classe média. ‘As melhorias nas regiões mais pobres beneficiam todo mundo, até a classe média’, diz. Um exemplo de revolucionário? ‘Eu amo Che Guevara’, diz.’
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Mommer, um guru do petróleo chavista
‘Num país com reservas de petróleo avaliadas em US$ 144 trilhões, um intelectual de 64 anos, Bernard Mommer, ocupa a função de guru. Mommer leva uma vida discreta em Caracas e tem uma biografia multinacional. Nasceu na França, tirou diploma universitário na Alemanha, tem um posto como pesquisador em Oxford e possui dupla nacionalidade: é cidadão venezuelano e britânico ao mesmo tempo.
Vice-ministro de Hidrocarbonetos, há mais de uma década ele ocupa posições estratégicas na PDVSA, a estatal de petróleo. Quando chegou à Presidência, Hugo Chávez costumava sabatinar ministros e dirigentes do mundo petroleiro venezuelano, desconfiado e insatisfeito com explicações que recebia. ‘Não acredito em ninguém’, costumava dizer. Hoje, acredita em Mommer.
Graduado em matemática, com um doutorado em ciências sociais, ele discute o assunto como Chávez gosta. Nos governos anteriores, o destino do petróleo era visto pela fórmula econômica de deixar os preços com o mercado e privatizar o que fosse possível. A própria PDVSA tornara-se uma empresa cada vez mais autônoma, com filiais no estrangeiro que poderiam ser vendidas a qualquer momento. A orientação de Mommer veio na direção oposta. Ele restaurou o ideário desenvolvimentista, para quem o petróleo não é uma riqueza igual a qualquer outra, mas instrumento de soberania nacional, dono de um potencial político único.
O crescimento acelerado da China e da Índia jogou o preço do petróleo nas alturas. Em Caracas, assessores da PDVSA asseguram que o ativismo do governo, assumido por Chávez e defendido por Mommer, merece parte do crédito pelo que ocorreu.
Numa administração que adora anunciar a política petroleira como ‘popular, nacional e revoluciónária’, os textos de Bernard Mommer têm uma linguagem acadêmica própria. Ele é co-autor de um pequeno clássico (‘O petróleo no pensamento econômico venezuelano’).
Seu artigo ‘Petróleo subversivo’, que discute a política de petróleo venezuelana nas duas últimas décadas, é considerado uma peça fundamental para se compreender as opções do governo de Chávez na área.’
O Estado de S. Paulo
Centenas defendem concessão de RCTV
‘Centenas de venezuelanos protestaram ontem em Caracas contra a decisão do governo do presidente Hugo Chávez de não renovar a concessão da RCTV, emissora com histórico de críticas a Chávez. O presidente venezuelano já afirmou que não volta atrás em sua decisão e que a emissora sai do ar no fim de sua licença, em 28 de maio.’
TECNOLOGIA DA INFORMAÇÃO
Com o iPhone, a Apple reinventa o telefone
‘‘Estamos reinventando o telefone’ – proclamou Steve Jobs, presidente e fundador da Apple, no dia 9 passado, em São Francisco, ao lançar o iPhone. Por suas características incomuns, o novo telefone ganhou espaço inusitado na imprensa mundial. Afinal trata-se de um celular sem teclado, com tela gigante, sensível ao toque dos dedos, câmera digital de 2 megapixels, memória para armazenar até 8 gigabytes de música, fotos ou vídeo, acesso à internet, capacidade para enviar e receber e-mails e sistema operacional OSX, entre outros recursos.
O iPhone é muito mais do que um celular. Vale a pena avaliar esse lançamento da Apple, tão significativo quanto o do Macintosh, em 1984, ou do iPod, em 2001. Para entender melhor a fera, revi algumas vezes a apresentação de lançamento, feita por Steve Jobs, e disponível ainda hoje na internet (www.apple.com) e discuti suas principais características com jornalistas especializados e analistas da área. Depois dessa garimpagem, estou convencido de que o iPhone é algo realmente novo e revolucionário: um breakthrough, no jargão tecnológico.
A maioria dos analistas independentes prevê sucesso para o iPhone. Em contraposição, alguns concorrentes subestimam sua importância. Fico com os primeiros e recordo duas apostas negativas do passado. Primeira: a IBM ridicularizou o Macintosh e sua interface de usuário em 1984. Segunda: Bill Gates achava em 2004 que o sucesso do iPod era uma febre passageira e que as vendas do produto iriam despencar dali a pouco. Errou feio: o iPod explodiu e a Apple prevê vendas de 100 milhões de iPods, este ano. E mais: a Microsoft entrou na disputa, lançando o concorrente Zune.
O TOQUE MÁGICO
O iPhone é o primeiro multifuncional que utiliza uma tela de quase 9 centímetros de diagonal, sensível ao toque e até a gestos de nossos dedos, para acionar todos os comandos. É a tecnologia Multi-touch que ‘funciona como mágica’, nas palavras de Steve Jobs. Em lugar de estiletes, usamos os dedos.
Multi-touch é o mesmo que sensibilidade multitoque, uma tecnologia que torna tudo mais simples, mais humano. E que poderá se transformar em padrão para a maioria dos celulares, MP3 players, PDAs e outros portáteis. Em lugar de usar teclados minúsculos, sem muita funcionalidade, passamos a tocar a tela com os dedos e a fazer movimentos ou gestos para ampliar ou diminuir as imagens, dar mais contraste, regular a luminosidade, elevar o volume e escolher outras funções.
Como usuário do Blackberry, um telefone inteligente de sucesso no mundo, torço para que o iPhone faça em breve tudo que meu smartphone já faz. Na dúvida, ficarei com os dois.
Steve Jobs diz que o iPhone está cinco anos à frente de todos os smartphones. É exagero. Talvez três. Mas é muito difícil compará-lo com os smartphones ou com os celulares convencionais, pois sua proposta é diferente e muito mais ambiciosa.
Acho também que o iPhone não vem substituir nem competir diretamente com o iPod, que ocupa a fatia de mercado de quase 80%, mesmo enfrentando mais de uma centena de concorrentes. Esse risco existe, em especial entre jovens ou executivos que desejam somar as vantagens do iPod (disponibilidade de música, fotos e vídeo) às de um personal digital assistant (PDA) original e avançado.
O iPhone não é, a rigor, um celular de terceira geração (3G). No entanto, oferece algumas funções até mais sofisticadas e poderá atender, no futuro, a todos os requisitos da nova geração. Como enfatizou Steve Jobs, o novo telefone usa o máximo de software num hardware inovador.
E OS SMARTPHONES?
Alguns analistas acham que o iPhone não está preparado para um confronto direto com os smartphones, como o Blackberry, o Motorola Q ou o Treo, por falta de aplicativos que lhe permitam enviar e receber e-mails corporativos e seus anexos, e populares como os da plataforma Windows.
É verdade, mas o iPhone não foi criado para competir diretamente com esse mercado e, sim, para a área do entretenimento mais sofisticado, que adora desenho arrojado, inovações futuristas e recursos que nenhum outro celular ou PDA oferece hoje. ‘Mesmo que as funções de telefone celular do iPhone sejam consideradas comuns ou medíocres, ele poderá fazer grande sucesso’, diz David Haskin, da Computerworld.
O novo produto da Apple só chegará ao mercado norte-americano em junho e ao europeu e asiático no segundo semestre. É muito provável, entretanto, que dentro de um ano surjam versões especiais para o executivo que hoje usa smartphones Motorola, Palm, Blackberry ou Nokia.
Nesta primeira fase, o maior apelo do iPhone é dirigido ao público jovem, que adora música e vídeo e poderá unir num só aparelho todas as vantagens do celular, do iPod e do iTunes (serviço de download de músicas, a US$ 0,99 por faixa, que só vigora nos Estados Unidos).
Em parceria com a Apple, a operadora Cingular oferecerá com exclusividade aos seus assinantes o iPhone, nos Estados Unidos, ‘por muitos anos’. Se um assinante da concorrente Verizon quiser um iPhone, é só comprar o aparelho, por US$ 500 e procurar a Cingular. Fácil, não?’
INTERNET & CRIME
A máfia do contrabando virtual
‘Numa esquina de Ciudad del Este, Paraguai, um homem de meia-idade vende, por R$ 20,00, notas fiscais de empresas brasileiras. São falsificadas, mas servem para ‘legalizar’ mercadorias contrabandeadas, vendidas em sites brasileiros. O comércio eletrônico é a mais nova e rentável arma das quadrilhas de crimes pela internet, que montam lojas virtuais fraudulentas. A estimativa é de que elas faturaram, só em 2006, R$ 4,3 bilhões.
O Estado acompanhou, de 13 a 16 de dezembro, a trajetória do contrabando que recheia sites fraudulentos, da compra nas lojas de Ciudad Del Este à chegada ao interior paulista. Uma cooperativa de donos de endereços eletrônicos banca a viagem, feita por rodovias de São Paulo até Foz do Iguaçu.
A Polícia Federal descobriu que o paraíso das quadrilhas virtuais fica em Araçatuba, a 530 quilômetros de São Paulo. Nos últimos quatro anos, elas deram prejuízo de R$ 15 milhões a pelo menos 2 mil consumidores. As organizações se juntam para comprar e guardar mercadorias, armazenadas em forma de rodízio em cinco barracões espalhados por bairros diferentes da cidade.
A rede criminosa inclui empresários, comerciantes, contrabandistas, doleiros e policiais corruptos. Sustenta hoje pelo menos 16 sites suspeitos de terem sido montados exclusivamente para dar golpes no consumidor e na Receita Federal.
O delegado da PF em Araçatuba Sérgio Henrique Matheus diz que há três tipos de sites fraudulentos. Alguns deles entregam bens contrabandeados. Outros vendem, mas não entregam – nem devolvem o dinheiro. E há sites que fazem as duas coisas: entregam mercadorias, dando a impressão de credibilidade, depois aplicam grandes golpes. ‘Esses endereços geralmente funcionam por até um ano. Depois de conquistar a confiança dos internautas, fazem uma grande promoção, captam boa quantia de dinheiro e são fechados.’ Segundo Matheus, cada site gira de R$ 150 mil a R$ 250 mil por mês.
Uma das vítimas dos piratas da web foi o médico Oilton Liberati Vieira, de Presidente Prudente, que comprou um notebook em 2005 por R$ 3.999,00 e até hoje não recebeu o produto. Vieira denunciou o site em dezembro daquele ano. Quando a polícia chegou ao local do call center do site, num edifício comercial no centro de Araçatuba, apreendeu 572 cartas com queixas de consumidores de todo o País. Todas estavam no lixo.
O site foi fechado, mas nenhum dos responsáveis pelo golpe chegou a ser preso. O inquérito está na Delegacia Seccional de Polícia à espera da autorização de pedidos de quebra de sigilo das contas correntes dos golpistas, possivelmente todos laranjas.’
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Site fraudulento tem dono virtual
‘Golpistas põem endereços sob suspeita em nome de colegas, namoradas, amantes e até dependentes químicos
A Polícia Federal descobriu que a maioria dos sites usados pela máfia do contrabando virtual é operada por laranjas, pessoas que levam a culpa no lugar dos verdadeiros donos. Estes são, geralmente, traficantes ou bandidos experientes, que migraram para esse tipo de golpe para ganhar mais dinheiro e correr menos risco de prisão. A pena para tráfico, por exemplo, varia de 5 a 15 anos de detenção, enquanto a de estelionato vai de 1 a 5 anos. Além disso, o acusado de estelionato pode pagar fiança e responder em liberdade.
Em 2005, sete sites foram fechados e seus operadores, indiciados por contrabando e estelionato. No entanto, nenhum criminoso ficou preso. Alguns continuaram aplicando o golpe com outros sites, em novos endereços.
Um dos endereços eletrônicos descobertos pela polícia estava em nome de um dependente químico que confessou ter ‘vendido’ a carteira de identidade em troca de cocaína. Outros sites fechados estavam em nome de colegas, namoradas, amigas e amantes dos donos, que escapam de processos por falta de provas materiais ou testemunhais contra eles.
Uma página de vendas virtuais pode garantir ganhos de R$ 30 mil a R$ 1 milhão por mês, estima a PF. O Nickshop, pioneiro nesse tipo de golpe, movimentava no fim de 2004, quando foi fechado pela polícia, entre R$ 1,5 milhão e R$ 2 milhões mensais. ‘Se a gente entrega as mercadorias pode tirar, depois de seis meses, de R$ 40 mil a R$ 200 mil líquidos. Se não entregar, o ganho é de cinco a dez vezes maior’, diz o responsável por um site flagrado pela polícia em 2005.
Como trabalham com mercadoria que entra ilegalmente no País, os sites oferecem produtos a preços bem abaixo da concorrência e atraem consumidores de todo o País. Só a delegacia da PF de Araçatuba recebe, em média, dez telefonemas por dia com queixas de consumidores, pessoas físicas e jurídicas, de vários Estados. ‘Eles compraram, pagaram, mas não receberam os produtos. E, quem recebeu, era contrabando’, diz o delegado Sergio Henrique Matheus.
O policial lembra do caso do representante de uma empresa de São Paulo, lesada em R$ 20 mil. ‘Eles fizeram uma concorrência e decidiram comprar no site que vendia os equipamentos de informática mais baratos.’
Outra história é a de um pastor de Brasília, que gastou R$ 3 mil da igreja para comprar um projetor. Não recebeu o produto e é cobrado até hoje pelos fiéis.’
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Site de busca vetou ofertas de Araçatuba
‘Depois de montar um site de comércio virtual, o golpista do contrabando online oferece seus produtos, com descontos de até 20%, nos sites mais conhecidos de busca de produtos e comparação de preços. Os preferidos são Bondfaro, BuscaPé e Shopping Uol, acessados milhões de vezes por dia. Essa situação já levou o BuscaPé a proibir a veiculação de anúncios de sites com o código telefônico 018 (DDD de Araçatuba), o que provocou reclamações das lojas sérias da região.
‘Geralmente, o anúncio é feito uma vez por semana. O retorno compensa, o movimento aumenta quatro vezes nos dias seguintes’, conta um ex-dono de site ouvido pela reportagem do Estado.’
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A conexão pirata, do Paraguai a Araçatuba
‘Em 13 de dezembro, contratado pelos donos de dois sites de mercadorias contrabandeadas, o motorista João Alberto (nome fictício) deixou Araçatuba com destino ao Paraguai. Saiu com US$ 20 mil para buscar 120 produtos eletrônicos, memórias de computador e aparelhos de MP3. Levou outros US$ 2 mil para pagar atravessadores brasileiros e paraguaios, donos de hotéis que guardam o contrabando em Foz do Iguaçu e, principalmente, subornar policiais rodoviários, federais e estaduais.
Ao chegar a Foz, João alugou quarto em um pequeno hotel em Vila Portes, perto da Ponte da Amizade. A região, entre as Ruas Osvaldo Cruz, Cassiano Ricardo e Assis Brasil, é conhecida por ter 30 hotéis de fachada, que servem como depósito de mercadorias.
No mesmo dia, a Receita Federal apreendeu em um desses hotéis US$ 149 mil em contrabando. A operação fez João, alertado por um dos olheiros que atuam no lado brasileiro da Ponte da Amizade, adiar por mais um dia sua compra.
Na manhã seguinte, ele entrou de táxi em Ciudad del Este para as compras. O acerto foi o de que a mercadoria seria entregue num hotel no dia seguinte.
A parte baixa de Ciudad del Este é a preferida dos contrabandistas brasileiros. Ruas imundas e corredores escuros escondem lojas e salas com milhões de dólares em produtos de informática. Todas controladas pela máfia chinesa, segundo a polícia.
João entrou em quatro lojas e entregou a lista dos produtos. Pagou aos vendedores e recebeu recibos das compras. Com eles em mãos, seguiu pela Avenida Adrian Jara, uma das principais da parte baixa de Ciudad del Este, entrou em um dos corredores e parou num salão onde meia dúzia de rapazes embalavam mercadorias.
Lá encontrou dona Ana, brasileira que aparenta 45 anos. É ela a responsável por levar as mercadorias ao hotel, em Foz. Pelo serviço, cobrou US$ 800 – 4% do valor das compras de João -, a serem pagos no hotel.
Segundo o delegado da Receita Federal em Foz, José Carlos Araújo, há outro grupo que comanda o contrabando pelos Correios ou por encomendas. Deste último faz parte um homem de 50 anos, conhecido como Zé Guapi, que diz estar há 22 anos na atividade. Ele garante a entrega de mercadorias em todo o País pelos Correios ou por serviços de encomenda, como o Varig Log. ‘Cobro 25% do valor da compra. Você vai receber o que quiser em qualquer cidade. Dou garantia da entrega, mas as mercadorias têm de ser enviadas parceladamente.’
Antes de deixar o Paraguai, João ainda se encontrou com o homem que vende notas fiscais a R$ 20,00 cada uma. Escolheu notas de empresas de Ribeirão Preto, São Paulo e Porto Alegre para justificar, em caso de blitze, a compra das mercadorias. ‘Falo que são essas empresas que importaram as mercadorias e fica tudo em paz.’
Por volta das 7h30 do dia seguinte, quando João chegou ao hotel combinado, dois rapazes o aguardavam. No quarto 318, ele encontrou suas compras e fez a conferência. Antes de saírem, os dois apontaram um outro contato, Cido. ‘Ele está aí embaixo’, avisou um deles.
João desceu e conversou com Cido, o batedor, que garantiu a entrega do contrabando num posto de combustível na BR-369, em Cascavel, a 150 quilômetros de Foz. A entrega reduz os riscos de blitze dos fiscais da Receita, Polícia e Polícia Rodoviária Federais. Em seguida, Cido chamou um amigo. Os dois desceram as mercadorias, colocadas na traseira de uma Parati. A perua, ano 1995, tem placas de Foz. O uso de carros antigos com placas de cidades da região é estratégico: eles não são parados nas blitze.
Pelo serviço, João pagou R$ 200,00 e passou a contar com a sorte: se a polícia parasse os batedores, ele perderia toda a compra. ‘Isso aconteceu somente uma vez, mas é o jeito mais seguro, porque eles (batedores) têm apoio de policiais e fiscais corruptos.’ Com Cido e o amigo, seguiram dois carros, carregados de contrabando no mesmo hotel por outros compradores. Entre Foz e Cascavel, pela BR-277, as blitze são freqüentes, mas os batedores usam estradas desconhecidas.
Duas horas e meia depois, Cido chegou ao posto, onde há um hotel que hospeda sacoleiros que aguardam a chegada de outros batedores. João já estava lá. Cido e o amigo receberam o pagamento pelo serviço e repassaram a carga para o carro de João. Nos 650 quilômetros restantes, o motorista foi parado uma vez por policiais rodoviários estaduais, na altura de Maringá, aos quais pagou propina de R$ 50,00. Depois, seguiu tranqüilamente até chegar a Araçatuba, por volta das 21 horas de 16 de dezembro.’
DEMOCRACIA & MÍDIA
A democracia de aluguel
‘Já foi o tempo em que o protesto social era praticado direta e exclusivamente pelos interessados na defesa de uma causa, de um direito ou no questionamento de uma violação de direitos. No mundo inteiro, a luta operária era de operários; a luta estudantil era de estudantes; a luta camponesa era de camponeses; a luta feminina era das mulheres. A notícia difundida pela BBC e pelos jornais, nesta semana, do surgimento, na Alemanha, de uma organização que aluga manifestantes para diferentes causas joga água gelada no devaneio de um protesto social puro e legítimo. Por cerca do equivalente a R$ 300,00, um manifestante de aluguel pode participar da multidão, carregar cartazes, gritar palavras de ordem e defender uma causa que não é a sua e que não o afeta diretamente.
De outro modo e com outro formato, já havíamos inventado isso aqui na América Latina e no Brasil em particular. É até antigo o empréstimo de manifestantes, de um grupo social por outro, em favor de causas que nada têm a ver com a condição social daquele em cujo nome a manifestação se faz. Durante muito tempo se pensou que isso representava a generosa e comovente solidariedade de um grupo social em relação a outro. Com o tempo foram surgindo indicações de que esse deslocamento de sujeitos de uma causa para outra era em boa parte oportunismo de grupos de manipulação. Os nossos coronéis sertanejos fizeram isso durante os longos anos da República Velha, rurícolas miseráveis arrebanhados como gado manso para fazer-se representar por delegados cujos interesses eram opostos aos seus em troca de uma dentadura ou de favor futuro.
O pagamento a cabos eleitorais para fazer boca de urna em favor de candidatos e partidos, forma de pressão política que só recentemente começou a ser combatida, foi a nossa maneira de criar um mercado de serviços políticos de ocasião não muito diferente do que começa a acontecer na Alemanha. A diferença é a de que lá as demandas dos manifestantes alugados são principalmente de causas restritas, como melhor assistência hospitalar aos velhos ou melhores serviços públicos para determinadas categorias que se sentem prejudicadas. Aqui, tudo tende ao partidário, como temos visto com freqüência.
Aqui, o nosso manifestante de aluguel ainda se esconde no rebuço dos empregos públicos de recompensa por sua militância e, portanto, se esconde no pagamento indireto de uma causa que vai além da causa de seu próprio bolso. Não raro racionaliza e fantasia para atenuar a culpa que decorre da invasão de sua vida e da sua consciência pelas premissas e pelos critérios da economia de mercado e do próprio neoliberalismo que denuncia e combate até com barulhenta convicção. É evidente que há nesse quadro as muitas exceções dos profissionais competentes motivados pelo afã de prestar competente serviço ao Estado e à sociedade.
A mais difundida racionalização dessas formas de empréstimo e aluguel de manifestantes e de militâncias é a de que as diferenças se combinam em nome de causas que são componentes de um sistema político de demandas que convergiriam no ápice de um regime político que resolveria todas as nossas misérias e todas as nossas contradições. Aqui há no manifestante de empréstimo uma certa personificação de um eu coletivo que age em nome da sociedade, sobretudo a sociedade do futuro e nova, a sociedade ‘alternativa’ da terra sem males, a terra que mana leite e mel, o beatífico socialismo tropical. Mas há também os muitos que são recompensados com os empregos públicos de livre provimento, mais do que aluguel de manifestante, verdadeiro arrendamento da militância política.
Não tem sido menos importante, a pretexto da solidariedade, a ocupação consentida da manifestação de um grupo por outro, nos casos daqueles que são politicamente débeis ou conjunturalmente enfraquecidos, cuja demonstração solitária indicaria antes fraqueza do que força política.
Foi o que aconteceu com a classe operária e seus sindicatos nas caronas que pegou nas demonstrações dos sem-terra na Praça dos Três Poderes, em Brasília, mais de uma vez.
A diferença entre o que se evidenciou agora na Alemanha e o que acontece no Brasil há mais tempo é que lá, sociedade moderna e desenvolvida que é, a decisão de alugar-se para protestar é decisão individual, de cidadão que abre mão da sua cidadania em favor da dos outros. Aqui, a decisão dos manifestantes fora de seu lugar social tem ainda forte carga de manipulação coletiva, de grupos organizados de interesse político (e, quem sabe, outros mais), mediante formas indiretas de compensação material.
O que separa essas distintas manifestações de abastardamento da consciência e da ação política é a forma da venda e da compra, do aluguel e do arrendamento, perdidos que estamos num passado que insiste em permanecer. A cidadania precária ainda é uma cidadania de manipulação. Mudou apenas o dono do curral, que de eleitoral passou a ser curral de demandas sociais, nem por isso menos legítimas, ainda que em forma antidemocrática.
Essas transfigurações do processo democrático e a diluição dos sujeitos sociais e políticos em práticas teatrais, nas quais o cidadão se propõe como ator e não como agente, substituem as categorias sociais e políticas em nome das quais a sociedade contemporânea passou a pensar-se desde a Revolução Francesa. Essa é uma das razões pelas quais as pregações políticas em nome de visões de mundo que estavam referidas às práticas e aos sistemas conceituais que as grandes revoluções sociais e políticas nos legaram, tornam-se inconsistentes e caricaturais na nova realidade de uma militância teatral e remunerada.
A imensa questão que se abre diante de nós, em face da emergência e disseminação dessas modalidades de manifestação das demandas sociais, é a questão da democracia. Que democracia é essa da cidadania de aluguel, do sujeito político sem um rosto próprio e de demandas sociais que tem preço de mercado antes de terem conseqüências políticas?
*José de Souza Martins é professor de sociologia da Faculdade de Filosofia da USP’
MEMÓRIA / RYSZARD KAPUSCINSKI
Depressão tropical
‘O Estado publica trecho de livro, inédito em português, em que o jornalista polonês Ryszard Kapuscinski, morto na semana passada, escreve sobre a vida nos Trópicos e o ofício de correspondente
Ryszard Kapuscinski
Vítima de Deus, já faz dois meses que eu, como Lázaro, estou acamado em Lagos, lutando com uma doença. Deve ser uma doença tropical, um envenenamento de sangue ou a reação a alguma toxina secreta, que fez com que o meu corpo ficasse todo inchado e coberto de furúnculos, pústulas e carbúnculos. Não tenho mais forças para combater a dor, e peço a Varsóvia permissão para voltar. Nas minhas viagens pela África, adoeci inúmeras vezes, pois os Trópicos dão à luz tudo com extremo exagero, incluindo aí a proliferação das mais diversas bactérias e contaminações. Não há saída: se alguém se propõe a penetrar nos lugares mais úmidos, traiçoeiros e intocados daquela terra, tem de estar preparado a pagar por isso com sua saúde – se não com a vida. Mas é isso que acontece com qualquer paixão de alto risco – é um Moloch (nota do tradutor: Deus dos amonitas que sacrificava os recém-nascidos, jogando-os em uma fogueira) que quer nos devorar. Numa situação dessas, há pessoas que optam por uma existência paradoxal, ou seja – ao chegarem à África, desaparecem em hotéis confortáveis, sem sair dos luxuosos bairros de brancos. Nesses casos, embora estivessem fisicamente na África, topograficamente continuavam vivendo na Europa, só que numa Europa substituta, reduzida e de segunda classe. No entanto, esse estilo de vida não é digno de um viajante de verdade, além de ser totalmente inadequado para um jornalista que precisa constatar tudo na sua própria pele.
Obra sai em abril
O texto ao lado é um trecho de ‘Plano de um livro que poderia começar neste ponto; as minhas trapalhadas jamais escritas’, parte do volume A Guerra do Futebol, que o jornalista polonês Ryszard Kapuscinski lançou em 2001 na Polônia e que a Companhia das Letras coloca em abril no mercado brasileiro, com tradução de Tomasz Barcinski. Morto na terça-feira aos 75 anos, Kapuscinski atuou durante quatro décadas como correspondente de guerra. Realizou a cobertura de conflitos e revoluções nas Américas, Ásia, África e Europa e, mais tarde, traduziu em livros como Ébano – Minha Vida na África, O Imperador e Imperium suas experiências como jornalista. A Guerra do Futebol (título provisório em português) reúne uma série de textos e reminiscências do autor. O título é uma referência ao conflito entre Honduras e El Salvador, no fim dos anos 60, motivado por uma série de disputas territoriais e iniciado após o confronto da seleção dos dois países durante as eliminatórias da Copa do Mundo de Futebol realizada em 1970, no México. Mas o volume traz também capítulos sobre a situação de países africanos como a Argélia e a Etiópia e, entre eles, este ‘plano de livro’, que data dos anos 60 e revela os bastidores do dia-a-dia do jornalista e escritor durante os anos em que viveu na África, além de uma série de considerações sobre o trabalho do correspondente. No Brasil, a Companhia das Letras já publicou, de Kapuscinski, Ébano – Minha Vida na África e O Imperador, sobre o regime de Hailé Selassié na Etiópia, e Minhas Viagens com Heródoto, que chegou este mês nas livrarias e é comentado nesta edição; Imperium, que narra a queda da União Soviética em meados dos anos 90, foi editado no Brasil em 2004, mas está esgotado.’
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Notícias de um jornalista na África
‘Neste trecho, Kapuscinski descreve em detalhes a ‘chandra’ e conta como é trabalhar num continente tão extenso
No entanto, nem a malária, nem as amebas, nem a febre e nem as contaminações, são tão devastadoras quanto a doença da solidão, aquilo que, em polonês, chamamos de chandra – a depressão tropical. Para enfrentá-la é preciso ter uma resistência de ferro e grande força de vontade. Mas, mesmo assim, isto é uma tarefa árdua. (Neste ponto, cabe uma descrição da chandra; descrever a extrema exaustão após um dia vazio, no qual nada acontecera). Depois, uma noite insone, a fraqueza matinal, o lento mergulhar numa substância viscosa e pegajosa. Como olhamos para nós mesmos com evidente desprazer! Como a nossa brancura é repulsiva – uma brancura insossa e enjoativa! Uma pele branca como o giz, cérea, sardenta, empolada e cheia de bolhas – naquele clima, sob aquele sol! Um horror! Além disso, tudo encharcado de suor: as cabeças, as costas, as barrigas, os traseiros – todos como se estivessem debaixo de uma torneira mal fechada, da qual, incessantemente (ressaltar o termo ‘incessantemente’) pinga um líquido incolor com um odor acre – o suor.
– Ah, vejo que o senhor está suando muito.
– Sim, prezada senhora, muito, mas isto é saudável. Nos Trópicos, o suor é sinônimo de saúde. Todo aquele que sua tem mais condições de suportar aquele clima; ficamos menos cansados.
– Pois quero que o senhor saiba que eu não consigo suar. Talvez um pouquinho, mas assim, de verdade, nunca. Nem sei o que é suar.
– É que a senhora precisa beber muito. Beber e beber, qualquer líquido que a senhora tenha à mão. Sucos de frutas, refrigerantes, até um pouco de álcool é saudável. É melhor suar do que fazer pipi, os rins têm menos trabalho.
– Meu Deus, só se fala sobre o suor, não consigo mais agüentar isto.
– Mas isto é a coisa mais natural do mundo; suar não é algo vergonhoso.
– Isto deve ser psicológico, mas o senhor notou que, ao chamarmos a atenção de alguém de que ele está suando, ele começa a suar ainda mais?
– A senhora está coberta de razão; neste momento, eu estou suando em bicas.
Agradecemos a gentil conversação com o casal, e pensamos: coitados dos brancos, esmagados pelo calor, arfando nos Trópicos como peixes fora d’água, aglomerados uns aos outros, apáticos, amarfanhados, murchos e, sim, exatamente isto – suados (ela, menos, e ele, mais). (Descrever o característico complexo do suor, que é apenas uma forma do complexo de inferioridade.)
Nos Trópicos, o homem branco sente-se debilitado, fraco, e é daí que provém a sua tendência para acessos de fúria e agressão. Pessoas que, na Europa, costumavam ser bem-educadas, discretas e até submissas, quando chegam aqui ficam agressivas, ofendem-se com facilidade, destroem outras pessoas, pavoneiam-se com seu prestígio e, sem qualquer autocrítica, gabam-se das posições e da influência que desfrutam no seu país de origem. Do topo da sua autoridade imaginária, juram vingar-se dos seus inimigos (sendo que os inimigos em questão não são os políticos imperialistas, mas os seus colegas da escrivaninha ao lado), e se formos dizer-lhes ‘Meu caro, caia na real’ (o que tive vontade de fazer por mais de uma vez), ficarão ofendidos mortalmente. As pessoas fazem um espetáculo de si mesmas, sem se dar conta disso. Por outro lado, não fosse assim, não haveria a literatura, pois os escritores não teriam o que observar. Tudo isto – as fraquezas, as agressões e as manias – são um produto da chandra, que também apresenta sintomas de explosões emocionais. Tomemos, por exemplo, dois amigos sentados por horas num bar bebendo cerveja. Da janela, vêem-se ondas do Atlântico, palmeiras e garotas na praia. Nada daquilo os interessa – estão mergulhados na chandra, a depressão tropical. Seus olhos estão opacos, suas almas, pesadas e o corpo, exausto. Passam toda a tarde em silêncio, totalmente desatentos um do outro. De repente, um deles pega a sua caneca e desfere um golpe na cabeça do amigo. Gritaria, sangue, som de um corpo caindo no chão. O que aconteceu? Na verdade, nada, ou melhor, aconteceu o seguinte: a chandra nos exaure e tentamos livrar-nos dela constantemente. Só que a força necessária para isto não nasce de um momento para outro, precisa de um certo tempo para se acumular o suficiente para agir. Ao bebermos a nossa cerveja, ficamos aguardando aquele momento divino. E é aí que entra em cena um novo desvio patológico provocado pela ação dos Trópicos: no momento da aproximação daquele momento abençoado no qual poderíamos, calma e dignamente, vencer a chandra, desperta em nós um repentino aumento de força, vinda não se sabe de onde e irriga o nosso cérebro com um excesso de sangue. E nós, para darmos vazão àquele excesso, temos de desferir um golpe na cabeça do nosso inocente amigo. Trata-se de uma ‘explosão chandriana’, conhecida por todos estrangeiros vivendo nos Trópicos. Caso presenciemos uma cena dessas, não devemos intervir, pois não haverá mais razão para isto – com aquele único golpe, a pessoa livrou-se daquele excesso e já é um indivíduo normal, consciente e liberado da chandra. (Descrever outros comportamentos nos períodos da chandra. As mudanças fisiológicas nos estados crônicos: o torpor dos neurônios, o entorpecimento das pontas dos dedos, a perda da sensibilidade cromática e o geral obscurecimento da visão, a temporária perda da audição, etc. Haveria muito a dizer.)
Poucas pessoas têm uma noção exata do que é o trabalho de um correspondente de uma agência de notícias. A sua função é cobrir todos os acontecimentos importantes ocorridos numa área de 30 milhões de quilômetros quadrados (a da África), saber, simultaneamente, o que acontece nos 50 países do continente, o que lá ocorrera no passado e o que poderá ocorrer no futuro, conhecer pelo menos a metade das 2 mil tribos nas quais se divide a população africana, dominar centenas de detalhes técnicos como, por exemplo: qual é a via mais rápida para se chegar de Rabat a Lilongwe, qual o melhor caminho que leva de Tomarasset para Mombaça, onde obter um visto para os Camarões, quais são os países que exigem uma vacina contra cólera, qual é o número do telex de Yaounde, além de – aliás, acima de tudo – ele tem de pensar, pensar e pensar. Também é necessário ter vigor psíquico e preparo físico. Pois, qual seria a sua utilidade caso o nosso correspondente fosse pensar durante um duradouro ataque de depressão, e não escrevesse uma palavra sequer sobre acontecimentos de importância vital? Ou ficar viajando de um hospital para outro, em vez de uma frente a outra, de um país no qual terminara um golpe de Estado para um outro, onde o golpe mal se iniciara? Além disso, uma pessoa não poderia ser um correspondente caso tivesse medo de: moscas tsé-tsé, cobras negras, elefantes e canibais, ou de beber a água dos rios e riachos, comer uma torta de formigas assadas, de ficar arrepiado só de pensar em amebas e doenças venéreas, da possibilidade de ser roubado ou agredido, aquele que quer guardar dólares para construir uma casinha no seu país de origem, que não consegue dormir numa choupana africana e que despreza as pessoas sobre quais escreve.
No início dos anos 60, a África era, realmente, um mundo fascinante. Escrevi sobre isto vários livros (esqueci de mencionar que o correspondente tem de escrever sem parar, sem um momento de descanso – não quero dizer ‘sem pensar’, muito embora isto ocorra de vez em quando -, que se espera dele uma infinidade de informações através de telex, telegramas e correio, contendo comentários, opiniões, avaliações, etc., pois somente quando os seus textos, agrupados em pastas na Central, começarem a estourar de tão cheias e explodir os armários, ele poderá esperar que seus superiores hierárquicos possam dizer, de forma aprobatória: este é um dos bons; ele é realmente bom). Apesar de eu não ter sido considerado como um dos bons, e usado como um exemplo negativo, não deixei de escrever vários volumes de informações e comentários que se perderam, sem deixar qualquer vestígio. Pois o nosso ofício lembra o do padeiro – os seus pãezinhos somente são gostosos enquanto forem frescos; dois dias depois, endurecem; após uma semana, mofam e só servem para serem jogados fora.
Algum tempo depois de ter enviado para Varsóvia a minha reportagem Barreiras em Chamas, recebi, em Lagos, um telegrama do meu chefe – Michal Hofman – o então redator-chefe da PAP, a Agência Polonesa de Notícias. ‘Peço-vos’ – li no telegrama – ‘para que, de uma vez por todas, vós desistais de empreitadas que possam terminar numa tragédia.’ Aquele ‘de uma vez por todas’ era uma alusão a diversas aventuras nas quais me havia metido anteriormente, das quais, realmente, escapei por pouco com vida. O meu chefe foi sempre paciente e compreensivo, tolerando as minhas peripécias e a minha doentia falta de disciplina. O mais irresponsável de tudo era o fato de eu interromper repentinamente o contato com Varsóvia, sem informar a Central do que pretendia fazer e desaparecendo sem deixar rastro: estava mergulhado na selva, navegava sobre o Níger ou viajava com nômades pelo Saara. Ninguém sabia o que acontecera, onde eu estava e como entrar em contato comigo. A única coisa que podiam fazer era enviar telegramas para diversas embaixadas. Certa vez, ao chegar a Bamako, o pessoal da nossa embaixada me disse: ‘Estão procurando por você desesperadamente.’ Mostraram-me um telegrama: ‘Se, por um acaso, aparecer na vossa região o redator Kapuscinski, pedimos avisar PAP, através do Ministério de Relações Exteriores.’’
Vinicius Jatobá
À sombra da visão humana de Heródoto
‘Os sonhos são a gramática submersa do mundo, e não há sonho que não encontre morada numa biblioteca, nem livro que não tenha num leitor o amor que lhe corresponda. Àqueles que amam a leitura os livros abertos sabem a janelas, e em suas palavras a curiosidade dança. Os que de muitos livros se alimentam têm suas janelas com vários frisos; foram tantos de olhos abertos como no macio apogeu do leito; e quando finalmente velhos são idosos donos felizes de muitas velhices: as aventuras que leram vibram em suas retinas com a mesma cor daquilo que sofreram, muitas das cicatrizes que dóem nas noites frias nunca irromperam a pele. Se isso acomete o leitor enamorado, ao extremado que é todo escritor deitar a narrativa de suas vidas é arrancar dos escombros acumulados da estante os tomos fundacionais de suas vocações, ou até mesmo aquele único livro que lhe iluminou o existir. O farol de Kapuscinski foi Heródoto, e Minhas Viagens exercita essa forma discreta de amor entre iguais que é o elogio extremado.
Ryszard Kapuscinski é uma personalidade única no meio editorial europeu. Apesar da barreira ríspida da língua polonesa suas inventivas reportagens, que misturam recursos narrativos do melhor romance contemporâneo com os usuais procedimentos da prosa jornalística, deram-lhe renome continental e reconhecimento mundial. Kapuscinski criou relatos importantes que cobrem desde as tensas e confusas guerras civis africanas à emotiva e espantosa queda na União Soviética; e mesmo sem jamais ter escrito sequer uma linha de ficção, tornou-se com seu trabalho criativo e atuante um dos mais respeitados homens de letras do cenário europeu e um perene candidato ao Nobel de Literatura, e merecedor legítimo da láurea.
Porém, nem tudo é o céu. Muitos dos detratores de Kapuscinski questionam justamente o estatuto paradigmático de jornalismo de seus livros. São inexatos e desarticulados e imprecisos, frouxos ao pensamento acidental e caprichoso, possuem parágrafos de memorialismo até gratuito que nodoam o trovar neutro usual das reportagens, e muitas vezes simplesmente aportam em destinos que mal se casam com seus pontos de partida. No entanto, nesses lapsos há fortaleza. Seus livros são compostos na lentidão do conforto da casa polonesa e não no calor agitado das revoluções e guerras que cobriu como correspondente internacional; são frutos de um segundo olhar, os desenhos gerais que esboçam o esforço de uma nova compreensão. Seja na deslumbrante narrativa de vozes entrecruzadas que reviram o corpo necrosado da tirania de Haile Selassié I (O Imperador), na acumulação de relatos sobre gente simples do continente africano (Ébano), ou na crisálida plural de fragmentos e ruínas e sonhos abandonados e abortados do fenecido colosso comunista russo (Imperium), o que Kapuscinski faz é animar a potência da fala dos cotidianos anteriores demolidos pelos caprichos da história. Seus livros podem até não ser paradigmáticos como reportagens, mas são lapidares, e essenciais.
Contudo, e até infelizmente, Minhas Viagens com Heródoto não é um exemplar típico do jornalismo de Kapuscinski; muito menos são suas memórias ou a descrição detalhada do nascimento de uma vocação. Minhas Viagens é uma homenagem a um homem magnífico e admirável, uma leitura crítica abrangente de seu grande livro, e um enamorar por seu modo de vida e visão de humanidade. O peregrino Heródoto, que sentiu sob suas solas calejadas todo calor pedregoso do mundo de seu tempo, em sua velhice sedentária na colônia ateniense de Turio criou a impressionante massa verbal que compõe a História. Nessa ambiciosa narrativa, Heródoto se propôs compreender todos os veios que antecederam e definiram as Guerras Médicas, assim como se ocupou com o enredo exato das batalhas e com suas macilentas conseqüências.
Ao passo que descreve algumas das dificuldades do seu início de carreira como correspondente internacional, Kapuscinski destrincha a mente de Heródoto: seu estilo persuasivo e conciso, sua forma de incorporar os dados de suas inúmeras pesquisas na intricada narrativa, a estrutura algo encantatória do enredo, o esforço delicado de conjugar os modos conflitivos de ver o mundo dos diferentes povos em guerra. O lugar do indivíduo diante da engrenagem do moinho da história; a palpitação azeda que toda uma nação sente quando assombrada pela morte. Assim, Minhas Viagens narra o que o pai da História ensinou ao filho dileto do jornalismo. O sangrento mundo descrito por Heródoto deu a Kapuscinski a sabedoria para ir além do mero ver, deu-lhe a providência de enxergar nos meandros convulsivos do espaço africano e asiático em que trabalhava pequenas e discretas metáforas de um palco muito maior. Ensinou que é no conforto da casa polonesa, distante dos cadáveres e da miséria, do cheiro agreste da fome e do medo, mergulhando na memória um olhar de duração vasta, que a prosa pode vencer o caos convulsivo da história perguntando-se as mesmas perguntas, e eliminando sem dó as mesmas respostas.
Vinicius Jatobá é crítico literário e mestrando em literatura portuguesa na PUC-RJ. Mantém o site www.outrababel.blogspot.com
(SERVIÇO)Minhas Viagens com Heródoto, Ryszard Kapuscinski, Companhia das Letras, 312 págs., R$ 49′
WATERGATE REVISITADO
Muito mais a dizer sobre o mesmo Watergate
‘O que sobrou para ser dito sobre o escândalo Watergate após mais de três décadas de reportagens, livros, filmes e a revelação de que o vice-diretor do FBI, Mark Felt, era Garganta Profunda, a cinematográfica fonte dos repórteres do jornal Washington Post, Bob Woodward e Carl Bernstein? Sobrou pouco. Paradoxalmente, Alicia C. Shepard tem muito a dizer, embora sem nenhuma bomba de calibre watergatiano, em Woodward and Bernstein: Life in the Shadow of Watergate (Editora John Wiley & Sons, US$ 24,95, 304 págs.).
Professora de jornalismo da American University, em Washington, ela foi uma das primeiras pequisadoras a fuçar os arquivos vendidos por Woodward e Bernstein em 2003 para a Universidade do Texas. Foi infatigável nas investigações, como aqueles dois jovens repórteres com menos de 30 anos que em 18 junho de 72 foram cobrir um arrombamento na sede do Partido Democrata no edifício Watergate. Ironicamente, as duas celebridades sessentonas não deram entrevistas à autora. Mas Shepard conversou com 175 pessoas e leu tudo o que está nas 75 caixas do arquivo dos lendários repórteres, assim como as anotações de Alan Pakula, o diretor de Todos os Homens do Presidente, e de Robert Redford, que além de fazer o papel de Woodward, foi um dos produtores do premiado filme de 76.
A autora claramente é fã da dupla Robert Redford/Dustin Hoffman (sorry, Woodward/Bernstein), mas é cuidadosa para não exagerar a importância de ‘Woodstein’ no escândalo que levou à renúncia do presidente Richard Nixon em agosto de 1974. Tribunais, Congresso, FBI e outros jornalistas foram cruciais para desvendar a conspiração.
Aliás, o filme que ajudou a consagrar ‘Woodstein’ rendeu inimizades eternas para os dois no Washington Post, pois Hollywood não deu o crédito a quem também merecia. Howard Sussman, mentor de Woodward e ex-editor de Cidades do jornal, revelou a Shepard: ‘Não tenho nada de bom para dizer sobre eles.’ É verdade que a dupla ‘Woodstein’ nunca arrogou todo crédito para si e o melhor do livro de Shepard são os detalhes sobre como os dois lidaram com a fama Watergate.
O início da parceria entre os dois foi acidental e, de fato, era um casal estranho. Woodward, o conservador do meio-oeste, de família protestante, formado em Yale, ex-oficial da Marinha, metódico, obsessivo, mas ruim de texto. Bernstein, um filho de judeus esquerdistas de Washington que largou a faculdade, endividado e indisciplinado, mas bom redator. Woodward ia de galho em galho, enquanto Bernstein via a floresta. Era a simbiose ‘Woodstein’.
A parceria profissional durou de 1972 a 76 e os caminhos seguidos individualmente foram previsíveis. Woodward tornou-se uma marca de jornalismo, com acesso invejável e às vezes obsequioso ao centro do poder. Ainda labutando no Washington Post, infatigável, ele escreveu sozinho 12 livros, após os dois em parceria com Bernstein sobre Watergate e Nixon. Apesar da fama e fortuna, Woodward está sempre às voltas com as críticas freqüentes por aquilo que Shepard chama de ‘falta de análise, a morte da atribuição das fontes e pendor por recriações novelescas de cenas que não foram gravadas, exceto na memória dos participantes’.
Bernstein trocou várias vezes de emprego e de mulher. Ficou mais conhecido por uma vida pessoal tumultuada (já antes de Watergate). Dustin Hoffman não quis repetir a dose como Bernstein no ácido filme Difícil Arte de Amar (ficou com Jack Nicholson), inspirado no seu atribulado relacionamento com Norah Ephron. Bernstein escreveu apenas mais dois livros (um sobre seus pais e o outro a respeito do papa João Paulo II). Desde 1999, trabalha em livro sobre Hillary Clinton. A publicação, quem sabe, coincida com a posse dela na Casa Branca em 2009.
Bernstein sempre foi uma figura mais colorida do que Woodward. As melhores histórias no livro de Shepard são sobre ele. Durante uma cobertura, Bernstein alugou um carro e o esqueceu em um estacionamento. Quando Ben Bradlee, o editor-executivo do Washington Post, recebeu a conta de US$ 500, num acesso de fúria, disse: ‘Livrem-se daquela filho da p…’ Mas como o bastardo estava desvendando o quebra-cabeça Watergate, Bradlee rapidamente se livrou da idéia de demiti-lo.
A parceria profissional e amizade entre os dois repórteres teve altos e baixos, mas eles sabem estar atados para sempre pelo escândalo Watergate. Entre eles há um pacto de lealdade. A idéia de vender os arquivos pessoais por US$ 5 milhões para a Universidade de Texas foi de Bernstein. Woodward estava reticente, mas topou para ajudar o parceiro. Como especulou Bradlee, Bernstein ‘precisava da grana’. E, como recomendou Garganta Profunda para Woodward em Todos os Homens, ‘follow the money’. Isto, na realidade, nunca foi dito, mas deixa para lá. É história para outro livro.’
TELEVISÃO
Os fantasmas se divertem
‘Enquanto o elenco de ‘Páginas da Vida’ reclama que não tem cenas, Nanda, já morta, ganha mais destaque; na TV paga, o efeito ‘I see dead people’ também está em alta
Nanda, o fantasma de Páginas da Vida, está cada vez mais ativa na trama de Manoel Carlos. Enquanto o elenco – em peso – da novela das 9 reclama que não aparece em cena, a personagem de Fernanda Vasconcellos está tão poderosa que provoca até combustão. Sim, recentemente, a ‘moça bonita’ botou fogo na cozinha de Helena (Regina Duarte). Mas Nanda é apenas um dos fantasmas em cartaz na TV atualmente. O canal pago Sony, por exemplo, tem duas séries – Ghost Whisperer e Medium – em que as pessoas mortas são atração principal. No Warner Channel, os eventos sobrenaturais ocorrem em Supernatural, no ar também no SBT.
Os fantasmas são freqüentes nos folhetins. Quem não se recorda do Alexandre, personagem de A Viagem, no Vale dos Suicidas? De Ivani Ribeiro, a novela foi ao ar pela primeira vez em 1975 na TV Tupi e ganhou remake global em 1994. Os atores Ewerton de Castro e Guilherme Fontes encarnaram o perturbado Alexandre. Na novela, os três protagonistas – Diná (Eva Wilma/Christiane Torloni), Otávio (Altair Lima/Antônio Fagundes) e Alexandre – atuavam em dois planos: o da vida e o da morte.
Outros fantasmas famosos na telinha foram Jorge Tadeu, personagem de Fábio Jr. em Pedra sobre Pedra, de Aguinaldo Silva (1992); Acácio (Chico Diaz), o pai do peão Tião, em América, de Glória Perez (2005); Luna (Liliana Castro), em Alma Gêmea, de Walcyr Carrasco (2005), que reencarnava na índia Serena (Priscila Fantim). No remake de O Profeta, de Ivani Ribeiro, atualmente no ar na Globo, a atriz Carolina Kasting tem seus dias de fantasma.
I see dead people
A frase ‘I see dead people’ (‘Eu vejo gente morta’, em inglês) ficou famosa quando o diretor M. Night Shyamalan lançou, em 1999, o filme O Sexto Sentido. Na boca do garoto Cole Sear (Haley Joel Osment), a afirmação assustou muita gente. Mas, na vida real, há um homem que afirma ser como Cole. Seu nome é James Van Praagh. Além de dar palestras ao redor do mundo – inclusive no Brasil -, o paranormal também teve suas histórias transformadas em série. Ghost Whisperer é inspirado em Van Praagh.
‘Quando era um garoto, costumava ver espíritos ao lado das pessoas e também cores e luzes em volta delas – isso é conhecido como aura e é normal para mim’, explica Van Praagh. ‘Eu era normal e os outros, esquisitos. Exatamente como o filme O Sexto Sentido, que é igual à minha infância.’ O paranormal diz que nunca teve medo dos mortos que vê, pois sua mãe sempre os tratou como ‘anjos de Deus’. Ele afirma ‘ter mais medo dos vivos do que dos mortos.’
Durante entrevista com a imprensa internacional em Los Angeles, da qual o Estado participou, um jornalista alemão desafiou o médium: ‘Você consegue ver um morto agora ao lado de alguma dessas pessoas?’ Van Praagh respondeu: ‘Isso eu nunca vou te falar.’ Depois voltou atrás e explicou que precisa se concentrar por cerca de 10 minutos para que eles apareçam. E mudou de assunto.
O médium enfrentou questões árduas dos céticos repórteres dos cinco continentes, que até questionaram Van Praagh sobre uso de drogas e medicamentos que podem causar alucinações. ‘Sabe, tenho um senso de humor ótimo, mas tenho de controlá-lo aqui’, desafiou Van Praagh, que está ganhando mais fama por causa da série. No site , o paranormal hospeda seu blog e dá dicas de como identificar e lidar com situações fantasmagóricas.
Em Ghost Whisperer, quem vive as histórias de Van Praagh é a protagonista Jennifer Love Hewitt. ‘Sou aberta à idéia de existirem fantasmas’, conta a atriz. ‘Não sei se diria, com 100% de certeza, que acredito, mas sou intrigada com a história.’ Na série, sua personagem, Melinda Gordon, vê pessoas mortas que ainda estão nesta dimensão porque possuem assuntos pendentes na Terra. Ela ajuda os fantasmas a resolverem essas questões para poderem caminhar em direção à luz e atravessar para a outra dimensão.
‘Acho que todo mundo quer ter essa última chance de dizer algo como ‘eu te amo’, ‘sinto muito’, ‘não quis dizer isso’, ‘me perdoe’, fala Jennifer. ‘A série dá chance para que as pessoas falem isso toda a semana, já que a mensagem é ‘diga tudo o que você tem a dizer e não deixe nada para depois.’ Afinal, encontrar uma Melinda Gordon para mediar conversas após a morte não é tarefa fácil.
Detetives psíquicos
Nos Estados Unidos é um tal de ver gente morta sem fim. Tanto que delegacias de polícia estão contratando pessoas que se dizem paranormais para ajudar em investigações criminais. Prova disso é que há uma série de casos ditos reais sobre os detetives psíquicos em cartaz no Universal Channel, o Psych Detectives. Na orla da ficção assumida, o canal Sony exibe Medium, em que Patricia Arquette é a sensitiva que tem sonhos premonitórios e ajuda a polícia a desvendar ou evitar crimes a partir de seu dom.
Na série, a atriz interpreta Alisson Dubois, uma mãe de três meninas e casada com um marido muito compreensivo, que já se acostumou com os gritos de sua mulher durante a noite, quando ela tem seus terríveis sonhos. Alisson Dubois não dorme em paz. Ora acorda assustada, ora desperta agitada e ansiosa para falar com seu chefe na polícia. E o pior é que uma de suas filhas também está desenvolvendo o dom de ter visões ao fechar os olhos.
Ficção X realidade
A promotora de eventos Rosana Beni acredita ter a mesma mediunidade da personagem de Patricia Arquette e a reportagem propôs a ela um desafio: assistir aos episódios da primeira temporada da série e comentar se há semelhança com a realidade. Rosana aceitou a brincadeira e listou os aspectos que mais se aproximam de sua experiência.
‘Como a protagonista da série, às vezes acordo de meus sonhos com o coração palpitante e não são pesadelos’, comenta a promotora de eventos. ‘Assim que acordo, vejo espíritos ao lado da minha cama. São pessoas conhecidas e outras não, mas não as vejo na claridade, só consigo ver quando há apenas um pouco de luz. Alisson é parecida comigo também porque trabalha com isso, como conseqüência de seu dom.’ Rosana diz isso porque apresenta o programa Dimensões, no Canal São Paulo, que vai ao ar toda segunda-feira, às 21 horas.
Rosana conta que começou a entender, estudar e controlar melhor sua mediunidade há alguns anos, mas antes, assustava-se com o que via. ‘Nos últimos 6 anos resolvi parar de ter medo’, fala. Durante seu mergulho no tema, Rosana conheceu James Van Praagh. ‘James enxerga muito e é muito culto. Conseguiu disciplinar a mediunidade dele’, afirma a promotora de eventos, que conheceu o médium durante um workshop em Miami. ‘Ele viu minha mãe e me deu um recado dela. Disse que era para James me avisar que, onde ela estava agora havia um piano.’
Medium, na análise de Rosana, ‘é interessante, tem roteiro inteligente e mostra uma família normal.’ Para ela, a série é instrutiva, pois ajuda as pessoas que têm o dom. ‘Estou 90% de acordo com a série, só não gostei muito do sensacionalismo e do sangue’, atesta.
Outra semelhança que Rosana enxerga na protagonista de Medium é a que diz respeito ao maridão. Assim como na ficção, a promotora afirma que seu marido também entende a situação. ‘Até me emocionei quando vi como a família de Alisson interage’, diz.
Para Rosana Beni, ainda há muito preconceito no Brasil contra os sensitivos. Hoje, ela não se acanha e, quando tem visões que envolvem pessoas que ela conhece, vai logo avisando. ‘Quem quiser acreditar que acredite.’
Eles não se assustam à toa
Apesar da moda dos sensitivos na TV, há uma turma que vai na contramão. Os céticos da série Psych aproveitam para brincar com essa explosão fantasmagórica. Com um enredo que explica a precisão dos detetives psíquicos por meio de simples deduções completamente humanas e racionais, a série em cartaz no Universal Channel tira um sarro da mediunidade que algumas pessoas alegam possuir.
Na atração, o ator James Roday interpreta Shawn Spencer, que decide usar uma tática pouco ortodoxa para ingressar na polícia. Filho de um detetive, Shawn aprendeu, desde cedo, a interpretar pistas e aguçar seu poder de dedução. E consegue ser detetive ao alegar que tem poderes sobrenaturais.
O ator conta, em entrevista por telefone ao Estado, que nunca ouviu protestos de quem acredita em sensitividade. ‘Acredito que estou dando aos charlatões uma grande publicidade’, fala. Para interpretar o papel, Roday encontrou algumas pessoas que acreditam ter poderes. ‘Estava interessado nos trejeitos que teria de ter se fosse psíquico e queria ter uma idéia do que acontece com essas pessoas fisicamente quando têm uma visão’, comenta. ‘Será que a temperatura do corpo aumenta? O que sentem no corpo?’
Parapsicologia
‘Fantasmas não existem’, afirma o padre Oscar Quevedo, no seu sotaque inconfundível. ‘Não há espíritos mortos. Existem pessoas vivas e pessoas ressuscitadas.’ Padre Quevedo ficou conhecido ao participar de um quadro no Fantástico. Segundo o religioso, não há aparição após a ascensão, que ocorre cerca de 20 dias após a morte clínica. ‘O que as pessoas têm são visões. E elas vêem o que querem.’ Quando questionado sobre a cena de Páginas da Vida em que Nanda bota fogo na casa de Helena, padre Quevedo tem a resposta na ponta da língua. ‘Isso é pirogênese, faculdade que ninguém explica.’
O padre conta que algumas pessoas têm o poder de colocar fogo e de movimentar objetos quando estão a menos de 50 metros do alvo. ‘Plenamente equilibrado, ninguém manifesta esse tipo de fenômeno parapsicológico. Dou R$ 50 mil para quem conseguir isso a mais de 50 metros de distância.’ Ou seja, segundo a parapsicologia, a própria Helena, completamente desequilibrada com a possibilidade de perder a guarda de Clara, ateou fogo em seu pano de prato.
Quanto aos sonhos premonitórios, o religioso faz uma metáfora em que o inconsciente são as estrelas e o consciente é o sol. ‘Não é porque as estrelas não aparecem durante o dia que elas não existem. O inconsciente está sempre aí, mas não se manifesta.’ Padre Quevedo afirma ainda que ninguém consegue dominar o inconsciente. ‘Há adivinhos que cobram R$ 200 por uma consulta. Se ele é bom mesmo, porque não adivinha a seqüência dos números da Mega Sena?’
Leila Reis
Tributo à boa MPB
‘A música de qualidade, por muito tempo uma ilustre ausente na programação da TV, vem impregnando o vídeo há alguns meses. Na última semana, chegou em avalanche. Nas Páginas da Vida (viradas ao som da bossa nova desde a estréia), o gênero que internacionalizou da MPB vem crescendo dentro da trama a ponto de protagonizar um capítulo.
A semana começou com a freirinha cantora Zenaide (Selma Reis) gastando quase todo seu repertório na festa de aniversário do Dr. Diogo, personagem de Marcos Paulo. Na quinta-feira, Manoel Carlos inaugurou a Sala Maestro Tom Jobim na casa de cultura Ama (um dos principais ambientes em que se desenrola a trama) com um show que teve a participação do filho e do neto de Tom. Para valorizar a cena, o autor sentou quase todo o elenco na platéia do capítulo-homenagem ao artista que completaria 80 anos na data.
Hoje, quando os Big Brothers saírem do ar, vai ao ar Tom Jobim – Eu Sei que vou te amar, montado em cima do vasto material produzido pela Globo – entre eles, festivais, o hit parade Globo de Ouro, e uma infinidade de especiais de fim de ano. Guardadas as devidas proporções, não deverá ser muito diferente da homenagem feita pela TV Cultura, na noite de quarta-feira.
O Especial Tom Jobim: As nascentes, foi gravado por Fernando Faro em 1993, na casa de Tom no Jardim Botânico, no Rio de Janeiro. Com poucas inserções de material de arquivo – Elis canta Águas de Março (20 anos antes) e Tom faz dueto com Frank Sinatra em Garota de Ipanema (1967) – o programa é um Ensaio (série dirigida por Faro há décadas) fora do habitual ambiente de estúdio. A marca de Fernando Faro é ostensiva.
Tom, estimulado por perguntas que o público não ouve, vai desfiando o novelo de sua história, enquanto a câmera pula de close em close, focalizando detalhes do entrevistado: mãos, testa, boca, perfil, charuto, braço etc. de vários ângulos.
O especial traz Tom, pouco mais de um ano antes de sua morte, relembrando sua infância, parceiros, a admiração por artistas que o antecederam e os que vieram depois, tocando, cantando… O programa é um standard do comportamento da televisão quando o assunto é Jobim. O chato é o mergulho em uma certa espécie de ‘poesia ecológica’, recorrente cada vez que os biógrafos televisivos de Tom resolvem trabalhar.
Mas há vantagens. Fazer desse jeito – fazer poesia e privilegiar a versão do artista sobre sua trajetória – é uma maneira de evitar problemas. Problemas que a Globo conheceu recentemente ao homenagear Elis, em Elis Regina – Por toda minha vida.
Depois do especial ter ido ao ar, a emissora foi acusada por João Jardim, que dividiu a direção do programa com Ricardo Waddington, de interferir no conteúdo do programa, impedindo-o de tratar das circunstâncias da morte da artista (por overdose de cocaína). Mas não foi só essa (diríamos) desavença que marcou o tributo a Elis, por ocasião dos 25 anos de sua morte. O recurso da dramatização do começo da carreira da cantora (interpretada por Bianca Comparato na adolescência e por Hermila Guedes, na fase adulta) foi uma inovação, mas fez do programa telhado de vidro.
Os mais ortodoxos comparam a dramatização às simulações utilizadas no policialesco Linha Direta, outros reclamaram da ausência de figuras importantes na vida da cantora e por aí foi… Qualquer coisa que envolve fã, paixão, nunca é unanimidade. A polêmica faz parte.
O importante é que, bem ou mal, o telespectador mais exigente tem podido entrar em contato com o talento nacional e música de qualidade, não só com a misturança promovidas pelos programas de auditório (Calipso, sertanejos e pagadeiros) e shows armados para Ivete Sangalo posar de showoman.’
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