MÍDIA & POLÍTICA
Campanha já está na internet
‘Proibida pela Justiça Eleitoral no mundo real, a campanha para a Presidência da República de 2010 transcorre livremente na internet. Graças à ajuda de simpatizantes, os principais pré-candidatos ao Palácio do Planalto já são tema de blogs, comunidades e mensagens trocadas na rede mundial de computadores. Isso tudo a mais de um ano do início do prazo legal para que as campanhas sejam efetivamente colocadas na rua.
Partidos negam qualquer responsabilidade por slogans que se multiplicam na rede. Na prática, a ordem é não criar obstáculos, já que a manifestação de simpatizantes é liberada. O que a Justiça veda é o uso disso por partidos e candidatos.
Dessa forma, a chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff (PT), já tem pelo menos seis blogs em apoio a sua candidatura. Ela supera os dois pré-candidatos do PSDB, os governadores José Serra, de São Paulo, e Aécio Neves, de Minas Gerais. Cada um deles é tema de quatro blogs.
Serra é campeão de registros no site de relacionamento Orkut, servindo de tema para 139 comunidades. Destas, 35 têm por objetivo atacá-lo. Já Dilma conta com 63 comunidades, sendo 11 contrárias a sua candidatura. E Aécio aparece em 111, 18 contra ele.
Serra também lidera a audiência na rede social Twitter, que virou febre ao permitir a troca de mensagens rápidas numa espécie de miniblog criado para cada usuário. Apesar de haver apenas 9 registros com seu nome, contra 15 de Dilma, o tucano atrai quase 12 mil seguidores – pessoas que acompanham em tempo real todas as mensagens postadas por um usuário. Nos registros em apoio à petista, há menos de 1.000 seguidores. Já Aécio tem 500 seguidores para dois registros.
O sucesso de Serra deve-se, em grande parte, ao fato de ele próprio ser o autor das mensagens postadas com o login joseserra_. Desde 18 de maio, quando foi criado, até ontem, seu miniblog tinha quase 7 mil seguidores. O governador nega qualquer interesse político-eleitoral. Política é assunto proibido no blog. Em resposta a um de seus seguidores, Serra mandou um recado. ‘Política, não, @ca_freitas’, twittou.
AUTORES
Tanto no lado petista quanto no tucano, o apoio virtual vem de longa data. O movimento pró-Serra na rede começou em 2007 com um blog ativo até hoje. O de maior popularidade, entretanto, é o mantido pelo Movimento Eu Quero Serra Presidente. De iniciativa de jovens ligados à Juventude do PSDB e DEM, ele existe desde janeiro.
Em 2008, o servidor Daniel Bezerra, que trabalha no governo do Ceará, criou o Blog da Dilma. Hoje, cinco pessoas atualizam diariamente a página. ‘Mas ninguém recebe nada por isso’, garante o editor, que usa o codinome Daniel Pearl, em homenagem ao jornalista americano sequestrado e morto no Paquistão. Bezerra já conversou em mais de uma ocasião sobre o blog com o presidente do PT cearense, José Ilário Gonçalves Marques. ‘Ele disse que o partido não iria ajudar, nem atrapalhar.’ Ilário diz que Bezerra lhe pediu ajuda financeira e promocional, mas garantiu que a resposta foi negativa. Ainda assim, o blogueiro levantou R$ 10 mil para pagar adesivos com o slogan Dilma Presidente. ‘Fizemos uma vaquinha’, diz.
Além de mensagens de apoio e publicidade aos atos de seus candidatos, alguns sites realizam enquetes. Em uma das páginas em apoio a Aécio, a pergunta colocada é ‘Quem deve ser o candidato a presidente do PSDB (Aécio ou Serra)?’. Um outro pergunta: ‘Quem deve ser o vice de José Serra ?’.
Outro site em apoio ao mineiro, o www.aecioneves2010.com.br, é mantido por uma equipe liderada pelo estudante Ronaldo Terra. A página é resultado de seu projeto final de graduação em marketing. ‘Aécio tem uma ?presença web? muito mal administrada’, criticou.
A suspeita de que esse tipo de movimentação tenha por trás os partidos é logo rechaçada por dirigentes do PT e do PSDB. ‘São iniciativas dos próprios internautas, que não têm nada a ver conosco’, afirma o secretário de Comunicação do PT, Gleber Naime. ‘Não podemos ter qualquer relação com isso. Mas acho que eles retratam a filosofia da internet. Aparecem, se desenvolvem espontaneamente’, diz o vice-presidente do PSDB nacional, Eduardo Jorge.
De qualquer forma, tucanos e petistas já se preparam para utilizar a internet na campanha do ano que vem. O PT torce por uma mudança nas regras de uso eleitoral da rede. Se for liberado, o plano é contratar um time especializado e estudar mecanismos de arrecadação online. ‘Vamos ter que contratar gente para fazer frente a essa guerrilha’, afirma Naime.
Já o PSDB montou um grupo de trabalho e vem estudando as ferramentas a serem exploradas na eleição. ‘O próprio Serra e o Aécio cobraram do partido uma presença mais forte na internet para divulgar as ações do partido. Não podemos ficar para trás’, diz o secretário-geral do PSDB, deputado Rodrigo de Castro (MG).’
Roberto Almeida
Resolução do TSE é o entrave
‘Uma resolução do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), editada pelo ministro Carlos Ayres Britto, é a baliza intransponível dos candidatos que almejam uma superexposição de campanha na internet nas eleições do ano que vem.
O texto, do dia 10 de setembro de 2008, avisa que ‘a propaganda eleitoral na internet somente será permitida na página do candidato destinada exclusivamente à campanha eleitoral e na do partido político’.
Ou seja, nada de Orkut oficial, Twitter oficial, Flickr oficial, entre outras ferramentas tão necessárias na visão dos marqueteiros políticos, que pensam em 2010 como um espelho da campanha de Barack Obama à Casa Branca. Obama twittou até o dia da vitória, seguido por milhões.
A esperança de alterar a legislação parte de uma iniciativa do deputado Flávio Dino (PC do B-MA), ele mesmo dono de um perfil oficial no Twitter. Dino reforça em seu miniblog a necessidade de uma reforma eleitoral – o que inclui mudanças nos entraves do mundo virtual.
De acordo com seu projeto, o uso da internet ficaria liberado para campanhas eleitorais. Candidatos e seus seguidores teriam a possibilidade de se manifestar em blogs, redes de relacionamento e outros aplicativos na internet.’
RADIODIFUSÃO
O Estado de S. Paulo
Rádios comunitárias serão proibidas
‘O município de Augustinópolis, no Tocantins, tem até o dia 9 de julho para cancelar todas as autorizações, permissões ou concessões de exploração de rádios comunitárias feitas com base na Lei 416/02 ou qualquer outra legislação local. A ordem foi dada, em liminar, pelo juiz federal Adelmar Aires Pimenta da Silva. A urgência se deve aos danos que podem ser causados a sistemas de comunicações e nas frequências legais permitidas.’
VENEZUELA
Entre a liberdade e Hugo Chávez
‘Um Encontro sobre Liberdade e Democracia realizado em Caracas em 28 e 29 de maio, que teria passado despercebido pelo grande público e confinado a um reduzido âmbito intelectual, converteu-se, graças ao governo de Hugo Chávez, num acontecimento internacional. Em boa hora, pois desse modo um amplo setor pôde se inteirar dos atropelos que se cometem diariamente na terra de Bolívar contra as liberdades civis e da coragem com que tantos venezuelanos se mobilizaram contra o governo estatista e totalitário que pretende converter este país numa segunda Cuba.
Uma centena de escritores, intelectuais, políticos e jornalistas foram a Caracas festejar os 25 anos do Cedice, um instituto defensor da cultura democrática e da economia livre, que, apesar das perseguições de que foi e continua sendo vítima, segue promovendo as ideias liberais em meio à frenética campanha centralizadora e coletivista de um dos governos mais anacrônicos do mundo ocidental.
É verdade que a Venezuela ainda não é uma Cuba porque ainda restam espaços para a empresa privada e a imprensa livre, mas estes estão se fechando cada dia mais. Tanto empresários privados quanto órgãos de imprensa independente trabalham submetidos a perseguições e ameaças e com a espada de Dâmocles do confisco, da expropriação e do fechamento sobre suas cabeças.
No entanto, a despeito dos julgamentos, multas e embaraços administrativos que os asfixiam, a inteireza com que continuam na briga é admirável. No dia em que inauguramos o encontro completavam-se dois anos do fechamento da Rádio Caracas Televisión (RCTV), após a épica batalha pela sobrevivência travada por seu proprietário, Marcel Granier, e as centenas de jornalistas e demais trabalhadores da empresa. Agora, o alvo do regime é o último canal independente em que a oposição pode se expressar: a Globovisión. Da mesma forma que na RCTV, os 400 jornalistas e trabalhadores da Globovisión cerraram fileiras na defesa de seu centro de trabalho e de sua dignidade.
Qual é a popularidade real de Chávez? Numa das exposições mais notáveis do Encontro, María Corina Machado, fundadora do Movimento Cívico Súmate, mostrou, com documentos irrefutáveis, que o regime chavista, sob a aparência desordenada e caótica, maneja um rolo compressor, inteligente e implacável, de intimidação e extorsão das consciências e do voto, que manipula e subjuga sobretudo os funcionários públicos, os pensionistas e os operários e trabalhadores eventuais, oferecendo-lhes segurança em seus empregos em troca de adesão política e fazendo-os crer que todos seus movimentos e palavras são vigiados de modo que, ante o menor desvio, a represália governamental se abaterá sobre eles como uma guilhotina, privando-os do trabalho, do salário ou da pensão.
A ofensiva contra o setor privado da economia é vertiginosa. Um terço dela já está nas mãos do Estado. Dois milhões de hectares foram expropriados para ser convertidos – segundo um termo copiado da ditadura militar peruana do general Velasco Alvarado – em empresas de ‘propriedade social’.
Foram igualmente estatizadas as empresas elétricas, a maioria das telecomunicações, indústrias de cimento, todas as empresas de serviços petrolíferos e todas as empresas mistas de exploração de petróleo, bem como siderúrgicas e incontáveis empresas médias e pequenas de distintos setores com pretextos diversos ou sem pretexto algum, mediante a mera prepotência. No âmbito financeiro, o Banco Santander foi a primeira vítima da estatização.
Ainda há eleições, mas se trata de uma operação de relações públicas, pois o governo ignora seus resultados e anula e persegue os opositores eleitos. Manuel Rosales, o ex-governador de Zulia e prefeito de Maracaibo, teve de se exilar no Peru. O prefeito de Caracas, Antonio Ledesma, foi privado de praticamente todas as atribuições importantes que eram responsabilidade da municipalidade.
É no campo sindical que o autoritarismo de Chávez encontrou maior resistência. Para tentar substituir a Central de Trabalhadores de Venezuela (CTV), Chávez criou a União Bolivariana de Trabalhadores, sindicato oficialista que, apesar do apoio escancarado do regime – e talvez por isso mesmo -, carece de legitimidade e filiados.
Dito tudo isso, e embora a resistência seja difícil contra um regime arrogante e sem escrúpulos, a batalha pela liberdade não está perdida na Venezuela. Uma das sessões mais emocionantes do encontro foi aquela em que os jovens prefeitos de Chacao, Sucre e Baruta – antes o havia feito o de Caracas -, expuseram como se arranjam.
Como não haveria esperança num país onde todas as universidades, privadas e públicas, rejeitam o projeto totalitário, e onde os estudantes estão na vanguarda das manifestações contra as pretensões de Chávez de converter a Venezuela numa Cuba ou Coreia do Norte? A revolução chavista é a primeira na história que nasceu órfã de ideias e de doutrinas e teve de se contentar apenas com slogans e lugares comuns porque em suas fileiras havia agitadores, mas não pensadores ou escritores dignos desse nome.
Revoluções como a russa, a chinesa e a cubana imantaram em seus primeiros anos de idealismo e imaginação de grandes criadores, cuja ingenuidade as embelezou e prestigiou: depois, eles pagariam caríssimo por seu erro e iriam para o gulag. Na Venezuela, porém, com exceções que se contam nos dedos, a classe intelectual mostrou, desde o primeiro momento, uma lucidez visionária.
Nos cinco dias que acabo de passar na Venezuela me senti animado como nos melhores dias de minha adolescência. Sempre fui grato a este belo país. Agora, eu o sou ainda mais, pela extraordinária lição de fidalguia que recebemos de venezuelanos indomáveis na defesa de sua liberdade.’
TELECOMUNICAÇÕES
Uma estatal inteirinha para ser aparelhada
‘Depois de vários anúncios e balões de ensaio lançados pelo segundo escalão, o governo federal emudeceu nas últimas semanas e se recusa a debater sua decisão de reativar a Telebrás. De repente, o projeto virou assunto proibido, embora seja importante demais para ser encaminhado como vem sendo, sem debate, sem participação do Congresso ou da opinião pública. Nos bastidores, entretanto, o governo acelera o passo. Prova disso é o pedido que o Executivo acaba de fazer à Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) para que devolva 50 funcionários da Telebrás cedidos ao órgão regulador.
Mesmo com uma máquina estatal inchada, ineficiente e cara, o governo federal prefere gastar milhões inutilmente ao reativar uma velha estatal, que deverá ter no mínimo 500 empregados, entre engenheiros, técnicos e administradores. Os primeiros recrutados são antigos empregados da Telebrás, que retornarão da Anatel, à qual foram cedidos em 1998. Poucos, entretanto, estarão preparados para conduzir uma empresa prestadora de serviços de telecomunicações – até porque a Telebrás nunca foi operadora, e, sim, uma holding que controlava 27 subsidiárias.
PASSADO VS. PRESENTE
Não há como estabelecer nenhum paralelo entre o desempenho histórico da Telebrás e o das empresas privadas que a sucederam. Examinemos apenas dois indicadores. Tudo que o Sistema Telebrás realizou ao longo de 26 anos (1972-1998) se resumiu em uma oferta de 24,5 milhões de telefones (entre fixos e celulares) ou a média nacional quase franciscana de 14 telefones por 100 habitantes.
Com a privatização, em apenas uma década, o Brasil passou a contar com 196,7 milhões de acessos, alcançando a densidade de 104 telefones por 100 habitantes. Por outras palavras, o Brasil tem hoje mais telefones do que gente.
A capacidade de investimento do governo brasileiro em infraestrutura continua sendo muito baixa e, portanto, está muito aquém das necessidades de um setor como o de telecomunicações.
RAZÕES INCONSISTENTES
Diante da imensa oferta de serviços, de tecnologia moderna e de infraestrutura, é fácil concluir, portanto, que o País não precisa de nenhuma estatal de telecomunicações, pois, contrariamente a todos os argumentos do governo, a reativação da Telebrás não vai ‘proporcionar maior economia ao setor público’, nem ‘conferir maior segurança aos serviços de telecomunicações governamentais’.
E não há também nenhum sentido prático em atribuir à Telebrás a missão de liderar o projeto de inclusão digital, pois existem soluções muito mais econômicas e eficazes do que transformar essa estatal em ‘gestora de uma rede nacional de banda larga, com o objetivo de levar o acesso à internet rápida a todo o País’.
Outro objetivo alegado para a recriação da Telebrás seria operar um satélite geoestacionário estatal brasileiro e com ele atender às necessidades de telecomunicações governamentais e aeronáuticas. Equívoco total, pois nessa área o País conta com 42 satélites de telecomunicações autorizados a operar no território nacional, sendo quatro da Embratel, preparados inclusive para comunicações militares com a Banda-X.
Nessa altura, o governo federal parece ter desistido do último objetivo, que era o de operar a rede de 16 mil quilômetros de cabos de fibra óptica da falida Eletronet, estatal formada pela Eletrobrás e a AES Bandeirante, cujo passivo já supera os R$ 600 milhões.
Como se vê, não há nenhuma necessidade estratégica ou econômica que justifique a recriação da estatal, a não ser o apetite de velhas raposas partidárias em ampliar o aparelhamento do Estado e reforçar sua campanha eleitoral de 2010. Com todo o risco de corrupção.
SÓCIO QUE NÃO INVESTE
Mesmo sem nada investir no setor de telecomunicações nos últimos 11 anos, o governo se transformou no maior sócio do setor. Basta lembrar que, depois de privatizadas, as telecomunicações se transformaram em verdadeira mina de ouro para a União e os Estados, ao recolherem anualmente mais de R$ 40 bilhões de impostos, com alíquotas que chegam a quase 50% sobre o valor tarifas. Nenhum país do mundo cobra tanto imposto sobre telecomunicações. Um verdadeiro escândalo.
A voracidade estatal parece não ter limites. Além dos R$ 40 bilhões de tributos pagos pelos usuários, a União arrecada mais três fundos no setor: o Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações (Fust), o Fundo de Fiscalização sobre Serviços de Telecomunicações (Fistel) e o Fundo de Tecnologia de Telecomunicações (Funttel).
Tomemos o exemplo do Fust. A arrecadação acumulada e não utilizada desse fundo deverá alcançar dentro de alguns meses a impressionante soma de R$ 10 bilhões. Em lugar de investir esses recursos para levar serviços de telecomunicações às áreas mais pobres, como determina a lei, o governo simplesmente os confisca, exatamente como faz com 75% dos R$ 2 bilhões do Fistel arrecadados a cada ano. Essa é a ética do Estado brasileiro, não apenas em telecomunicações, mas como tem sido há décadas em tantas outras áreas. Remember precatórios.’
MEMÓRIA / OS SERTÕES
Euclides da Cunha
Canudos
‘Finalmente chegamos, às nove horas da manhã, à nossa base de operações, depois de duas horas de marcha.
Ninguém pode imaginar o que é Monte Santo a três quilômetros de distância. Ereta num ligeiro socalco, ao pé da majestosa montanha, a povoação, poucos metros a cavaleiro sobre os tabuleiros extensos que se estendem ao norte, está numa situação admirável. Não conheço nenhuma de aspecto mais pitoresco que o deste arraial humilde, perdido no seio dos sertões. O viajante exausto, esmagado pelo cansaço e pelas saudades, sente um desafogo imenso ao avistá-lo, depois de galgar a última ondulação do solo, com as suas casas brancas e pequenas, caindo por um plano de inclinação insensível até à planície vastíssima.
Na montanha, a um lado, ressalta logo à vista um quadro interessante e novo.
Galgando-a, primeiro numa direção, depois noutra, em zigue-zague, até vingar a encosta e subindo depois pelo espigão afora até a ponta culminante da serra, aprumam-se vinte e quatro capelas, alvíssimas, destacando-se nitidamente num fundo pardo e requeimado de terreno áspero e estéril.
Não me demorarei, porém, neste assunto, do qual tratarei com mais vagar.
Quando entramos, formavam na praça 1.900 homens sob o comando do coronel César Sampaio. À frente dos batalhões paraenses avultava o coronel Sotero de Menezes – um chefe e um soldado como há poucos. Divisei logo, à frente do Batalhão do Amazonas, um digno companheiro dos velhos tempos entusiastas da propaganda, Cândido Mariano, contemporâneo de escola.
Houve um entusiasmo sincero e ruidoso quando, num movimento único, as 1.900 baionetas, num cintilar vivíssimo, desceram rápidas dos ombros dos soldados, aprumando-se na continência aos generais – numa ondulação luminosa, imensa.
Atravessamos, a galope, pela frente das tropas e paramos afinal diante do único sobrado, nobilitado com o título pomposo de quartel-general.
Apeei-me imediatamente e achei-me entre antigos companheiros, de há muito ausentes. Que diferença extraordinária em todos!
Domingos Leite, um belo tipo de flâneur, folgazão nos bons tempos da escola (…), abraçou-me e não o conheci. Vi um homem estranho, de barba inculta e crescida, rosto pálido e tostado, voz áspera, vestindo bombachas enormes, coberto de largo chapéu desabado. Está aqui desde a Expedição Moreira César.(…).
Como se muda nestas paragens!
Gustavo Guabiru, outro engenheiro militar, foi uma vez encontrado por um contingente da força policial da Bahia em tal estado que foi preso como jagunço E não teve meios de convencer aos soldados do engano em que haviam caído. (…)
O capitão Souza Franco, um dos nossos melhores oficiais de cavalaria, transmudou-se num velho inútil e combalido.
Parece que esta natureza selvagem vai em todos imprimindo uma feição diversa.
O major Martiniano, comandante da praça, (…) substituiu o antigo cavanhaque negro por uma barba branca. Está velho; está aqui há poucos meses.
A cor muda revestindo-se de tons ásperos de bronze velho; como que mirram as carnes e os ossos incham; rapazes elegantes transformam-se rapidamente em atletas desengonçados e rígidos…
Quase que se vai tornando indispensável a criação de um verbo para caracterizar o fenômeno. O verbo ‘ajagunçar-se’, por exemplo. Há transformações completas e rápidas. O representante da Notícia, Alfredo Silva, assombrou-me: está num descambar irresistível para o tipo geral predominante – barba crescida, chapelão de palha, paletó de brim de cor inclassificável, bombachas monstruosas.
E cada um anda por aqui perfeitamente à vontade. Monte Santo é como uma única casa, imensa e mal dividida, com inúmeros cubículos, de uma só família de soldados.
Nada ainda poderei adiantar sobre a situação.
As informações que hoje obtive são pouco animadoras. Falo baseado no critério seguro de colegas que lá estão há meses (…).
Imaginem que, enquanto o Exército lhes ocupa grande parte de casas e os fulmina cotidianamente (…), os fanáticos distribuem (…) a atividade, revezando-se, da linha de fogo para o campo onde cultivam mandiocas, feijão e milho! (…)
Ora, esse assédio platônico que fazemos parece que não perderá tal feição ainda quando cheguem a Canudos todas as forças com um efetivo de pouco mais de 8 mil homens. Os meus colegas que ali andam, há meses, de bússola e aneróide em punho, garantem-me que o cerco regular exige um mínimo de 25 mil homens. (…)
Resta o recurso de um assalto impetuoso, rápido e firmemente sustentado; não há outro.
O ataque será fatalmente mortífero. Basta examinar-se uma planta do imenso arraial. Canudos está militarmente construído e uma estampa que por aí anda nada traduz, absolutamente, da sua feição característica. (…).
As dificuldades de transportes de munições de guerra e de boca podem, em parte, ser debeladas. Há tropeços, porém, irremediáveis, absolutamente insanáveis, e entre estes (…), a sede; sede devoradora e inextinguível que tem torturado a todos os combatentes. (…)
Se as chuvas sobrevierem, desaparecerão estes inconvenientes, mas surgirão outros.
Imaginemos um só.
O Vaza-Barris, avolumando-se desmedidamente, cortará de todo as comunicações entre o Exército sitiante e a base de operações. (…)
Não exagero perigos; mas o otimismo seria um crime nesta quadra. Além disto a maioria republicana da nossa terra precisa conhecer toda a verdade desta situação dolorosa, pela voz ao menos sincera dos que aqui estão prontos para compartirem do sacrifício nobilitador pela República.
Não sabemos ainda se o marechal Bittencourt irá até Canudos; se esta resolução for tomada revestirei a minha incapacidade física com a minha capacidade moral e não abandonarei os dedicados companheiros.
Amanhã continuarei estas notas que, com certeza, aí vão chegar com grandes intervalos, porque o serviço de correios aqui é péssimo e moroso.
Nota da Redação: A grafia deste texto foi atualizada segundo as regras do Novo Acordo Ortográfico. Foram preservadas, no entanto, a pontuação e as construções sintáticas originais do autor, a fim de não alterar seu estilo.’
Walnice Nogueira Galvão
A chegada ao perímetro de hostilidades
‘A etapa preliminar da viagem foi vencida e eis Euclides penetrando no perímetro das hostilidades. O alívio daquele que permanecera a contragosto três semanas em Salvador é palpável. É na pequena cidade de Monte Santo, não atingida diretamente pela conflagração, que o ministro da Guerra, marechal Machado Bittencourt, planejara desde o início implantar sua base de operações. Ali funcionará seu quartel-general.
Em Monte Santo encontra-se o majestoso calvário de 3 km de extensão, com suas 24 capelinhas caiadas ladeira acima até a igreja de Nossa Senhora das Dores, erigido pela piedade da gente do sertão sob a liderança do capuchinho Frei Apolônio de Todi, em 1775. Antonio Conselheiro o galgara, Euclides da Cunha seguirá seus passos. Mais tarde Glauber Rocha ali filmaria um episódio de Deus e o Diabo na Terra do Sol, em que vemos os romeiros subindo de joelhos a escadaria. Embora não corroborada, reza a tradição que o Conselheiro, entre suas numerosas obras, reforçara o muro de arrimo da via sacra.
A jornada seria longa. Após tomar o trem na estação da Calçada, em Salvador, a 30 de agosto, juntamente com a comitiva do ministro, de que era membro, Euclides enviara correspondências datadas de Alagoinhas (31 de agosto) e Queimadas (1º, 2, 3 e 4 de setembro). Neste último povoado apeou do trem, que prosseguia para oeste quando agora seu rumo era o norte, e cavalgou até Tanquinho (4 de setembro), Cansanção (5 de setembro) e Quirinquinquá (ainda no mesmo 5 de setembro). No dia seguinte chegaria a Monte Santo. Levaria ainda dez dias para finalmente pisar em Canudos.
Esta correspondência fala dos arredores e das características que o sertão ali assume. Detém-se mais nos prognósticos da campanha, alvitrando que uma tropa com efetivo bem maior viria a calhar. Dedica-se a sondar o que sabem os militares, e particularmente seus colegas engenheiros, cujas impressões e dúvidas compartilha.’
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