Sunday, 17 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

O Fantástico e a adolescência entediada

Uma vez mais, o programa Fantástico (TV Globo) fez chamada para um tema que, ao ser exibido, revelou o alto teor de suas habituais características: a superficialidade e a acriticidade.

Na edição que foi ao ar no domingo (23/11), um dos destaques dizia respeito ao perfil de uma ‘adolescência entediada’. No transcorrer do programa, eis que a matéria anunciada vinha num bloco no qual, antes, figurava o ‘ônibus da menina do Fantástico‘, ou seja, mais uma ‘pesquisa nacional’ à procura de novas ‘ninfetas’ (ou ‘lolitas’) que, cultura pedófila à parte, adiante, possam ‘embelezar’ algum programa da emissora, seja em novelas, seja em outras edições de BBB. Após a tal matéria (‘adolescência entediada’), veio, sob a condução de Regina Casé, pequena reportagem para demonstrar como as comunidades da periferia estão sendo integradas pelas novas tecnologias da informação e da imagem.

A condição de titular, há décadas, de um campo que aborda as relações entre ‘linguagens impressa e audiovisual’ me confere a percepção clara quanto à sintaxe na qual se reuniram, por ‘lógica de edição e montagem’, o encadeamento das três matérias.

Nivelando o padrão

Primeiramente, a emissora não acusa nenhuma perturbação ética por, ao longo do país, inocular em centenas (ou milhares) de adolescentes a expectativa de cada ‘jovenzinha’ sonhar com a seleção entre as mais ‘belas’ e ‘sedutoras’. Ao final do bloco, a mesma emissora também não registra nenhum desconforto ante o fato de que comunidades carentes sejam ‘alimentadas’ por ‘telas’, em prejuízo de uma educação formal que não pode prescindir do conhecimento da ‘cultura letrada’.

Entre as duas pontas do bloco, constava, pois, o tema da ‘adolescência entediada’. Assim é que, na série de ‘reportagens’, sob a rubrica de ‘neurológica’, a ‘neurocientista’ (Suzane Herculano-Houzel) foi abrindo os ‘capítulos’ atinentes ao tema.

Afora o fato de que, na condição de ‘neurocientista’, nada foi dito diferentemente de uma grosseira generalização, sequer a ‘neurocientista’ entrou no mérito de aspectos particulares da vida contemporânea na qual se percebem altos índices de ‘adolescentes entediados e melancólicos’. A ‘neurocientista’ se ateve ao axioma ‘atemporal’ e ‘aespacial’ cujo fundamento, para todas as épocas, seria o mesmo: na adolescência, o cérebro sofre alterações quanto ao binômio ‘recompensa / compensação’. Com esse argumento simplório, ela nivelou o padrão ‘adolescência’ para todos os lugares e todas as épocas de nossa civilização. A análise é, simplesmente, ‘fantástica’.

Tratamento sofrível

Com o intuito de colaborar para a pobreza de tratamento da questão-tema prometida, em rede nacional, pelo Fantástico, algumas considerações precisam ser firmadas. Se a ‘neurocientista’, em algum momento de sua formação profissional, pôde ler qualquer publicação de Derrick de Kerckhove (assistente e, em seguida, sucessor de Marshall MacLuhan), principalmente em tais escritos:

** A pele da cultura: uma reflexão sobre a nova realidade eletrônica;

** ‘Arquitetura da inteligência: interfaces do corpo, da mente e do mundo’. Está na obra Arte e vida no século XXI: tecnologia, ciência e criatividade, organizada por Diana Domingues;

** em outro escrito do autor: ‘A realidade virtual pode mudar a vida?’, constante num volume compilado pela mesma organizadora de A arte no século XXI: a humanização das tecnologias.

Tais referências terão ocupado as preocupações crítico-reflexivas da ‘neurocentista’ e do editor do Fantástico? A julgar pelo resultado final do que foi ao ar, sou levado a crer que as esclarecedoras advertências do teórico passaram ao longe. Caso contrário, o programa, com expressivo nível de audiência, não ofereceria, ao público, um tratamento tão sofrível.

A anestesia das imagens

Outras vozes teóricas, ao longo dos tempos, se somam às reflexões de Kerckhove, a exemplo de Umberto Eco, Noam Chomsky, Paul Virilio, Edgar Morin, Jean Baudrillard, Philippe Dubois, André Matellart, André Comte-Sponville, Muniz Sodré, entre outros, na tentativa de um alerta quanto às deformações que podem ser geradas, nos potenciais criativos de uma geração, em função do acúmulo de invasão de telas.

A ‘neurocientista’ do Fantástico parece que ainda não avaliou as transformações pelas quais um ‘cérebro adolescente’ passa em razão da avalanche de desconexos estímulos audiovisuais diários. Ela optou pelo ‘perfil-padrão’: o adolescente, pela sua nova fase na vida, desenvolve uma dimensão subjetiva, assinalada pelo ‘tédio’. Em nenhum momento ela leva em consideração que o acúmulo de imagens, sem contextualização, pode levar um cérebro a um ‘estado de inércia’. Ela ignora que a pletora de imagens e informações variadas é capaz de gerar, subjetivamente, o estado de entorpecimento, equivalente àquele produzido, quimicamente, pela ação das drogas.

Em síntese, o programa Fantástico, de modo não menos ‘fantástico’, valendo-se do ‘referendo científico’ de uma profissional, induz o público-receptor a considerar que o presente modelo cultural (‘refeições audiovisuais’), em plena vigência no país, nada tem a ver com o aumento de adolescentes portadores de sintomas associados a ‘passividade’, ‘melancolia’, ‘frustração’, ‘vacuidade’, ‘tédio’, ‘indiferença’ e, para quem quiser pensar, em crescente demanda no uso de drogas.

Para a TV Globo (e suas respectivas parcerias), a culpa por quaisquer desvios de comportamento compete, exclusivamente, aos executores de atos considerados, por todo e qualquer cidadão de bem, como abomináveis. Até quando cidadãos de bem aceitarão a tese de que os estímulos diários, sob a codificação de telas, telinhas e telões, nada têm a ver com distúrbios cognitivo-perceptivo-comportamentais? Para quem, sobre o assunto, tende a emitir considerações desconfiadas, primeiramente trate de ler alguns escritos de teóricos cuja reflexão pautou sobre a influência das ‘novas tecnologias’ sobre o comportamento da atual geração.

Para os leitores menos afeitos à idéia das ameaças virtuais, sugerimos pensarem entre a simplória diferença entre ‘imaginário’ e ‘imaginação’. Para tanto, há um fundamento que não deve ser desprezado: o ‘imaginário’ é sempre aquele codificado pelo ‘outro’; a ‘imaginação’ é sempre uma construção do ‘eu’. Será que essa óbvia distinção serve para iniciar-se outra concepção acerca de como o atual mundo se apresenta à consciência do ser mais jovem?

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Ensaísta, articulista, doutor em Teoria Literária pela UFRJ, professor titular de Linguagem Impressa e Audiovisual da Facha (Rio de Janeiro)