Notícia boa não vende, eis a premissa mais elementar do jornalismo. Não é à toa que as páginas policiais, juntamente com as de esportes – não obstante a discriminação no próprio meio –, continuam sendo as mais procuradas nos jornais. Com as quais, é bem verdade, os sucessivos e cabeludos escândalos políticos passaram a rivalizar nos últimos anos.
O problema é que se notícia boa não vende, notícia ruim em excesso acaba saturando ou, pior ainda, contribuindo para a banalização dos fatos negativos e o conseqüente entorpecimento da sociedade. Fenômeno por sinal compatível com a expansão desenfreada dos meios de comunicação na última década e que vem possibilitando a ampliação em escala geométrica do universo que compõe a chamada opinião pública. Expansão, em todo caso, iminentemente quantitativa, o que não deixa de ser contraproducente no sentido de que a pedra de toque da interatividade, proporcionada pela internet, abriga toda sorte de charlatanice e engodo.
É, pois, sob esta ótica caolha que se forjam os conceitos e paradigmas que regem nossa sociedade. Amálgama que encerra posições políticas e comportamentais que tendem à permissividade e à complacência e que resultam num círculo vicioso que se locupleta com a impunidade. Sintoma emblemático disso é o cacoete desenvolvido na era lulista de desviar o foco das reincidentes anomalias governamentais para uma presumível perseguição da imprensa, mesmo quando as falcatruas eclodem espontaneamente, como no caso dos cartões corporativos, cujos abusos constam no portal criado pelo próprio governo para dar mais transparência aos gastos oficiais.
Curiosa parcimônia
Como de fato é mesmo (sorry, periferia), toda e qualquer iniciativa no sentido de conferir visibilidade às contas públicas é sempre louvável e é exatamente isto que livra ao menos parcialmente a cara do governo nesse tunga dos cartões. Embora, é claro, tenha pecado por não estabelecer regras rígidas para os gastos e sua respectiva fiscalização, deixando a coisa correr a critério dos usuários, liberalidade que encorajou ministros e entidades respeitáveis, como a UnB, a esbanjar recursos públicos como se isso fosse inerente ao cargo. O que nos leva a pensar em quantos outros casos semelhantes, e talvez ainda mais escabrosos, ainda estão por serem desvendados, se é que um dia o serão.
Sim, porque pelo menos no que tange às despesas presidenciais, o próprio Judiciário reluta em derrubar o segredo que por lei protege os gastos pessoais das famílias presidenciais, sob a duvidosa alegação de tratar-se de uma questão de segurança de Estado. Pode ser, mas a impressão que fica é que o motivo maior da proibição é preservar a presidência do constrangimento de uma prestação de contas provavelmente pouco austera, considerando que os gastos chegaram à bagatela de R$ 3,7 milhões no ano passado.Se é que não vão dizer que regular as despesas pessoais de quem ganha tão pouco é mesquinharia.
Pelo sim, pelo não, é só isso que parece capaz de colocar lenha numa fogueira que aos poucos a própria imprensa vai deixando apagar, em parte por preguiça de pesquisar as fontes disponíveis mais a fundo, em parte pela percepção de que uma revisão em contas de gestões passadas também seria inevitável, caso algo de comprometedor deixasse o atual governo acuado. Daí a própria parcimônia com que a mídia trata dos R$ 106 milhões gastos em 2007 pelo governo tucano em São Paulo e cuja prestação de contas está longe do detalhamento das despesas federais.
Processos em cascata
Vai daí que, entre mortos e feridos, o saldo desse novo caso de malversação de recursos públicos não deverá custar mais do que meia dúzia de cabeças e muito menos afetar o prestígio do governo, que, por mais paradoxal que pareça, segundo a pesquisa recém-divulgada pela Sensus, passou incólume pela série de turbulências dos últimos meses. Aliás, não só incólume como chegou à melhor marca desde 2003, com 66,8% de aprovação para o desempenho pessoal do presidente. Sinal de que será preciso bem mais do que simples escândalos de algibeira para abalar o prestígio de um governo que só não está melhor ainda nas paradas pelo fato de, no fundo, estar meramente fazendo a lição de casa.
Em suma, nada muito diferente da linha traçado por seu antecessor, até nos defeitos, como, aliás, observou um dos favoritos para a sucessão de Lula – e por isso mesmo insuspeito –, Ciro Gomes, que em recente entrevista à Folha de S.Paulo apontou o caráter essencialmente patrimonialista como característica em comum dos dois últimos governos.
De modo que, se a exemplo das cartas, os números não mentem, há que se ponderar que talvez o eleitorado de Lula seja mais sábio do que se supunha, por saber dar o devido desconto a um governo que, apesar dos pesares, tem conseguido manter o país no prumo em função de uma estabilidade econômica que até defenestrou o FMI, algo impensável até pouco tempo. Percepção que não deixa de desanuviar o ambiente até outro dia preocupante, fruto das incertezas geradas pela crise norte-americana e o mal-estar da farra dos cartões corporativos, a ponto de arrancar do presidente elogios à sobriedade com que a mídia tratou deste novo escândalo que emerge sob seu governo.
Elogios que ironicamente coincidiram com o apuro – quiçá um pouco de feitiço virando contra o feiticeiro – que três dos quatro baluartes de nossa imprensa estão passando com demandas que prometem ainda dar muito o que falar, com a Folha de S.Paulo e um dos filhotes do Globo, o matutino Agora, às voltas os processos em cascata desfechados por adeptos da Igreja Universal; e a revista Veja com sua reputação posta em xeque pelas graves denúncias que o jornalista Luis Nassif vem apresentando em seu blog. Quizumbas nas quais este modesto observador não se sente em condições de tomar partido, embora repudie a clara tentativa de coerção à liberdade de imprensa que permeia uma mobilização que tenciona manipular o próprio judiciário.
Se a moda pega…
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Em tempo: Já tinha redigido o presente artigo quando saiu a liminar do ministro Ayres revogando alguns dos entulhos da Lei de Imprensa, o que não deixa de representar uma oportuna resposta da Justiça aos setores mais obscurantistas da sociedade, acima caracterizados.
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Jornalista, Santos, SP