A caminho de casa fico sabendo, pelo Twitter, da morte do Geraldo Mayrink, na quinta-feira (27/8). Mayrink foi um dos grandes textos da imprensa brasileira. Quando entrei na Veja, foquíssimo, em setembro de 1970, a revista já tinha se embrenhado em um texto rococó terrível, com uma adjetivação pesada praticada por quase todos os redatores e editores.
Havia quatro textos que escapavam do estilão: do Geraldo, do Tão Gomes Pinto, do Renato Pompeu e do Elio Gaspari. Geraldo era o mais admirado. Crítico de cinema, conseguia produzir análises saborosíssimas, recheadas de ironia, no espaço exíguo de uma revista semanal. Suas imagens, como por exemplo do ator ‘expressivo como um helicóptero’, e outras do gênero, eram motivo de diversão e de admiração geral.
E ele sempre com aquele jeito pacatão, nenhum deslumbramento, sabendo rir de si próprio, quando dizíamos que ele era clone de Dolores Del Rio, atriz de faroeste meio queixuda, que nem ele.
Lembro-me nitidamente de uma tarde na Veja, uma roda se formando em torno do Mayrink. Cada frase dele era celebrada com risadas superiores de colegas que lançavam olhares cúmplices como que dizendo, essa ironia, eu captei.
Eu estava recém-chegado de Minas, o Geraldão Hasse – outro belíssimo texto mas, naqueles tempos, apenas um pouco menos foca que eu – chegado de Porto Alegre. Veja era um deslumbramento só. Sob o comando do Mino Carta, a revista explodira. Ser da Veja, na época, representava o mesmo que, anos depois, representaria ser da Globo – lembrando o Bozó, personagem do Chico Anísio.
Suprema gozação
Enquanto os colegas riam das ironias do Mayrink, o Hasse e eu trocávamos ideias. Não tínhamos identificado nenhuma ironia em determinada frase, para que provocasse tantas leituras e risadas dos colegas. Esperamos a roda se desfazer e fomos passar a limpo nossa suspeita.
– Mayrink, o que você quis dizer com aquela frase, que todo mundo riu.
E ele, com aquele ar de boi sonso, mas só cara, porque espirrava ironia por todos os poros:
– Uai, não quis dizer nada. Também não sei por que eles riram.
Quando se tornou editor de Artes e Espetáculos, quase me transformou em crítico de Artes da revista. Em São Paulo houve a exposição de um futurista italiano e, repórter alocado na editoria de Artes e Espetáculos – mas só para matérias de música – fui incumbido de cobrir a mostra.
Fui para o Dedoc (o Departamento de Documentação da Abril), passei uma tarde lendo livros de artes e assimilando o linguajar e os tics dos críticos. Voltei com um texto em que reproduzia o padrão dos críticos.
Mino gostou tanto que chamou o Geraldo na sua sala e disse que tinham finalmente descoberto quem poderia preencher o cargo de crítico de Artes. Mayrink veio falar comigo com um ar de suprema gozação. Ele tinha captado meu estratagema. Passamos uma hora discutindo como escapar daquela enrascada. Acabamos concluindo que a única maneira seria admitir, ao Mino, que eu não entendia nadica de nada de artes plásticas.
Velhos amigos
Mayrink não era apenas o grande texto da Veja. Era também o grande caráter. Na greve de 1979, três editores foram à assembléia, no Sindicato, com falsa pose de vítimas. Diziam que editor tinha cargo de confiança. Se a redação quisesse, eles também fariam greve. Mas apenas eles pagariam o pato.
Foi algo tão sem vergonha que provocou um grito do Juca Kfoury, chamando a um deles de ‘canalha’, se me recordo bem. Solidário com a turma, embora sem nenhuma ligação com a política, Mayrink foi à frente e explicou:
– Pessoal, a capa desta semana é minha. Guardei na gaveta e tranquei. Se sair a greve, não entrego.
Essa lealdade para com o grupo, mesmo detestando política, marcou toda sua vida e da Maria do Carmo, sua mulher, grande figura.
Depois da saída de Mino, a revista entrou em uma fase barra-pesada. Julgava-se que havia uma dissidência interna, depois que a redação redigiu um abaixo assinado contra a manipulação de uma pesquisa feita em Brasília por D´Alembert Jaccoud – outro grande jornalista, doce, firme e leal.
Esses períodos de intensa pressão são excelentes para revelar o caráter de cada um. Há os desleais, os assustados, os omissos, os radicais e os leais. Mayrink pertencia ao último grupo. Jamais radicalizou, jamais fraquejou, jamais cometeu uma deslealdade que fosse.
Passou seu período da Veja, entrou em outras experiências jornalísticas. Depois, perdemos contato. A última vez que o vi foi dez anos atrás, em um jantar do pessoal da Veja dos anos 1970.
Dia desses, encontrei o Humberto Werneck na padaria da rua Sergipe. Ficamos de combinar um encontro dos velhos amigos. Esse dia a dia maluco de São Paulo impediu saborear a última conversa com o Mayrink.
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Morre o jornalista Geraldo Mayrink
Claudio Leal
Reproduzido do Terra Magazine, 27/8/2009
O jornalista Geraldo Mayrink morreu nesta quinta-feira, aos 67 anos, em São Paulo, vitimado por um câncer. O velório será em Vila Alpina, nesta sexta, das 8h às 13h. Deixa a mulher, Maria do Carmo, e os filhos Gustavo e Marieta.
Nas 19 redações por onde passou, de 1963 a 2007, ele exerceu a crítica e a reportagem. ‘Geraldo Mayrink era dono de um dos melhores e mais saborosos textos da imprensa brasileira do nosso tempo. Um extraordinário formador de quadros e equipes. Escrevia sem sofrimento, sem que isso significasse transferir o sofrimento para o leitor. Não era um homem torturado’, diz o jornalista e escritor Humberto Werneck.
Nascido em Juiz de Fora (MG), em 17 de maio de 1942, Mayrink trabalhou nas redações de Binômio – uma espécie de precursor do Pasquim –, Diário de Minas, O Globo, Jornal do Brasil, Manchete, Revista Goodyear, Veja, IstoÉ, Playboy, Correio Braziliense, O Estado de S. Paulo, Jornal da Tarde, IstoÉ-Gente, Época e Diário do Comércio (SP).
De trajetória vinculada ao cinema e à literatura, deixa um acervo de crônicas, perfis e críticas sobre obras e personalidades brasileiras do século 20: Glauber Rocha, Zé Celso Martinez Corrêa, Carlos Drummond de Andrade, Otto Lara Resende etc. Fez a entrevista que marcou o retorno do poeta Bruno Tolentino ao Brasil, em 1996, na revista Veja. Uma aula informal de como ser um bom entrevistador.
‘Trabalhamos juntos no Binômio. Sempre foi mais redator do que repórter. Tinha um humor muito especial, um texto primoroso’, diz o deputado federal Fernando Gabeira (PV-RJ).
Geraldo Mayrink publicou os livros Juscelino (biografia, 1983), O cinema e a crítica paulista (ensaio com outros autores, 1986), Jorge, Le rouge (biografia de Jorge Amado, 2001) e O poeta que amava as mulheres (biografia de Vinicius de Moraes). Era professor-doutor por notório saber da Universidade de São Marcos (SP).
Werneck, autor do livro O desatino da rapaziada (sobre jornalismo e literatura em Minas Gerais), recorda-se de um conselho venenoso de Mayrink a uma repórter que não sabia empregar as vírgulas: ‘Faça o seguinte, minha filha: nesta lauda você escreve o texto. Nesta outra você põe as vírgulas. Deixa que eu distribuo’.
No hospital, fez escorrer seu humor mais terno: ‘A vida é curta. Mas os dias são looongos…’
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Jornalista