Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O Globo exalta crime ambiental

O Globo cometeu grande engano ao publicar a matéria ‘A vida sossegada nos sertões de Jacarepaguá’ (p.30 , Editoria Rio, 28/11/04) como se fosse uma iniciativa exitosa para preservação de meio ambiente. Segundo a matéria, ‘um casal de ecologistas’, vindos há dois anos dos Estados Unidos, instalou-se numa encosta a 350 metros de altitude e construiu uma confortável casa integrada ao meio ambiente, abastecida por uma nascente.

Esta obra, na realidade, é um grande escândalo, que nos permite avaliar como é tratada a questão do uso e da ocupação do solo na nossa cidade. Mostra como o poder público se omite e deixa de cumprir com a obrigação de garantir a proteção ao meio ambiente, a ordem urbanística e como, conseqüentemente, colabora, por ação direta ou por omissão, para a prática de diversos crimes. Se houvesse um mínimo de respeito à lei, por parte das autoridades encarregadas de manter a ordem urbanística e a proteção do meio ambiente, este casal ‘hippie-chic’ deveria ser, imediatamente, autuado por diversas infrações, e a tal ‘casa ecológica’, demolida como prova de que no Rio de Janeiro o crime não compensa.

Até a Rede Globo de Televisão já havia chamado a atenção do poder público, no programa RJ-TV, quando mostrou o desmatamento que o casal provocou naquela área de preservação permanente.

Portanto, nenhuma autoridade encarregada da proteção do meio ambiente e do controle urbanístico pode negar que sabe da existência deste crime, que é público e notório. Aquele terreno está localizado no entorno do Parque Nacional da Tijuca e da Área de Proteção Ambiental e de Recuperação Urbana do Alto da Boa Vista, duas Unidades de Conservação Ambiental (UCA). Segundo o Regulamento de Zoneamento da Cidade do Rio de Janeiro aprovado pelo Decreto 322, de 1976, aquela área é considerada reserva florestal, porque está situada na Zona Especial 1 (ZE 1), acima da cota 100, uma área non-aedificandi. Ali somente seria possível a construção se estivesse num terreno com área mínima de 10 mil metros quadrados e de frente para um logradouro público, aceito e reconhecido pela Prefeitura.

Contravenção penal

Apenas estas circunstâncias já seriam suficientes para mostrar que o casal ecológico está cometendo infrações contra a legislação ambiental, que a matéria do Globo ignora. O Código Florestal, aprovado pela Lei 4.771/65, considera de preservação permanente as florestas e demais formas de vegetação natural situadas no topo dos morros, montanhas e serras. Não poderia, portanto, o casal plantar verduras e legumes numa área de preservação permanente. Será que eles pretendem reflorestar o morro, uma área de preservação permanente, e transformá-la numa grande horta para seu consumo particular em detrimento da Mata Atlântica que deveria estar, ali, sendo preservada?

O casal não poderia ter retirado as pedras, ainda que manualmente, para usar na construção, sem autorização da Geo-Rio. Se houve esta autorização ela é flagrantemente ilegal. Não poderia, também, fazer adução de água retirada de nascente a dois quilômetros da casa, sem autorização da Cedae. Muito menos poderia abrir uma ‘estrada de terra’, construir a casa com pedras retiradas do morro e fazer cortes na encostas, tudo sem licença da Prefeitura e sem responsável técnico legalmente habilitado O sistema de utilização da energia elétrica, para consumo na casa permite presumir que se trata do famoso ‘gato’, que é considerado crime de furto de energia, como é o abastecimento d’água sem pagamento da tarifa à Cedae, ainda que originário de uma nascente.

Também o casal não pode fazer tratamento de esgotos sem autorização da Cedae e sem a participação de um responsável técnico, o que configura exercício ilegal das profissões de engenharia e arquitetura, o que no Brasil é contravenção penal, bem como o é construir edificações sem responsável técnico, engenheiro ou arquiteto, como estipula a Lei 5.194/66, que regula o exercício dessas profissões. No Brasil, é claro.

Letra de sambinha

O escândalo que essa ‘casa ecológica’ representa está ligado à omissão do poder público encarregado de manter a ordem urbanística e a preservação do meio ambiente e também da imprensa. Por que o Ministério Público não se pronunciou a respeito deste crime ambiental? Por que a Fundação Instituto Geotécnica (Geo-Rio) permite a retirada de rocha e corte no terreno com mais de 3 metros de altura? Por que a Secretaria Municipal de Urbanismo, tão ávida por demolir barracos em favelas, até o momento não mandou demolir esta construção totalmente ilegal e produto de vários crimes? Por que a Secretaria Municipal de Meio Ambiente não embargou, multou e mandou abrir o competente inquérito criminal através do Ministério Publico. Por que a mídia não grita?

Só há uma resposta para todas estas questões: os crimes contra o meio ambiente e contra a administração pública compensam no Rio de Janeiro. A questão é muito mais séria do que possa perceber a nossa vã imaginação. Está na hora de a sociedade civil se voltar contra essa permissividade oficial em favor do crime estabelecido. Caso contrário será a barbárie que se estabelecerá no Rio, definitivamente.

A letra do sambinha em homenagem ao casal ecológico deveria ser ‘Moro onde não mora ninguém… lá onde ninguém deveria morar…’.

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Arquiteto e urbanista, coordenador do Centro de Defesas das Cidades, assessor da presidência do Crea-RJ