Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O golpe do Supremo

A decisão do Supremo Tribunal Federal de conferir ao presidente da República a atribuição de julgar coisa julgada pelo próprio STF leva-nos a temer pela preservação do ordenamento democrático do país. Paulo Brossard de Souza Pinto, ex-ministro da Justiça e ex-ministro do STF, publicou, neste último dia 23, artigo em Zero Hora, no qual dizia romper seu auto-declarado silêncio no que concerne às decisões do STF – auto-imposto por razões éticas. No artigo, Brossard comentou a decisão inédita do Supremo e a vinculou a um esvaziamento moral da Corte. No Estadão, em decorrência da mesma decisão, matéria de página inteira foi dedicada às futricas e xingamentos que caracterizam as relações dos ministros do Supremo. Percebo, nisso, um mal-estar da grande mídia no que respeita à decisão do STF de abdicar de sua prerrogativa constitucional. Mas, diante do que se constata, somente mal-estar é pouco.

Creio que o quadro é muito grave. Não entro na questão técnico-jurídica, senão apenas para referir o que dela pode advir no plano político-institucional. Sei que, em estrito enfoque técnico, pode-se discutir a decisão do STF de renunciar à sua prerrogativa de julgar, transferindo a mesma para o Executivo. Em matéria jurídica, como em outras, pode-se discutir tudo. Aqui se impõe a referência a Goethe, para quem mesmo o diabo tem suas razões. Numa corte, em sua defesa, advogados saberiam como vesti-las com trajes doutrinários, ainda que exóticos e singulares. Poderiam requisitar a jurisprudência belga, vertida do flamengo para o português, a exemplo do que fez o ministro Aires Britto, na douta explanação sobre seu motivo para renunciar, no julgamento Battisti, à própria condição de juiz. Fato é que, no julgamento da extradição de Cesare Battisti, deu-se, como, antevira Renata Lo Prete, em minúcia, a especial lançada de nova exegese – até então desconhecida da jurisprudência pátria – que transforma o chefe de Estado em monarca absoluto e o supremo em mera associação literária, no máximo consultiva, como afirma o Movimento de Justiça e Direitos Humanos do RS, em sua concisa e aguda manifestação de rebeldia contra a decisão do STF, divulgada para toda a mídia, embora por ela desprezada. A mídia tratou do assunto de forma rotineira. No julgamento, estava lá o Supremo a delibar sobre matéria que cabe, segundo o voto da maioria monarquista, ao soberano julgar. O ministro Cezar Peluso, relator da extradição, confessa que não possui capacidade intelectual para redigir o acórdão sobre a decisão prolatada. Motivo: nela deve constar a delibação, por todos os títulos bizarra e estranha ao ordenamento jurídico brasileiro (refiro-me à Constituição e à lei de extradição) e às prerrogativas do Judiciário.

Questionável a base da democracia

Deparamos com caso sem precedente na história do STF, com implicações, algumas paradoxais, outras políticas, todas evidentes. Para mencionar uma, absurda: preso por ordem do Supremo, o terrorista encarcerado há mais de dois anos, pode receber graça do presidente da República que, ao fim e ao cabo, manda e desmanda em tema de extradição. Seu poder, dizem os monarquistas, é discricionário. Mas como se faz para justificar a prisão já cumprida? Estava lá ele, no cárcere, na condição estapafúrdia de hóspede do Estado brasileiro (assim como estapafúrdia é a condição de hóspede de Manuel Zelaya, no enclave brasileiro de Tegucigalpa), a aguardar por delibação fútil do grêmio literário que o encarcerou, uma vez que não compete a ele (grêmio) decidir sobre aquilo que, pela Constituição (Art. 102, I) deveria decidir? Em sendo assim, sua prisão teve fundamento tão somente em puro ato de crueldade do Estado, como acentuou o ministro relator, no debate do STF sobre a discricionariedade de Sua Alteza, que, ao seu término, a maioria togada concluiu ser inconsequente a decisão por extraditar.

Dito de outro modo, o STF, por auto-flagelação, rebaixou-se à condição de casa de aconselhamento. E Battisti transformou-se em vítima de perseguição política do Brasil!

Mais preocupa e inquieta, a disfuncionalidade decorrente da delibação, que abala os alicerces do estado democrático de direito, na medida em que desequilibra as relações entre o Judiciário e o Executivo porque rebaixa as decisões vinculativas do primeiro – eram assim, até o final do degradante julgamento de Battisti – à condição de palpites a serem levados em conta ou não pelo chefe do segundo. Passa a ser questionável a base mesma da democracia, que impõe a independência e a harmonia entre os poderes, dado que um, o Judiciário – que detém a atribuição intransferível de julgar (i.e. proferir sentença, repito, vinculativa) a extradição, confessou-se submisso ao outro, o Executivo, outorgando a este a condição de juiz da extravagante delibação.

Projeto fascista de esquerda

Praticou, a Corte Suprema, ao dizer-se competente não mais para julgar, mas para somente delibar, golpe de Estado, ao qual revestiu de pseudo-legalidade, para tanto invocando sinuosa jurisprudência ‘belga’ e outras opiniões anti-republicanas. Jamais houve algo parecido no país.

Renata Lo Prete avisou-nos que estava em curso o golpe, arquitetado em locais onde não há luz, pelo Executivo e seus apadrinhados do Supremo. O aviso saiu no ‘Painel’ da Folha de 16 do novembro, dois dias antes do julgamento Battisti. Não creio, se é que nos são abjetos o chavismo e o aparelhamento partidário do Estado, com suas inevitáveis e catastróficas decorrências, que possamos calar diante da aberração cometida. Não se trata aqui de discussão acadêmica, mas da adoção de uma posição política de rebeldia, por todos os modos justificada, a ser denunciada pelos democratas e levada ao conhecimento dos brasileiros submetidos cotidianamente ao bombardeio de propaganda direta e indireta das virtudes míticas do presidente Lula da Silva. Devemos estar atentos ao que ocorre no Brasil, onde um partido, no caso o PT, liderado por um populista, que tem a seu serviço gigantesca máquina de propaganda, exercita ardilosamente seu projeto de instalar, no país, um regime fascista de esquerda.

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Jornalista, professor da UFRGS, doutor em Filosofia, Porto Alegre, RS